O resumo da final do exercício de solo desta segunda-feira, nos Jogos Olímpicos de Paris, pode ter dois títulos. Por um lado, Simone Biles perdeu. Por outro, Rebeca Andrade ganhou. Mas ganhou muito: ao vencer a norte-americana no solo e conquistar a sexta medalha olímpica da carreira, a ginasta tornou-se a brasileira mais bem sucedida de sempre em Jogos Olímpicos.
Com apenas 25 anos, Rebeca Andrade terminou a terceira participação olímpica — sendo que, em Tóquio e beneficiando das desistências de Simone Biles, já tinha sido ouro no cavalo e prata no all around. A brasileira começou a praticar a modalidade ainda muito criança, saiu de casa aos nove anos para correr atrás do sonho e tem acumulado triunfos em Jogos Pan-Americanos, Campeonatos do Mundo e Jogos Olímpicos, tornando-se uma das figuras mais populares do desporto do país.
Depois de três cirurgias ao mesmo joelho, uma infância muito marcada pelas dificuldades financeiras e o recurso sempre assumido a músicas menos ortodoxas para as próprias coreografias, Rebeca Andrade fez história em Paris. E tudo enquanto “viaja na maionese” através de saltos, piruetas e mortais.
A saída de casa aos nove anos, a “Daianinha de Guarulhos” e as três cirurgias ao mesmo joelho
Guarulhos não é propriamente um sítio pequeno. É a segunda cidade mais populosa do estado de São Paulo, a 13.ª mais populosa de todo o Brasil e a cidade brasileira mais populosa que não é capital estatal. É conhecida por ser a cidade dos Mamonas Assassinas, a popular banda brasileira dos anos 90 que perdeu tragicamente a vida num acidente de aviação. Nos últimos anos, porém, tornou-se conhecida também por ser a cidade de Rebeca Andrade, a atleta brasileira mais medalhada de sempre em Jogos Olímpicos.
A ginasta é uma de oito irmãos e cresceu a assistir à mãe a acumular vários empregos para conseguir sustentar a família na sequência do divórcio do marido. Rebeca chegou à ginástica aos quatro anos, quando a tia começou a trabalhar no Ginásio Bonifácio Cardoso, em Guarulhos, e decidiu levá-la num dos dias. Começou a brincar com as raparigas que estavam inscritas no ginásio, enquanto a tia trabalhava, e acabou por dar nas vistas.
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“A Rebeca chegou com a tia ao ginásio, toda tímida. Quando lhe pedi para dar um salto, vi logo um talento incrível, que precisava de ser lapidado. E foi isso que fizemos com ela”, contou recentemente Mónica dos Anjos, a primeira treinadora de Rebeca Andrade. Treinar de forma regular, porém, obrigava o orçamento familiar a incluir bilhetes diários para transportes públicos — um dinheiro que a família não tinha. Assim, nas semanas mais complicadas, os irmãos mais velhos comprometeram-se a caminhar com Rebeca até ao ginásio e de regresso a casa, num percurso a pé que demorava duas horas.
Não demorou até impressionar no ginásio que frequentava e nas competições em que participava. Depressa começou a ser apelidada de “Daianinha de Guarulhos”, numa referência a Daiane dos Santos, a primeira brasileira a ser campeã mundial e a grande referência de Rebeca Andrade até aos dias de hoje. Aos nove anos, mudou-se para Curitiba para treinar num ginásio com mais condições. Aos dez, mudou-se para o Rio de Janeiro para se juntar ao Flamengo. E a mãe não se arrepende de ter permitido tudo.
“Diziam que eu era doida por deixá-la ir embora. Mas eu tive a sabedoria e a mente aberta para deixar que pudesse seguir os sonhos dela”, contou a mãe da ginasta numa entrevista recente ao UOL. A brasileira estreou-se internacionalmente em 2012, quando foi aos Jogos Pan-Americanos Júniores com apenas 13 anos e conquistou o ouro no all around, no cavalo e no solo, para além de ter sido bronze na trave e prata por equipas. Nesse mesmo ano, na Taça do Brasil, derrotou as atletas olímpicas Jade Barbosa e Daniele Hypólito e sagrou-se campeã nacional all around.
As dificuldades começaram a surgir em 2015. Com os Jogos do Rio já no horizonte, rompeu o ligamento cruzado anterior do joelho direito e teve de ser operada, falhando os Jogos Pan-Americanos e os Campeonatos do Mundo. Conseguiu recuperar a tempo da estreia olímpica em casa, onde foi 11.ª no all around individual e contribuiu para o 8.º lugar do Brasil na final por equipas, estreou-se nos Mundiais antes de voltar a sofrer a mesma lesão e só competiu durante um ano antes de romper o ligamento pela terceira vez e ser operada ao mesmo joelho pela terceira vez no espaço de quatro anos.
“Eu digo que tudo a Deus pertence. E falo assim porque foi tudo muito difícil, depois de tantas lesões. Porque não são só as lesões do joelho direito… Tenho no joelho esquerdo, tenho uma em cada pé. É complicado. Enquanto o meu corpo aguentar, vou estar aqui. Mas é importante preparar também os fãs, as pessoas que torcem. Porque quando nos despedimos é muito difícil. Mas eu acredito que é preciso aproveitar todos estes momentos”, disse recentemente a ginasta.
O adiamento dos Jogos Olímpicos de Tóquio, devido à pandemia de Covid-19, permitiu a Rebeca Andrade recuperar da terceira cirurgia de forma mais consistente e apresentar-se no Japão com chances de chegar às medalhas. Sem esquecer o sítio que a viu nascer e crescer, apresentou o exercício de solo ao som do funk “Baile de Favela” e foi uma das principais favorecidas das desistências de Simone Biles. Foi ouro no cavalo e prata no all around, conquistando as primeiras medalhas de sempre do Brasil na ginástica feminina, e acabou por ser a porta-estandarte do país na cerimónia de encerramento.
“Vi sempre a minha história como um processo de superação, porque passei por coisas muito difíceis. Estas medalhas não são só minhas, são para todos aqueles que conhecem a minha história, que sabem tudo aquilo por que passei. Temos de acreditar em nós, nunca desistir, nada é fácil. As coisas más vão sempre acontecer, mas as boas também”, disse ainda em Tóquio, depois de subir ao pódio para receber o histórico e inédito ouro.
O pós-Tóquio e um ciclo olímpico onde dominou antes de vencer Simone Biles em Paris
2021 foi mesmo um ano de viragem na carreira de Rebeca Andrade. Para além das duas medalhas conquistadas nos Jogos Olímpicos, foi campeã nacional all around e por equipas, campeã mundial no cavalo e vice-campeã mundial nas barras assimétricas, nuns Mundiais de Kitakyushu onde abdicou do solo para se proteger fisicamente. Pelo meio, tornou-se uma autêntica celebridade no Brasil, aparecendo na capa da Vogue Brasil e sendo considerada a Atleta do Ano no país.
Com muita incerteza em relação ao futuro da carreira de Simone Biles, que passou muito tempo sem clarificar se iria regressar aos Jogos Olímpicos ou até voltar a competir, Rebeca Andrade dominou o ciclo olímpico e foi cimentando o papel de grande ameaça à hegemonia da norte-americana. Foi campeã mundial all around em 2022, em Liverpool, e também conquistou a medalha de bronze no solo, antes de alargar o domínio nos Mundiais de 2023: em Antuérpia, foi ouro no cavalo (à frente de Biles), prata no all around, no solo e por equipas e ainda bronze na trave.
Rebeca Andrade vence Biles e sagra-se campeã de saltos nos Mundiais de ginástica
Era neste contexto que chegava a Paris. Com Simone Biles de volta e muitas expectativas em relação ao regresso da norte-americana, que poderia bater recordes e tornar-se uma das mulheres mais medalhadas de sempre nos Jogos Olímpicos, a ginasta brasileira era claramente o grande obstáculo a ultrapassar. Biles começou por ganhar, com os Estados Unidos a conquistarem o ouro na final all around por equipas e o Brasil a ficar com o bronze, ainda atrás de Itália, mas os resultados individuais já deixavam antecipar que os dias seguintes poderiam trazer surpresas.
Rebeca Andrade teve pontuações superiores a Simone Biles no salto (cavalo) e nas paralelas assimétricas, perdendo depois no solo e na trave, ainda que por margens muito curtas. A norte-americana voltou a ganhar no all around individual e no cavalo, onde a brasileira foi prata, mas o dia mais importante da carreira de Rebeca Andrade estava reservado para esta segunda-feira.
Já depois de a italiana Alice D’Amato ter surpreendido na trave, conquistando o ouro numa final onde Simone Biles caiu e acabou por não ir além do 5.º lugar, os olhos do mundo estavam postos na final do exercício de solo. Ao som de Beyoncé e Anitta, Rebeca Andrade saltou para o provisório primeiro lugar logo depois de terminar a respetiva apresentação. Seguiu-se Simone Biles. E os ecrãs da Bercy Arena mostraram o que poucos achavam ser possível: a norte-americana ficou em segundo lugar e Rebeca Andrade, que se demonstrou quase incrédula sentada no banco, tinha o ouro praticamente garantido.
E garantiu. A brasileira sagrou-se campeã olímpica de solo, superando Simone Biles num elemento onde a norte-americana tem sido dominadora na última década, e conquistou a sexta medalha olímpica da carreira: ou seja, superou as cinco dos velejadores Robert Scheidt e Torben Grael e é agora a atleta brasileira mais bem sucedida de sempre nos Jogos Olímpicos. No pódio, numa de muitas demonstrações de competição saudável a que a ginástica tem assistido na última semana, Biles e a medalha de bronze Jordan Chiles ajoelharam-se e fizeram vénias à nova campeã olímpica.
De forma irónica, a verdade é que esta poderá ter sido a última vez que Rebeca Andrade competiu no exercício de solo. Apesar de ter apenas 25 anos, as três cirurgias ao joelho direito já levaram a brasileira a assumir que dificilmente irá conseguir continuar a realizar as elaboradas coreografias.
“Com toda a certeza que o solo é o mais difícil para mim. Não são os exercícios em si, mas é pesado para a minha perna, para os meus joelhos, para os meus pés, para o meu tendão. São dores de cabeça que eu sinto que já não preciso de ter. Não preciso de provar mais nada a ninguém, já fiz tudo o que podia fazer dentro da minha modalidade e estou muito orgulhosa por tudo o que conquistei”, atirou nos últimos dias. Questionada exatamente sobre o mesmo tema já esta segunda-feira, referiu que “acredita” que este tenha sido o último solo, mas ressalvou que “o futuro a Deus pertence”.
Depois de três cirurgias a um único joelho, de uma infância difícil e de ter tido o azar de coincidir no tempo com a melhor ginasta de todos os tempos, Rebeca Andrade voltou a chegar ao lugar mais alto de um pódio olímpico. E o truque talvez seja não se levar muito a sério. Em resposta a uma pergunta sobre aquilo em que pensa antes ou durante as prestações, surpreendeu: “Viajo na maionese. Penso em receitas, nas receitas que quero fazer quando voltar para o Brasil”.