Índice
Índice
Pedro Santana Lopes sabia que este momento ia chegar quando se apresentou como candidato à liderança do PSD e atirou por antecipação: “O meu nome é Pedro Santana Lopes e assumo tudo o que fiz até hoje“. Rui Rio, seu adversário nas diretas de 13 de janeiro para presidir ao partido, recordou agora a curta experiência governativa do santanismo. A recente polémica sobre os debates nas televisões durante a campanha levou a uma guerra de comunicados entre os dois candidatos e o ex-autarca do Porto não perdoou ao homem de quem foi vice-presidente no PSD: “Nisto dos debates ele está a fazer exatamente as mesmas trapalhadas que fazia em 2004”.
Há um problema: olhando para trás, vemos que Rui Rio apoiou esse mesmo Santana Lopes em 2004, de quem era o número dois, durante as tais “trapalhadas” que agora critica — defendeu-o antes, durante e depois do mandato do Governo. E há um detalhe: nesse mesmo período, um outro social-democrata, Marcelo Rebelo de Sousa, agora Presidente da República, massacrava Santana nos seus comentários de domingo na TVI, exatamente por causa das tais “trapalhadas“.
Basta andar para trás na máquina do tempo. Falhas à parte, Santana Lopes não teve vida fácil: nem antes, nem durante, nem depois de ter sido primeiro-ministro. Nesses três momentos, teve o apoio do presidente da câmara municipal do Porto Rui Rio e a crítica feroz do ex-líder do PSD e comentador político Marcelo Rebelo de Sousa.
Quais foram essas “trapalhadas”? E o que disse cada um deles?
As confusão na formação de Governo
Tudo começou logo na formação do Governo, com Marcelo a registar cada um dos momentos infelizes do sucessor de Durão Barroso, que seguiu para presidente da Comissão Europeia. Ainda antes de o Presidente da República, Jorge Sampaio, admitir Santana como primeiro-ministro, no seu comentário de domingo Marcelo descrevia Santana como “hiperdecisório” e que, “como é muito intuitivo e pouco coordenado, tende a ter decisões múltiplas ao longo do tempo”. O comentador acrescentava: “Eu diria que, neste aspeto, não é um perfil mais indicado para um primeiro-ministro. Pergunto se não há várias hipóteses além de Santana Lopes. Se no atual Governo não seria possível encontrar uma solução de Governo”. Aviso à navegação: Santana teria ali um opositor.
Apesar de críticos de peso como Marcelo, Jorge Sampaio decidiu não dissolver o Parlamento e não convocar eleições antecipadas por haver uma substituição na chefia do Governo. A 9 de julho, o Presidente da República anunciou que o primeiro-ministro seria quem o PSD escolhesse. Ou seja: Santana Lopes. Antes da posse do Governo, no seu comentário de domingo, 11 de julho, Marcelo voltaria a atacar: “Santana Lopes vai ter de engolir muita coisa que disse na vida (…) Tornou-se conhecido, não como gestor, mas como político puro anti-sistema e antipoder. (…) Como é que se adapta isto à situação de ser poder?”
Neste contexto, Pedro Santana Lopes consegue numa semana, e “em tempo recorde” — como o próprio admite –, formar Governo com vários pesos pesados do partido, mas também com amigos como Rui Gomes da Silva e Henrique Chaves (curiosamente, ambos responsáveis por episódios que contribuiriam para a queda do Governo).
O comentador da TVI arranjaria forma de denunciar o “amiguismo” no Governo, dizendo que Santana Lopes, “com a ideia de colocar independentes, que todos desejam que entrem na vida política, companheiros de percurso, amigos de sempre e colaboradores próximos no Governo, fez com que o PSD, objetivamente, nas pastas cruciais, tenha sido o perdedor.”
O discurso atrapalhado de posse com parágrafos repetidos
Santana Lopes não esquece nem o que comeu ao almoço desse dia: bife com batatas fritas e ovo estrelado. Antes de tomar posse a 17 de julho de 2004, Santana sentou-se à mesa com Durão Barroso, o responsável pela escolha da ementa, para afinar a passagem de pasta. Antes da cerimónia ainda teve tempo para, sozinho, dar umas afinações ao discurso, que tinha sido escrito — por sugestão do próprio — por Manuel Dias Loureiro.
Ainda introduziu pequenas alterações no texto e disse ao seu colaborador Rui Ramos Lopes para as passar a computador e incluir no discurso. Começou logo aí a correr mal: na impressão ficaram repetidos parágrafos em várias páginas. “Coisas da informática“, justificaria Santana no livro que escreveu sobre este período. Como se não bastasse, o discurso era longo. Em pleno Palácio da Ajuda — quando já estava a ler o discurso — Santana decidiu encurtá-lo, uma vez que, como conta no seu livro Perceções e Realidade, era de uma “extensão absolutamente inapropriada para a temperatura de 40 graus que se sentia nas salas do Palácio da Ajuda“. Apercebeu-se também que havia parágrafos repetidos, o que, contou mais tarde, “dá uma sensação indescritível de insegurança quanto ao que está a seguir”.
Santana sentia-se desconfortável e — apesar de não ter desmaiado como outras pessoas na sala — tudo correu mal. A oposição aproveitou o brinde. José Sócrates, que pouco depois se tornou líder da oposição, acusou Santana de, literalmente, “andar aos papéis“. José António Saraiva, então diretor do Expresso, escrevia no semanário dois sábados depois, a 24 de julho, que aquele foi “o pior discurso que algum primeiro-ministro deve ter pronunciado no ato de posse“. O próprio Santana admite no livro: “Foi, de facto, um momento embaraçoso, aquele em que tive de saltar páginas.”
Por esta altura, Rui Rio era um dos apoios de Santana Lopes no partido e seu número dois. Mas Marcelo não perdoava as falhas na cerimónia: no dia seguinte, no comentário de domingo, aproveitou para denunciar a negligência do primeiro-ministro na atrapalhação na tomada de posse, sugerindo que nem sequer tinha lido o discurso antes: “O desleixo é que devia ter lido o discurso antes porque perceberia que era longo de mais.”
Governantes que desconheciam a pasta que iam tutelar
O líder do segundo partido (o CDS) que sustentava o Governo, Paulo Portas, terá ficado surpreendido com as pastas (ou pelo menos com a designação delas) que lhe foram atribuídas. O caso serviu para ridicularizar o Governo.
“Paulo de Sacadura Cabral Portas, ministro de Estado, da Defesa Nacional e dos Assuntos do Mar” — quando ouviu estas últimas palavras, no momento da posse, Portas deu sinal de estar surpreendido. A cara era de espanto e desconforto.
No livro Perceções e Realidade, Santana Lopes garante que falou com Portas sobre a designação do ministério e que “a única surpresa que o ministro Paulo Portas pode ter sentido foi sobre a ordem dos elementos constitutivos da designação do seu cargo. Mais nenhuma”. Sampaio confirma a versão de Santana. No segundo volume da biografia do ex-Presidente, da autoria de José Pedro Castanheira, é revelada uma conversa telefónica entre Portas e Sampaio no dia anterior, às 18h30. Conta Sampaio: “[Portas] veio, a título pessoal, e só para mim, dizer que (…) os Assuntos do Mar ficavam ligados ao Ministério de Estado — única maneira de salvar, por exemplo, estaleiros tendo como clientes a Defesa Nacional.”
Também Bagão Félix desconhecia que a sua pasta teria uma referência à “Administração Pública”, mas não fez um ar surpreendido. Isso não significa, porém, que não tenham existido outros “episódios rocambolescos”, como lhes chama o Expresso, no processo de formação do Governo. David Justino, por exemplo, era ministro da Educação de Barroso e ter-lhe-ão perguntado se queria continuar no cargo, mas depois não lhe voltaram a dizer mais nada. Justino passou então a ser dos maiores críticos no PSD da governação de Santana e, atualmente, coordena a moção de Rui Rio ao congresso de fevereiro. É assim uma das figuras da candidatura de Rio, que enfrenta Santana. Salter Cid, ex-secretário de Estado de Cavaco Silva, também terá sido convidado e logo depois desconvidado por alguém ter dito a Santana que era “mendista” — uma vez que Marques Mendes era um dos maiores opositores daquela sucessão de Durão Barroso.
Marcelo dá eco a esta desorganização total no seu partido. No comentário do domingo seguinte, define o Governo como sendo uma “manta de retalhos” e diz que foi formado “às pinguinhas”. O comentador dizia ainda que Santana teria de “arrepiar caminho” e que “impressiona a sensação de que as pessoas, várias delas com valor, não têm nada a ver com as funções que vão desempenhar.”
Nova confusão com os secretários de Estado
Na tomada de posse dos secretários de Estado — que teve lugar dias depois do discurso falhado, a 21 de julho –, Maria da Graça Carvalho só terá percebido naquele momento que também tutelava a Inovação. Pior aconteceu com Teresa Caeiro, como contava o Público no dia seguinte. Dias antes da posse, a centrista não tinha a garantia se seria secretária de Estado da Cultura. Mas, na véspera da posse, foi enviada uma lista para Belém (divulgada então pela Lusa) que a dava como certa na secretaria de Estado adjunta do ministro da Defesa e dos Antigos Combatentes — com a estranha justificação de que era “filha e neta de militares”. Ao final do dia, afinal, acabaria por tomar posse como secretária de Estado das Artes e Espetáculos.
A maioria divergia quanto ao que se passou. Fontes do CDS terão dito ao Público que foi Santana em cima da hora que achou que era demasiado Portas ter três secretários de Estado e então desviou Teresa Caeiro para a Cultura, onde a ministra lhe tinha pedido reforços. Já o PSD contava outra história: Santana não assegurou o lugar que Portas tinha pedido para Teresa Caeiro, na Cultura, e o líder do CDS colocou-a no ministério que tutelava. Na véspera, porém, com os protestos discretos de chefias militares, o primeiro-ministro conseguiu garantir o lugar na Cultura e só não conseguiu contactar o centrista porque ele estaria a viajar de helicóptero de Viana do Castelo para Lisboa.
O livro de posse foi bastante rasurado pelas alterações de última hora e a cerimónia atrasou-se. Mas houve mais: o secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Mário David, faltou à tomada de posse porque ninguém o avisou da cerimónia. Acabaria por tomar posse, sozinho, dois dias depois.
O Governo voltaria a não escapar às críticas de Marcelo, que, no domingo seguinte, afirmou que os secretários de Estado tinham “um nível melhor do que o dos ministros”, que eram de uma qualidade “claramente inferior às escolhas de Barroso”. A ideia era descredibilizar os governantes. Nesta altura, Rui Rio continuava no Porto a desempenhar as funções de autarca e só descia a Lisboa para reuniões da comissão política na sede na São Caetano à Lapa.
As férias em Ibiza e a festa da Moda Lisboa em dia de Orçamento
“Pouco barulho! Santana está aqui!“. Este era o título de um artigo do jornal 24 Horas, a 7 de agosto de 2004, um dos mais duros para com Santana Lopes, que dava conta que, “19 dias depois de ter tomado posse”, o primeiro-ministro tinha tirado férias numa “vivenda cheia de luxos na Quinta do Lago” e que as obras tinham sido interrompidas só para que o chefe de Governo não fosse incomodado. O estilo de vida de Santana noticiado pela imprensa dava uma imagem de displicência e negligência de um “bon vivant” que governava o país.
Durante esses fins-de-semana de férias, o primeiro-ministro almoçou com o futebolista Ricardo Sá Pinto e com a piloto Joana Lemos e teve direito a um editorial do diretor do Jornal de Negócios, Sérgio Figueiredo, a referir que eram estes os “conselheiros” de Santana Lopes. Mais tarde, no seu livro, Santana queixava-se desta abordagem da imprensa e dos comentadores: “Nunca vi isto acontecer a ninguém”.
Semanas depois, Santana parte para Ibiza, como o próprio conta no livro, para umas férias “num barco de amigos” que já o tinham convidado em anos anteriores. O próprio justifica que estava “extenuado” e que já tinha anulado as férias “marcadas” para o final de junho devido ao processo que o conduziu a primeiro-ministro.
Santana alega no seu livro que ainda trabalhou nos “quatro dias de Ibiza”: “Aproveitei para ter um almoço de trabalho com o presidente do Governo das Baleares e trocar mensagens com Zapatero, que também lá estava, normalmente, de férias com a família num iate“. Foi, a este propósito, atacado por Correia de Campos, que num artigo de opinião o acusou de gastar dinheiros públicos na deslocação, o que Santana negou.
Todos estes episódios ajudaram a fragilizar a imagem do primeiro-ministro. E a apresentá-lo como alguém sem perfil para o cargo de primeiro-ministro. Anos mais tarde, numa entrevista à Sábado em 2014, o próprio mordomo de S. Bento, Fernando Silva confirmava que Santana não era um formalista, mas estava muito longe de ser um Berlusconi: “Festas não havia. Mas ele recebia pessoas. Às vezes eram 21h ou 22h, apareciam ministros ou pessoas amigas. Ficavam até às 3h ou 4h. Ou 5h. Era conforme. E a gente tinha de lá estar. Eu ou outro colega. Nessa altura, tinha mais dois colegas que faziam o mesmo: serviam whisky, cafés e chás. Nessa fase gastava umas duas caixas de whisky JB por mês, de seis garrafas cada uma”, sobretudo para os amigos que frequentavam a residência oficial, não propriamente para o primeiro-ministro. Há um tom crítico do mordomo, mas o próprio reconhece que não assistiu a festas em S.Bento. De qualquer forma, havia um estilo de vida diferente do que é habitual na chefia do Governo.
Em outubro, há ainda uma notícia do Expresso a dar conta de que Santana Lopes terá ido dormir uma sesta a S.Bento — desmentida então pelo Governo (citada pela TSF como “alegada sesta”) — após o debate do Orçamento do Estado e antes de seguir para uma festa da Moda Lisboa.
Como Rio defendeu Santana e culpou a comunicação social
Marcelo ia registando, domingo após domingo, cada falha de Santana, mas Rio continuava a defender o líder do partido. A 1 de agosto, Marcelo é particularmente corrosivo, afirmando que “no debate parlamentar do Programa de Governo ficou patente que este Executivo não tem uma causa.” Marcelo vai ainda mais longe ao levantar dúvidas sobre as competências do primeiro-ministro: “Santana Lopes, que não sabe muito de economia, deve fazer o mesmo que Durão Barroso e estudar os dossiês, até porque deste debate parlamentar não ficou uma única frase decisiva deste primeiro-ministro“.
Apesar destas notícias que debilitavam a imagem de Santana Lopes e das críticas de vários setores do PSD (como Marcelo em público ou Ferreira Leite em privado), Rui Rio, que passara a número dois do PSD, defendia Santana em público. Numa entrevista concedida à revista Visão a 12 de agosto de 2004, Rui Rio dizia que Santana Lopes tinha “mais consistência do que a imagem que têm dele” e que era uma pessoa com “seriedade, lealdade e frontalidade”.
Rio, então vice-presidente do PSD, afirmava mesmo: “Só posso dizer bem de Santana. O meu estilo não tem o exclusivo da competência e do sucesso“. Atribuía ainda ao então primeiro-ministro uma “sensibilidade social que muitos militantes do PCP e do Bloco de Esquerda não têm.”
As notícias sobre as férias de Santana saíam nesta altura e mostravam algum desnorte no Governo, mas Rio culpava os jornalistas: “Este Governo e o primeiro-ministro merecem uma avaliação justa. E não merecem o que a maior parte da comunicação social está a fazer. Ainda o programa de Governo não estava aprovado e já as críticas eram mais que muitas.”
Num agosto quente para o Governo — em que Rio é das poucas vozes que se atravessa por Santana Lopes — Marcelo não desarma. A 22 de agosto, confessa que a subida dos preços do petróleo o levou a pensar “onde o país poderá parar” e antecipou que o Governo podia não cumprir o défice de 3%, “o que seria muito preocupante.” No domingo seguinte — após Santana dar a primeira entrevista como primeiro-ministro — o comentador diz que o primeiro-ministro “não fez história” e que a entrevista “não foi muito marcante.”
O atraso na colocação de professores, as taxas moderadoras e o ‘Barco do Aborto’
Rio não via (ou não queria ver), mas as “trapalhadas” continuavam. Na Educação, o ano escolar não arrancou da melhor forma para o Governo de Santana Lopes. Houve atrasos na colocação de professores e o Governo foi forçado a recorrer à colocação manual dos docentes, alegando a existência de problemas informáticos no sistema. A 22 de setembro só 62% dos estabelecimentos de ensino se encontravam em atividade e Jorge Sampaio — que também não deu tréguas a Santana — manifestou publicamente “muita preocupação” com o atraso. O próprio vice-presidente da bancada do PSD, Gonçalo Capitão, falava em resolver o problema dos professores primeiro e depois apurar “até às últimas consequências” as responsabilidades.
No mesmo mês, o Governo de Santana também teve problemas com as taxas moderadoras, que Santana Lopes preferia que fossem “diferenciadas”: quem tinha mais rendimentos, deveria pagar mais. O primeiro-ministro chegou a indicar que, para isso, existiriam cartões de utentes diferentes. Depois, recuou nessa ideia e, muitas vezes, entrou em contradição com o ministro da saúde. A 14 de setembro, o Jornal de Negócios chegaria a escrever que o “ministro da Saúde desconhece proposta de Santana sobre taxas.”
As notícias que iam saindo sobre as nomeações governamentais também não ajudavam. A 21 de agosto, o Expresso escrevia que “Santana tem mais membros no gabinete do que o número de ministros” e, três dias antes, no Correio da Manhã, dizia-se que a “equipa supera o número de ministros”. No seu livro, Santana alega que as 39 nomeações ficavam, por exemplo, abaixo das 59 de António Guterres.
O recém-empossado primeiro-ministro, sem direito a “estado de graça”, teve ainda problemas com o chamado “Barco do Aborto”, que entrou em águas portuguesas para desafiar um Governo de direita. O Tribunal Administrativo de Coimbra decidiu impedir o barco de atracar na costa portuguesa, o que foi um alívio para Santana já que o ministro da Defesa, Paulo Portas — a quem Santana delegou a gestão do caso — iria apresentar a demissão caso a decisão judicial fosse em sentido contrário. A situação acabou com o chefe do Governo a admitir alterações à Lei do Aborto.
A primeira viagem oficial, ao Brasil, também não ajudou a melhorar a imagem do primeiro-ministro. Os títulos do 24 Horas demonstram-no: “Santana não abdica dos 16 seguranças na primeira visita oficial” ou “Mulheres não o largam“.
A saída de Marcelo, o “anti-Santana” da TVI
Um dos comentários que mais irritaria Santana — que enumera todas estas críticas domingueiras no livro Perceções e Realidade — foi a 3 de outubro, após ter concedido “ponte” aos funcionários públicos a 4 de outubro (uma segunda-feira) devido ao feriado de 5 de outubro (à terça-feira). A partir da Ilha Terceira, de onde fez o comentário, Marcelo atirou que “a tolerância de ponto de que os funcionários públicos hoje beneficiam foi um péssimo exemplo dado pelo Governo de Pedro Santana Lopes (…) Isto é pior do que o pior de Guterres“. Rui Gomes da Silva, o ministro dos Assuntos Parlamentares que era mais santanista do que o próprio Santana, haveria de contra-atacar.
Por ironia, é a comparação a Guterres que deixa o Governo fora de si. Rui Gomes da Silva — um dos ministros mais visados por Marcelo nos comentários semanais — reage com estrondo: “Em toda a Europa trata-se de um caso único. Não há país algum com uma pessoa a perorar 45 minutos sobre política, sem ser sujeita ao contraditório e apenas a defender os seus interesses pessoais. Sinto-me revoltado com as mentiras e as falsidades que são proferidas todos os domingos, por um comentador que tem um problema com o primeiro-ministro”.
Gomes da Silva denuncia que “não há rigorosamente qualquer contraditório” e que estranha que “a Alta Autoridade para a Comunicação Social esteja em silêncio”. Acrescenta ainda que “nem o PS, o PCP e o Bloco de Esquerda, juntos, conseguem destilar tanto ódio ao primeiro-ministro e ao Governo como esse comentador que, sob a capa de comentário político, transmite sistematicamente um conjunto de mentiras com desfaçatez e sem qualquer vergonha.”
O proprietário da TVI, Miguel Pais do Amaral sugere a Marcelo que seja mais brando com o Governo. Marcelo ainda carrega mais. Pais do Amaral comunica a Marcelo que “isto assim não pode continuar”. E o comentador prepara-se para sair da TVI com estrondo.
Ricardo Salgado, amigo de Marcelo, oferece-se para interceder: “Eu amanhã tenho um encontro marcado com o Pedro Santana Lopes e vou-lhe dizer que isso é uma estupidez. Vai arranjar o sarilho da vida dele. Eles não têm noção da popularidade com que tu estás…” Santana sabia-o bem. É por isso que nesse dia terá dito a Salgado: “Ele que não saia da TVI”. Mas o homem-forte do BES já não vai a tempo de impedir Marcelo.
Em nota enviada à Lusa, quase em simultâneo com a reunião entre Santana e Salgado, Marcelo anuncia a saída da televisão: “Na sequência de uma conversa da iniciativa do presidente da Media Capital, Miguel Pais do Amaral, decidi cessar, de imediato, a colaboração na TVI, a qual sempre pude livremente conceber e executar durante quatro anos e meio.” Ao dizer “conversa da iniciativa do presidente”, Marcelo sugere assim que estava a ser pressionado para ser menos crítico de Santana e do Governo. O primeiro-ministro estava debaixo de fogo: falou-se em “censura”. Sampaio chamou Marcelo a Belém, ouviu-o antes do próprio primeiro-ministro, e deu ainda mais força ao caso.
Santana ainda faria um congresso em Barcelos — a 12, 13 e 14 de novembro — o da sua entronização como líder. Mantém como secretário-geral Miguel Relvas e tem nas suas vice-presidências nomes como Rui Rio, Nuno Morais Sarmento, José Luís Arnaut ou Pedro Pinto. A presidir à mesa do Congresso está Manuel Dias Loureiro.
Neste congresso — em que o PSD cerra fileiras para se aguentar no poder — Rui Rio dá a cara por Santana e cimenta o seu lugar como número dois do partido. Como consta da segunda parte da biografia de Jorge Sampaio, da autoria de José Pedro Castanheira: “[Após o Congresso] chefiada por Rui Rio, a nova direção transmite a Sampaio o parecer ‘unânime’ do congresso de que a coligação deve manter-se até 2006 e ‘depois se verá’…”.
A ida à discoteca, a moeda de Cavaco e a demissão de Chaves
A saída de Marcelo da TVI força a mexidas no executivo, que o acabariam por fazer cair. Para proteger Rui Gomes da Silva — que tinha criticado o espaço de comentário do professor — Santana passa o seu ministro dos Assuntos Parlamentares para Adjunto no final de novembro. O problema é que deixa Henrique Chaves, que era o ministro adjunto, apenas com a tutela do Desporto.
Já estamos em novembro de 2004, num fim de semana (27 e 28 de novembro) que Santana Lopes considera “horribilis“. Nesse sábado, Cavaco Silva publica um artigo no Expresso onde explicava que em economia a “má moeda” expulsava a “boa moeda” e que em política devia ser ao contrário, embora cada vez mais fosse difícil aos partidos manter os melhores. “Os agentes políticos incompetentes afastam os competentes. Segundo a lei de Gresham, a má moeda expulsa a boa moeda”, escrevia Cavaco. O nome de Santana Lopes nunca é mencionado. Mas o artigo está cheio de segundos significados e o alvo é o primeiro-ministro e o seu Governo.
Nesse mesmo sábado, Santana vai a um aniversário (festa privada) numa discoteca em Alcântara de, segundo conta mais tarde no livro, “alguém que tinha ajudado muito” uma irmã sua. A versão de Santana era bem diferente da contada nos jornais: “Não me demorei mais de meia hora, tendo saído para me deitar o mais cedo possível, uma vez que, no dia seguinte, às sete e meia da manhã, tinha de estar a caminho de Trás-os-Montes”. A Rádio Renascença, por exemplo, noticiava de madrugada que “Santana Lopes irrompeu esta noite por uma discoteca de Lisboa com a sua segurança“.
Henrique Chaves, após falar com a família, considera a passagem para a pasta do Desporto uma “despromoção” e demite-se com estrondo dias depois de ter aceitado tomar posse. Santana sabe pela Lusa. No comunicado de demissão, Chaves é violento com Santana: “Não concebo a vida política e o exercício de cargos públicos sem uma relação de lealdade entre as pessoas”. Diz ainda que houve uma “grave inversão dos valores e da lealdade“. Henrique Chaves era amigo pessoal de Santana Lopes. A imagem que passou foi: se nem o amigo segurou, é porque não tem mão no Governo. Jorge Sampaio dissolveu a Assembleia da República e o Governo de Santana caiu.
O “menino guerreiro” com apoio de Rio até depois do fim
Já não serão “trapalhadas” de 2004, como define Rui Rio, mas foram erros de 2005. Após a dissolução da Assembleia da República, Santana Lopes entra em campanha para ir novamente a votos. Do outro lado está José Sócrates, pelo PS. Santana dá tiros no pé. O vídeo do Menino Guerreiro foi a marca de uma campanha falhada — e ainda seria acusado de fazer comentários sobre uma alegada homossexualidade de José Sócrates que começou a ser difundida na internet. Num almoço com mulheres, Santana diz que lhe soube bem o apoio das mulheres, acrescentando que “outros têm outros empurrões, outros colos.” Santana negou sempre que esta fosse uma indireta para Sócrates, dizendo que era um “divorciado com filhos”, tal como Sócrates, e que não se metia na vida privada de ninguém.
A campanha foi desastrosa. Em fevereiro de 2005, o PS consegue a sua primeira maioria absoluta e o PSD tem um péssimo resultado, com apenas 28,77% dos votos. Santana demite-se, anuncia que não é recandidato à liderança do partido, e convoca um congresso extraordinário. Porém, faz um aviso à navegação: “Não vou estar por aqui mas vou andar por aí”.
Marcelo tinha perdido o seu espaço de comentário na TVI (voltaria em 2005, mas na RTP), mas Santana também perdia o poder. O PSD estava desfeito. Já Rui Rio continuava como presidente da câmara municipal do Porto e uma das figuras de referência no partido.
Mesmo já depois da queda do Governo de Santana Lopes, antes do congresso de abril de 2005, Rui Rio assumia em entrevista à revista Sábado ser um defensor da ida do agora adversário para o poder. “Vamos ser claros: em julho, ajudei a viabilizar a solução que o partido esmagadoramente queria para substituir Durão Barroso”, lembrava.
Rui Rio recordava ainda que, com Durão “na Comissão Política, era formalmente o número três”, mas com a saída de Barroso se torna, “por essa via, número dois”. Ao que acrescenta: “Uma vez que o número dois do Governo, Manuela Ferreira Leite, não apadrinhava a solução, a minha posição era algo decisiva. Não tenho dúvidas que a esmagadora maioria do partido, não era uma curta maioria, não queria eleições antecipadas e queria que o sucessor do Governo fosse Santana Lopes.”
Mesmo após o que hoje chama de “trapalhadas”, em abril de 2005, Rio destacava que, embora os estilos fossem “muito diferentes”, tinha de interpretar a vontade do partido e não se arrependia do apoio. “Hoje voltaria a dar corpo a essa solução“, disse. Rio apoiou Santana até ao fim. Mesmo depois de todos estes episódios serem conhecidos. Marcelo — que muitos acreditam que prefere Santana a liderar o PSD e que tentou dar esse sinal com um almoço em Belém antes do anúncio da candidatura — arrasava Santana domingo após domingo.