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E então fez-se um silêncio estrondoso, quando todos esperavam que chegasse para conhecerem por fim o cenário. Perto da meia noite, “lá estava ele”. Quando Helena Vieira voltou do compasso de espera do seu café já o tenor se encontrava no palco do Teatro Nacional de São Carlos, à conversa com encenador e figurinista, pronto para o pré-ensaio geral. “Simpatiquíssimo. Disse que não falava português, conversa de circunstância. Sendo fã dele, quando vi que não tinha peneiras ainda mais feliz fiquei. Interessava-se muito pelos cantores em Portugal, sempre este tipo de conversa. De tudo fazia humor e um bocadinho de ironia. Nunca pensei: ‘Ah, lá está este, não pode ver um rabo de saias’”.
Trinta anos depois desse serão em dezembro de 1989, que assinalou a estreia do espanhol em Portugal, a cantora lírica recorda os tempos em que trabalhou com Plácido Domingo, primeiro para a penúltima tragédia de Verdi, com Plácido na pele de Otello e Helena no papel de Emília, a mulher do antagonista Iago, mais tarde para uma temporada do outro lado da fronteira. E é com rotunda surpresa que recebeu as mais recentes notícias sobre as acusações de 9 mulheres por assédio sexual do génio da ópera. “Eu também trabalhei com ele. Ou sou muito feia ou não sofri assédio. É uma pessoa corretíssima, muito afável. Qualquer pessoa que o abordasse ele oferecia-se para ajudar. Era muito simples, como para mim deve ser uma verdadeira vedeta. Eu e a Daniela Stasi, que fazia de Desdémona, divertíamo-nos muito com ele e nunca o vi andar atrás de alguém”.
Helena lembra os cumprimentos à “boa maneira espanhola” de um homem “lindíssimo e muito charmoso”. E garante que para lá do típico ‘hola, qué guapa’ atirado aqui e ali, nunca assistiu ao pisar do risco. “Com 40 e tal anos então era uma estampa. Mas nunca se serviu disso para assediar pessoas. Irrita-me imenso esta história. Não estava lá para ver, mas se foi verdade só agora se lembraram? O Plácido Domingo era muito cuidadoso, assinava os autógrafos e não dava mais saída às mulheres”. Terminados os espetáculos, o tenor, a quem “era muito fácil chegar”, chegava a ficar uma hora a distribuir assinaturas e dedicatórias pelos fãs. “Nunca assisti a um atiranço dele. Delas, sim, mas ele não respondia. Nem em Madrid, e estive lá um mês e tal, em maio, junho de 1991. Como estava sozinha, e ele é que tinha dito ao diretor da ópera para me chamarem, tudo o que eram festas levava-me e dizia para ir sempre o secretário dele, para não parecer que eu ia com ele”.
Mas não há como escapar a alguns dos efeitos mais recentes do caso que envolve o nome do maestro. A Orquestra de Filadélfia retirou-lhe o convite para atuar no concerto de abertura da temporada, agendada para o próximo 18 de setembro. A notícia foi avançada ao final da tarde de terça-feira pela Associated Press, que de manhã expôs as acusações de assédio sexual que ligam a lenda da ópera a pelo menos nove mulheres. Em comunicado, a Orquestra, a primeira organização a manifestar-se e a tomar uma decisão sobre o polémico assunto, justifica que está “empenhada em oferecer um ambiente seguro, respeitável e apropriado”. No mesmo dia, também a Ópera de São Francisco reagiu ao caso, cancelando o concerto do tenor marcado para o próximo dia 6 de outubro. O espetáculo assinalaria os 50 anos da relação de Domingo com a instituição.
Ainda que sem interferências na agenda, a Ópera de Los Angeles, da qual Domingo foi diretor até 2003, também já se pronunciou sobre as acusações, garantindo levar a cabo uma investigação, já que foi o palco de vários dos alegados casos de assédio sexual. Por sua vez, a Ópera Metropolitana de Nova Iorque indicou que vai esperar pelos resultados da referida investigação “antes de tomar qualquer decisão definitiva quanto ao futuro do Sr. Domingo no Met”. Também Nova Iorque se encontra neste momento em stand by.
As acusações contra Plácido Domingo: “Como é que dizes não a Deus?”
Nove mulheres, oito cantoras e uma bailarina, acusam Plácido Domingo de assédio sexual. Os primeiros alegados casos terão acontecido no final dos anos 80, os restantes estenderam-se ao longo das três décadas seguintes. Dessas nove, sete afirmam terem tido as suas carreiras prejudicadas por resistirem aos avanços do tenor. Com a Associated Press (AP), falaram outras seis mulheres. Todas se sentiram desconfortáveis com abordagens sugestivas por parte de Domingo. Desse segundo grupo faz parte uma cantora que alegou ter sido repetidamente convidada para sair com o cantor, depois de este a ter escolhido para cantar com ele numa série de concertos, na década de 90.
Houve ainda mais de 30 pessoas, entre cantores, bailarinos, músicos de orquestra, assistentes de bastidores, professores de canto e um administrador, que disseram ter testemunhado um comportamento sexual inadequado por parte de Plácido Domingo e que o cantor perseguia mulheres mais novas sem consequências. Sem provas documentais, apenas os relatos de amigos, colegas e confidentes da época corroboraram as versões das alegadas vítimas. Isso e o facto de, segundo a AP, os vários testemunhos terem apresentado o mesmo padrão — Plácido Domingo contactaria todas elas de forma persistente, demonstraria interesse na progressão das suas carreiras e faria pressão para que se encontrassem com ele, oferecendo aconselhamento profissional.
Duas das autoras das acusações de assédio admitiram ter cedido aos avanços do cantor, por temerem pôr em risco as suas carreiras. Na maioria, são mulheres mais novas e que, na época, estavam a iniciar os seus percursos profissionais. Afirmam que a fama precedia o tenor. Eram alertadas por colegas a não ficarem sozinhas com ele, nem no elevador. Caso se juntassem a ele, que fosse num local público, sem bebidas alcoólicas, e sempre ao almoço, nunca para jantar. Várias contaram que chegaram a deixar de usar a casa de banho feminina mais próxima do escritório do cantor, a pedir a outros cantores ou assistentes de bastidores para acompanhá-las no trabalho e a deixar de atender o telefone de casa. “Existe a tradição de avisar as mulheres sobre Plácido Domingo — evitem, a todo o custo, interagir com ele; e, decididamente, não fiquem sozinhas com ele”, referiu uma mezzo soprano que trabalhou na Ópera de Los Angeles, mas que não se encontra entre as nove acusadoras.
Em comunicado, o cantor classifica como imprecisas as declarações das nove mulheres que decidiram trazer a público os casos de alegado assédio sexual. “Ainda assim, é doloroso ouvir que posso ter perturbado alguém ou ter feito com que se sentisse desconfortável — independentemente de há quanto tempo aconteceu e apesar das minhas melhores intenções”, pode ler-se. O cantor não nega, à partida, o envolvimento com nenhuma das alegadas vítimas de assédio. Reitera apenas o facto de todas as relações mantidas terem sido consensuais. “Acredito que todas as minhas interações e relações sempre foram bem recebidas e consensuais. Quem me conhece ou quem tem trabalhado comigo sabe que não sou pessoa para magoar, ofender ou humilhar, intencionalmente, alguém”, continua. “De qualquer forma, reconheço que as regras e padrões pelos quais somos — e devemos ser — regidos são hoje muito diferentes do que eram no passado”, rematou.
9 perguntas e respostas sobre assédio sexual (e 6 histórias de vítimas)
Nos anos 80, quando o seu reconhecimento se tornou global, Plácido Domingo era consultor artístico na Ópera de Los Angeles. Foi lá que uma outra mezzo soprano (esta parte do grupo de acusação), se cruzou com o tenor, em 1988. Tinha 23 anos e cantava no coro da ópera. Durante um ensaio, numa cena em que beijava o protagonista e para a qual tinha sido selecionada, este sussurrou-lhe ao ouvido: “Quem me dera que não estivéssemos no palco”. Depois desse episódio, revelou que Domingo começou a ligar-lhe para casa frequentemente, embora nunca lhe tivesse dado o número. Dizia-lhe que ela era um talento promissor e que queria ajudá-la. “Ainda não tinha começado a minha carreira. Senti-me completamente lisonjeada. E deslumbrada. E entusiasmada. Depois, tudo ficou mais estranho”, relatou à AP. “Vem ao meu apartamento, vamos cantar umas árias. Vou treinar-te. Gostava de ouvir o que és capaz de fazer num casting“ — estariam entre os argumentos usados por Domingo para convencer a jovem cantora. Contou que, nos três anos seguintes, ele ficou demasiado próximo, deslizando-lhe a mão pela cintura e beijando-a perto dos lábios. Entrou-lhe no camarim sem aviso, presumidamente para vê-la sem roupa.
Sempre que voltava a Los Angeles, os comportamentos repetiam-se, apesar das tentativas da cantora para afastá-lo e evitar ficar sozinha com ele — sempre sem ofendê-lo, pois temia comprometer a carreira. Numa noite, concordou em encontrar-se com o tenor, por volta das 23h. Teve um ataque de pânico e não chegou a atender o telefone, que tocou até às três da manhã. Com medo das consequências, nunca fez queixa. Ainda assim, um antigo membro da equipa de bastidores admitiu à AP recordar-se da notória perseguição.
“Como é que saio disto?”, questionava a cantora, cada vez que Domingo regressava à cidade. Em 1991, deixou de resistir. “Cedi e dormi com ele. Deixei-me de desculpas. Pensei: ‘Acho que é o que tenho de fazer'”, contou. Envolveram-se duas vezes — no hotel Biltmore e no apartamento do tenor, que lhe terá falado na “superstição de estar com uma mulher antes do espetáculo”, como forma de acalmar os nervos. No quarto do hotel, em Los Angeles, o cantor terá deixado dez dólares em cima da cómoda antes de sair. “Não quero que te sintas uma prostituta, mas também não quero que gastes dinheiro no estacionamento”, terá dito.
De consultor, passou a diretor artístico, em 1988. Sob o pretexto de fazer escolhas para novos papéis, terá começado a telefonar insistentemente a outra jovem cantora, de 27 anos, em início de carreira. Os convites para tomar uma bebida, para ver um filme e para visitar o seu apartamento chegaram. A cantora conta que, durante uma das inoportunas visitas ao seu camarim, inclinou-se sobre ela, beijando-a na cara e colocando a mão sobre os seus seios. Revelou à AP que, daí em diante, se sentiu em pânico. “Estava completamente intimidada e sentia que, se lhe dissesse que não, estava a dizer que não a Deus. Como é que dizes que não a Deus?”, revelou. “É uma pena o teu marido não entender a tua carreira”, ter-lhe-á dito a certa altura, depois de esta ter deixado de atender o telefone.
No dia em que abriu uma exceção, foi surpreendida com um novo convite, desta vez para uma taça de champanhe, em jeito de celebração de um espetáculo. “Nunca iria ter uma carreira na ópera se não cedesse”, afirmou. Ele apanhou-a num BMW, notoriamente entusiasmado. Colocou-lhe a mão no joelho quando entrou no carro. O destino foi o apartamento de Domingo. Já no sofá de casa, a cantora contou que o tenor começou a beijá-la. Levou-a para a cama e despiu-a para depois tirar a própria roupa. A perseguição continuou nos dias seguintes, levando a alegada vítima, entre as sensações de sufoco e arrependimento, a contar tudo ao marido. “Era como ver alguém a ser morto psicologicamente. Ela foi ficando cada vez mais diminuída enquanto pessoa”, revelou um colega da altura.
Mas nem todos os alegados casos de assédio sexual por parte de Plácido Domingo são do século passado. Uma outra fonte da acusação, também cantora, chegou a Los Angeles em meados da década de 2000, conhecendo já a reputação do tenor. “No início, não me assustava. Pensei que conseguiria lidar com aquilo”, revelou. Numa noite, após o ensaio, ele pediu-lhe uma boleia até casa. “O pretexto era ridículo, mas o que é que eu ia fazer?”, referiu. No final do trajeto, ter-lhe-á posto a mão na perna e pedido que encostasse. Tentou beijá-la e convidou-a a subir, mas esta recusou.
“Ando a tentar ter-te a trabalhar nesta ária comigo há semanas. Quero mesmo ouvir-te neste papel”, a confirmação da obsessão veio tempos depois, acompanhada de um convite para o seu apartamento. Nesse dia, o tom foi diferente. Impaciente, segundo a cantora.“Parece de loucos, mas fiquei com a sensação de que ele tinha investido tanto naquela perseguição que começava a ficar irritado comigo”, contou à AP. Depois, o sentimento de inferioridade em relação àquele que era um ícone mundial e a certeza de que o futuro da sua carreira dependia dele.
Ela foi e a dupla trabalhou, de facto, na nova ária. “Quando terminou, ele levantou-se e deslizou a mão pela minha saia. Foi aí que fui embora dali”. A cantora relatou que Domingo a seguiu até à entrada, enquanto lhe pedia que ficasse. Em seguida, gesticulou para baixo, afirmando que ainda tinha duas horas, o que, para a alegada vítima, ficou subentendido como uma referência a substâncias com efeitos a nível da performance sexual. Contou que permaneceu dentro do carro, em choque, até se sentir bem para conduzir. “Voltei para casa aterrorizada com a ideia de ir trabalhar”. Depois daquele dia, nunca mais foi contratada pela Ópera de Los Angeles nem para voltar a cantar com Domingo. A carreira levou-a à Ópera Metropolitana de Nova Iorque e à Ópera de São Francisco. “Tenho sido dura comigo. Aceitar uma sessão de treino com alguém que me oferece ajuda não é concordar em ter sexo”, rematou.
A experiência não foi muito diferente da que teve uma bailarina, nos anos 1990, época em que trabalhava diretamente com o tenor. Durante cerca de uma década, os convites noturnos foram intermitentes. Revelou ter ouvido as várias mensagens descaradas com o marido, ambos em choque. Apesar de sempre ter recusado ir até ao quarto de hotel onde Domingo ficava hospedado, em almoços profissionais não faltaram momentos desconfortáveis como toques no joelho e na mão e beijos no rosto. “Será que ele percebe a posição de risco em que me está a pôr, que pode destruir o meu casamento e a minha carreira? Ele percebe o que se está aqui a passar?”, questionava a bailarina na altura. “Mas ele não queria saber”, acabou por concluir.
Numa tarde, quando estavam a trabalhar juntos na Ópera de Washington, Domingo terá convidado a bailarina para almoçar no restaurante do seu hotel para discutir assuntos profissionais. No final da refeição, terá demonstrado a necessidade de passar pelo quarto antes de seguirem para o ensaio. “Levou-me lá para cima, supostamente para ir apanhar alguma coisa, e convidou-me a entrar. Começou a abraçar-me e a beijar-me”, revelou em declarações à AP. A convidada resistiu. “Quando percebeu que eu, claramente, não ia ter sexo com ele, levou-me até ao elevador e voltou para o quarto. As portas do elevador abriram e caí lá para dentro. Fiquei no chão, estava a suar imenso”, relatou.
À Associated Press, um administrador disse ter tido consciência de que a bailarina estava a ser “perseguida”. Um maestro, amigo da alegada vítima de assédio sexual, afirmou que, “depois de ter dito não a Domingo, puxaram-lhe o tapete durante anos”. Uma outra funcionária, próxima do tenor, destacou o lado de cavalheiro e homem respeitável, embora tenha também confirmado as queixas de assédio feitas pela bailarina durante anos. “Durante anos, tive medo de nunca mais vir a ser contratada”. A bailarina viria a trabalhar novamente com o tenor, razão pela qual não consegue chegar a uma conclusão sobre o seu comportamento. “O que ele fez está errado. Ele usou o seu poder, ele perseguiu mulheres, ele colocou-as em posições de fragilidade. Há pessoas que foram postas de lado nesta área, outras simplesmente desapareceram, por se submeterem ou não a ele”, concluiu a bailarina.
No caso particular de uma outra fonte de acusação, também cantora, o contexto foi diferente. Em 1992, estava na casa dos vinte e era aluna de mestrado na The Juilliard School, em Nova Iorque. Tinha aproveitado para fazer uma viagem de mochila às costa na Europa, com a irmã. Em Roma, terá sido abordada pelo porteiro de um hotel de luxo que ficava próximo do seu. A mando de Domingo, o homem terá perguntado de quem era a voz que se ouvira a cantar no duche. Tinha sido ela. “Ele disse que tem uma belíssima voz e que quer conhecê-la”, transmitiu o porteiro.
A mensagem a marcar um encontro acabaria por chegar — seria pelas dez da noite, num outro hotel. A cantora foi encaminhada para o terraço, onde a esperava o tenor, de braço dado com uma jovem morena. “Tudo aquilo parecia uma cena tirada de um filme”, contou à AP. Domingo, que estava em Itália por conta de uma produção da ópera “Tosca”, insistiu para que, no regresso a Nova Iorque, a cantora o visitasse na Metropolitan Opera. Aí, poderia cantar para ele. “Ele disse que poderia ajudar-me com a minha carreira”, revelou. De regresso a casa, acabaria por assistir ao espetáculo e por encontrar o cantor nos bastidores. Este ter-lhe-á pedido o número de telefone. “Até então estava fascinada com toda a situação e entusiasmada por conhecer esta pessoa realmente famosa e com uma voz espantosa. Depois, comecei a receber chamadas”.
“Falou comigo com uma voz acriançada, em tom de flirt. Queria vir ao meu apartamento — isso foi estranho”, relatou. Deu os mesmos argumentos relatados por outras vítimas — “Quero ouvir-te cantar; Posso apresentar-te a pessoas” –, e depois passado para comentários de outro teor — “Quero ver-te; Quero encontrar-me contigo”, recordou a cantora, que, entretanto, optou por consultar um amigo que trabalhava na área. Este aconselhou-a a afastar-se de Domingo. “Ele era persistente. Não parava de ligar e ligar e ligar. Nas primeiras vezes, desligava. Depois, tornou-se ridículo. Ele continuava a ligar e a deixar mensagens. Fiquei assustada”, confessou. Um dia, pediu a um colega de curso que atendesse o telefone, numa dessas tentativas de contacto. Depois disso, deixou de receber chamadas.
Outro caso: o de uma soprano que teve a oportunidade de trabalhar com Plácido Domingo em 2002. Na casa dos 40 anos, admitiu ter sido a concretização de um objetivo de vida. “Vou encontrar trabalho para ti… Faço muitos concertos. E peço aos meus cantores favoritos para se juntarem a mim”, terá dito o tenor que, na altura, ocupava a direção artística das óperas de Washington e Los Angeles. Numa noite, bateu-lhe à porta do camarim para uma conversa sobre o espetáculo. No final, um beijo de despedida. “Dei-lhe a minha face e ele virou-a e beijou-me nos lábios. De repente, tinha uns lábios molhados nos meus. Foi um beijo molhado e viscoso”, revelou agora. “Percebeste?”, perguntou-lhe ao afastar-se. “Sim”, respondeu ela. “Percebeste mesmo?”, reforçou Domingo. “Sim, percebi perfeitamente”, retorquiu a soprano.
“Para mim, foi a morte de um herói. Foi a morte do meu sonho”, admitiu à Associated Press, acrescentando que nunca mais olhou o ídolo nos olhos, tão pouco permitiu que o beijo se repetisse. “Ficou claro para ele que eu não ia cooperar. Ele nunca mais me procurou”. Apesar das promessas de novos trabalhos, nunca mais foi contactada para voltar a trabalhar com ele. Mas a admiração persiste. “Ele tem alma quando canta e essa alma também traz esse abuso de poder”. “Não é que queria vê-lo ser castigado. Quero que ele tenha cuidado. Quero que ele possa perceber, ao certo, que tipo de estrago — emocional, psicológico, profissional — pelo qual é responsável”, rematou.
De Otello à Grã-Cruz, placidamente em Portugal
Sensivelmente há um ano, a 4 de setembro de 2018, o tenor, de novo de passagem por Portugal, voltou a ser condecorado pela Presidência da República Portuguesa. Depois de Jorge Sampaio o ter distinguido em 1998 com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, Marcelo Rebelo de Sousa atribuía ao espanhol a Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública, pelo “papel como presidente da Europa Nostra, particularmente relevante neste Ano Europeu do Património Cultural”. O louvor justificava-se ainda com o trabalho desenvolvido por Plácido Domingo na “formação de jovens gerações, de que a Operalia, a decorrer em Portugal, é um magnífico exemplo”, já que por essa altura o tenor e maestro passava pelo Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, que pela primeira vez acolhia aquele concurso internacional de canto lírico, uma espécie de “olimpíadas da voz”, como classifica o seu mentor. Plácido Domingo dirigiu ainda o espetáculo de final de curso, que contou com a participação da Orquestra Sinfónica Portuguesa.
Antes, a 15 julho 1998, Plácido Domingo atuou no estádio do Restelo, naquela que seria a sua segunda atuação no país, em tempos da Expo’98, perante uma plateia de 15 mil pessoas. Em 2 de maio de 2007 fez nova escala na capital portuguesa, agora no então conhecido como Pavilhão Atlântico. O concerto aconteceu depois de um cancelamento de última hora, em abril desse mesmo ano: dez minutos após a hora marcada para o início do espetáculo, o tenor subiu ao palco para anunciar que não se apresentaria como programado, devido a uma tosse insistente. Regressou menos de um mês depois para compensar os fãs.
Em 2017, a 22 de maio, o reencontro com Lisboa aconteceu de novo no mesmo local, então já Altice Arena, nas comemorações dos 80 anos da Rádio Renascença. Em palco, fazia-se acompanhar pela Orquestra Sinfonietta de Lisboa e ainda pela fadista Kátia Guerreiro, contando com a presença da soprano Micaëla Oeste e com a participação especial de Rita Marques, jovem soprano do Centre de Perfeccionament Plácido Domingo, em Valência. “Fiz uma carreira de meio século como tenor, cantando a maioria das óperas, e, a partir de 2009, comecei a cantar partes de barítono, combinando-as com partes de tenor. Mas há quatro anos que faço um reportório completo de barítono”, explicava naquele ano em entrevista à estação de rádio.
A fadista Katia Guerreiro foi por isso outra das portuguesas que já dividiu o palco com o tenor e barítono espanhol. Face às recentes acusações, ressalva o comportamento gentil e irrepreensível que sempre reconheceu a Plácido Domingo. “Não consigo imaginá-lo a desrespeitar seja quem for. Sempre o conheci assim — com uma gentileza imensa, nunca o vi ter uma abordagem de índole sexual”, refere a cantora de 43 anos ao Observador, ela que conheceu Domingo em 2005, num encontro casual, em Berlim, e que já por três vezes dividiu o palco com ele. A última foi precisamente em maio de 2017, em Lisboa.
Katia não nega o charme de Domingo, mas diz-se “chocada” e “melindrada” com as acusações trazidas a público. “O Plácido sempre gostou de mulheres bonitas, toda a gente sabe, mas isso nunca pesou na escolha de quem trabalha ou não trabalha com ele”, afirma, dizendo-se ainda incapaz de imaginar os cenários sugeridos pelas nove denunciantes. “Nem sempre os valores das pessoas que estão à nossa volta são os mesmos que os nossos. Às vezes, insinuam-se e quando o fazem as coisas podem correr mal. Depois, retaliam”, admite. “Ele não é um homem perverso. Se fosse, pelas vezes que estive com ele, já tinha percebido”, continua a fadista, que faz ainda referência aos “entusiasmos” e “afetos” que o meio artístico, em particular, propicia. “Quando nos vemos, ele abraça-me, põe a mão por cima do meu ombro. Apenas isso”, continua. Sem nunca se ter apercebido, nem das advertências que as acusadoras dizem chegar de todos os lados, Katia Guerreiro acredita na inocência do tenor.
O vínculo do tenor com o país estende-se para lá da presença em solo nacional. Foi ao lado de Plácido Domingo que a soprano Elisabete Matos debutou de forma triunfal em 1997 na reabertura do madrileno Teatro Real, naquela que foi a estreia mundial da ópera “Divinas Palabras”, de Antón García Abril. O talento da portuguesa não passou despercebido ao tenor e maestro que a convidou para dar voz a Chimène, em “Le Cid”, de Massenet, espetáculo apresentado em 1999, em Sevilha, e depois pela Ópera Nacional de Washington, no John F. Kennedy Center for the Performing Arts. Seguiu-se novo desafio lançado pelo espanhol: participar em “Sly”, de Ermanno Wolf-Ferrari, ao lado de José Carreras e com a companhia da Ópera Nacional de Washington, com direção artística do próprio Domingo. Pelo caminho, Elisabete Matos e Plácido Domingo encontraram-se nesse concerto no Restelo. O Observador tentou contactar a cantora, mas até à publicação deste artigo não foi possível obter respostas.
Da cientologia às acusações de assédio. O verão horribilis de Marta, a companheira de uma vida
Até que ponto um escândalo consegue abalar uma longa história de união e sacrifício? Mulher e conselheira de Plácido Domingo, Marta Ornelas, atualmente com 84 anos, acompanha o tenor desde a década de 60. Domingo admite que não era o melhor dos partidos quando se conheceram no conservatório do México. O tenor, que trocara Espanha pela América do Sul à boleia dos pais três dias antes de cumprir oito anos, somava já um casamento falhado aos 17, com a pianista Ana María Guerra Cué (1938-2006), e um filho — trocara alianças à revelia dos pais, que se encontravam em Espanha, onde Plácido Domingo voltaria apenas depois dos 23 anos.
A mexicana Marta, soprano natural de Veracruz, era uma jovem e promissora voz, que em 1961 se destacara pela sua prestação na pele de Susanna em “As Bodas de Fígaro”. A paixão terá acontecido quando “a menina bonita que chegava a conduzir um Mercury” cantava ópera e Plácido se dedicava às zarzuelas (que valeram fama aos pais). Isto para não falar dos mariachis com os quais se apresentava à janela da pretendente, apesar das habituais queixas dos vizinhos eas ameaças de chamarem a polícia (que no final, dizem, já aparecia apenas para escutá-lo). Plácido cantava desde os 16 anos, tendo deixado para trás o sonho do futebol como guarda-redes.
Subiram ao altar em 1962, mudando-se durante dois anos e meio para Tel Aviv para uma série de atuações de Marta ao serviço da Israel National Opera. Lado a lado na vida e na profissão, a rotina acabaria por mudar quando Marta engravidou, decidindo-se por abandonar a carreira e permanecer em casa a cuidar dos filhos, Álvaro Maurizio Domingo e mais tarde Plácido Domingo Jr. (que se juntaram a José Plácido Domingo Guerra, fruto do primeiro casamento do maestro). “Disse ao meu marido que não podia ser mãe, mulher e cantar ao mesmo tempo. Dei-me conta da envergadura da carreira do Plácido”, assegurou Marta ao programa “En tu casa o la mía”, de Bertín Osborne, citada pelo El Mundo.
Umas das fases mais duras coincidiu com o período em que se fixaram em Barcelona, onde viveram oito anos, com os filhos ainda pequenos, enquanto Domingo passava a maior parte do tempo entre Londres e Viena, a colher os louros do êxito. Com os filhos criados, Marta retomou a sua relação com a música e o espetáculo em 1991, dedicando-se à direção de cena. Nesse mesmo ano, esteve ligada a “Sansão e Dalila”, apresentado em Porto Rico, seguindo-se “La Traviata”, em Sevilha, e a sua estreia no Met de Nova Iorque, naquela que foi também a estreia norte-americana de “Sly”, de Wolf Ferrari, dirigida pelo marido.
A agenda do casal obrigou a deslocações constantes entre Nova Iorque e Barcelona, com paragens em Madrid e ainda em Acapulco, no México, morada de verão do casal. Por falar em verão, o de 2019 estará a ser tudo menos brando para a matriarca do clã. Em julho, rebentava uma das histórias mais bizarras a envolver a família: uma das ex-noras do tenor confessou ao Daily Mail que os filhos de Plácido e Marta estiveram vários anos ligados à Cientologia (ela própria ter-se-ia libertado de mais de dois anos de vínculo “à seita”), surgindo ainda rumores de que Domingo terá mesmo desembolsado 2 milhões de euros para conseguir ver os netos, supostamente impedidos pela organização religiosa — que tem em Tom Cruise um dos rostos mais influentes — de verem a família. Marta voltou agora a estar no centro da polémica: as mais recentes acusações, no mínimo, e avaliar pelas palavras do marido (que defende que as relações em questão “eram bem recebidas e consensuais”), expõem um vasto historial de infidelidades.
Patricia Wulf: “Tenho a certeza absoluta de que foi assédio sexual”
Das nove mulheres que, agora, acusam Plácido Domingo de assédio sexual, e das dezenas de pessoas que falaram sobre estes casos à AP, Patricia Wulf foi a única a dar a cara e o nome e a prestar declarações em frente a uma câmara. A mezzo soprano cantou com Domingo na Ópera de Washington e, ao contrário das restantes fontes, que continuam no ativo e temem que represálias lhes afetem a carreira e que resultem numa humilhação pública, decidiu revelar a sua identidade. O caso aconteceu em 1998. Patricia, com 40 anos na altura, dava os primeiros passos nessa mesma ópera onde o tenor ocupou o cargo de diretor artístico entre 1996 e 2003, assumindo depois a função de diretor até 2011.
“Sempre que saía do palco, ele ficava nas laterais à minha espera. Ele vinha ter comigo, aproximava-se o mais possível, encostava a cara dele à minha, baixava o tom de voz e perguntava: ‘Patricia, temos de ir para casa esta noite?'”, relatou a cantora de ópera, hoje com 61 anos. A abordagem repetia-se noite após noite, segundo conta. Wulf começou por reagir às investidas com risos nervosos, embora os considerasse ofensivos. A certa altura, tomou uma posição e respondeu-lhe: “Sim, tenho de ir para casa hoje”.
No ano de 1998, Patricia foi escolhida para dois solos — o primeiro numa produção de “A Flauta Mágica”, de Mozart, e depois em “Fedora”, onde partilhou o palco com Plácido Domingo e com a soprano italiana Mirella Freni. Um ponto alto numa carreira em ascensão, lembrou. Chegada à ribalta, a cantora apercebeu-se de que teria que lidar com outro tipo de situações. “Tem de compreender que quando um homem tão poderoso — ele é quase como Deus na minha área — se aproxima tanto e diz aquilo, a primeira coisa que lhe vai passar pela cabeça é: ‘O quê?'”, exclamou Wulf durante uma entrevista dada na sua casa, no estado da Virginia. “Mas, assim que sai dali, também pensa: ‘Será que acabei de arruinar a minha carreira?'”, rematou, afirmando ainda que a perseguição de Domingo parecia não ter limites.
“Cheguei ao ponto de sair do palco e ficar atrás de um pilar e, ainda assim, ele conseguia arranjar maneira de vir ter comigo”, continuou, em declarações à AP. Wulf fez ainda referência a momentos em que Domingo lhe bateu à porta do camarim sem ser convidado e em que tinha medo de deixar a sala, temendo que ele estivesse na entrada. “Abria a porta e espreitava para ver se ele estava lá. Se estivesse, esperava”.
Na noite em que decidiu levar o marido, na festa da estreia de “A Flauta Mágica”, Domingo fez uma nova abordagem. Apertou-lhe a mão, beijou em ambas as faces e sussurrou-lhe: “Gostaria de conhecer o meu rival”. Em declarações à AP, Richard Lew, escultor e marido da cantora, revelou que, no final de cada espetáculo, perguntava à mulher se o tenor havia dito a mesma coisa. “A certa altura, nem tinha de perguntar. Percebia-se pela forma como ela chegava perturbada”, afirmou Lew.
Patricia recorda o dia em que um colega lhe ofereceu apoio, caso quisesse denunciar Domingo. “Eles não vão despedi-lo, vão despedir-me a mim”, respondeu-lhe na altura. Em anonimato, esse mesmo colega foi também contactado pela AP, recordando o desconforto da cantora e as vezes em que a acompanhou até ao carro, por esta ter receio de ir sozinha. Plácido Domingo nunca lhe tocou, mas as suas intenções sempre foram claras. “Tenho a certeza absoluta de que foi assédio sexual. Quando um homem chega tão perto e, com um sorriso irónico, pergunta se tenho de ir para casa — repetidamente — não posso tirar outra conclusão senão a de que quer ir para a cama comigo. Especialmente, tendo em conta a reputação dele”, continuou.
“Isso afetou a forma como lidei com os homens durante o resto da minha carreira na ópera e durante o resto da minha vida”, acrescentou. “Dei este passo porque espero que ajude outras mulheres a fazer o mesmo ou a serem fortes o suficiente para dizer não”, concluiu, ao mesmo tempo que referenciou o caso como “um segredo à vista de todos”. A carreira de Patricia Wulf nos grandes palcos terminou em 2002, segundo escreve o El Mundo. Desde então que se dedicou a produções de pequenas companhias, a espetáculos de beneficência e a dar continuidade à sua formação académica.