“O maior português de sempre”
Os portugueses têm pouca inclinação para a disciplina, para o planeamento, para o procedimento metódico e sequencial, para o trabalho concertado para um fim comum e para a observância de regras e prazos, mas, tendo consciência de que esta disposição inata é propícia ao caos, sentem a necessidade de serem guiados por alguém que contrarie a sua índole e imponha a ordem: o pai severo, o líder autoritário.
Em Abril de 2024, o estudo 50 anos de Democracia em Portugal: Aspirações e Práticas Democráticas: Continuidades de Mudanças Geracionais, realizado pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), da Universidade de Lisboa, revelou que, apesar de 87% dos portugueses terem declarado preferir a democracia a qualquer outro regime político, 47% manifestaram simpatia pela ideia de serem governados por “um líder forte que não tivesse de preocupar-se com o parlamento nem com eleições”. Uma sondagem de natureza similar, divulgada também em Abril de 2024 e realizado pela GfK Metris, sob orientação do Instituto de Ciências Sociais da Universidade (ICS) da Universidade de Lisboa e do Instituto Superior de Ciências e Tecnologias Empresariais (ISCTE) para o Expresso/SIC, confrontou os inquiridos exactamente com a mesma frase e obteve 34% de concordância e 43% de discordância.
A elevada percentagem de adeptos da governação por um homem forte justificou alguma agitação mediática – exacerbada pelo simbolismo de se comemorarem os 50 anos da revolução que pôs termo à ditadura e pelo facto de o Chega ter conquistado 50 lugares nas eleições legislativas do mês anterior – mas não deveria constituir surpresa para quem tivesse presente que o programa televisivo “Grandes Portugueses”, que decorreu em 2006-07, na RTP1, resultou na eleição, por “voto popular”, de António de Oliveira Salazar como “o maior português de sempre”, com mais do dobro dos votos do segundo classificado, Álvaro Cunhal – 41.0% contra 19.1%.
O quer o povo dizer quando vota?
Para que se apreenda o verdadeiro significado da “eleição” de Salazar, devemos deter-nos no significado de “o maior português de sempre”. Poderá haver quem tente desvalorizar o significado político e sociológico da escolha de um ditador alegando que Salazar foi, indiscutivelmente, uma das figuras mais marcantes da história de Portugal, independentemente do juízo que se faça sobre o seu legado, tal como eleger o terramoto de 1755 como evento mais marcante da história de Portugal não significaria, evidentemente, que os votantes vissem nele algo de benéfico. Porém, a ideia de que o que estaria em causa nesta eleição seria apenas a magnitude das marcas deixadas na história, não uma valoração positiva das marcas, não tem sustentação. A designação “o maior português de sempre” tem conotação obviamente favorável e a ideia subjacente ao programa, ainda que expressa de forma pouco clara e consistente, era escolher os portugueses que mais se destacaram pela coragem, pela inteligência, pelo talento ou pela determinação e que contribuíram para erguer alto o nome do país; o website dos “Grandes Portugueses” afastava qualquer dúvidas, ao apelar ao público a participar na escolha do “português que você mais admira”.
É sintomático que, numa primeira fase, a lista de personalidades pré-seleccionadas pela organização não incluísse figuras políticas do Estado Novo e que só após alguma polémica os nomes de Salazar e Marcelo Caetano fossem admitidos (na votação, Caetano ficaria em 31.º lugar, entre Luís Figo e o matemático Pedro Nunes). Esta tentativa de restringir à partida o leque de candidatos sugere que a organização estaria consciente do apreço latente por Salazar e de como este poderia traduzir-se numa votação popular susceptível de criar “embaraços” – como veio a acontecer.
Esta vitória conclusiva de Salazar foi tanto mais “inesperada” por a orientação política dos portugueses, tal como expressa nas eleições legislativas de 2005, se situar, então, claramente à esquerda: o PS alcançara a maioria absoluta na Assembleia da República, com 121 deputados e 45.0% dos votos, e a CDU e o BE tinham obtido 7.5% e 6.3% dos votos, respectivamente; o PSD e o CDS/PP quedaram-se por 28.6% e 7.2%, respectivamente, e, o que é ainda mais significativo, a extrema-direita não tinha expressão da política portuguesa – o único partido desta área a concorrer, o Partido Nacional Renovador (entretanto rebaptizado, em 2020, como Ergue-te), obteve uns irrisórios 0.16% dos votos.
Esta discrepância pode ter várias explicações: a mais óbvia é que a votação dos espectadores de um concurso televisivo não tem o rigor, transparência e isenção de uma eleição democrática (para começar, nada impede que um indivíduo vote tantas vezes quantas queira) e pode ser facilmente “sequestrada”, ou, pelo menos, fortemente enviesada, por grupos de fãs empenhados e organizados. Por outro lado, se as eleições democráticas assentam – e bem – no princípio de que o povo é soberano, nada garante que o povo seja ou esteja bem informado, possua memória histórica, seja congruente, que não vote por “motivos fúteis” e não sofra de dissonância cognitiva – enfim, que o povo seja sábio.
Assim sendo, há margem para interpretar a eleição de Salazar como “o maior português de sempre” como indicando que, em 2007, existia na sociedade portuguesa uma ampla simpatia por ideias típicas da extrema-direita (nomeadamente a apetência para se ser governado por um “homem forte” e o desprezo pela democracia parlamentar), que, por diversas razões, ainda não se tinha materializado em resultados eleitorais. Tal só aconteceria a partir de 2019, com a fundação do Chega, e a rapidez com que este partido se afirmou só terá surpreendido os politólogos mais distraídos. Um povo que escolhe inequivocamente Salazar como “o maior português de sempre” tem fortes probabilidades de ser terreno fertilíssimo para acolher as sementes de um projecto político de extrema-direita – e quem sabe se não terá sido um calculismo fundado neste indicador do real sentimento político da população portuguesa, e não uma convicção política sincera e sólida, que terá pesado na decisão de André Ventura de deixar o PSD para fundar o Chega.
Agora que o Chega se tornou na 3.ª força política nacional, obtendo, nas eleições legislativas de 2022, 18% dos votos, dissipou-se a reprovação social que inibia a expressão pública de ideias, mundividências e discursos tidos por “reaccionários” ou “autoritários”, pelo que não é inesperada a apetência pelo “líder forte” expressa nos dois estudos de opinião acima mencionados, nem o facto de, na sondagem GfK, 23% dos portugueses terem manifestado concordância com a frase “se os políticos portugueses seguissem os ideais de Salazar, Portugal reconquistaria a sua grandeza”. Embora 54% tenham discordado desta afirmação, não deixa de ser matéria para meditação que, em 2024, 1) um em cada quatro portugueses ainda sonhe em recuperar uma (suposta) grandeza nacional perdida e 2) creia que o caminho para esse “renascimento” passe por os políticos do século XXI adoptarem os ideais de um político nascido em 1889. Graças à facilidade de mobilizações de massas propiciada pelas redes sociais, é provável que, a repetir-se hoje a eleição do “maior português de sempre”, Salazar ganhasse com vantagem ainda mais dilatada, tendo como 2.º classificado, já não Álvaro Cunhal (quanto mais não seja por as inelutáveis leis da vida e da morte terem erodido significativamente o eleitorado do PCP), mas Cristiano Ronaldo, que, na eleição anterior, quando tinha apenas 22 anos e a sua carreira estava apenas a começar, se ficara pelo 69.º lugar.
A voz de Salazar
Mas estarão os 23% de portugueses que defendem que os políticos portugueses deveriam seguir os ideais de Salazar, conscientes de quais eram estes ideais? Estarão eles a par da história do Estado Novo? Ou terão apenas uma vaga e nebulosa saudade por um tempo que não viveram, ou que “recordam” com os óculos róseos com que a velhice olha para a sua juventude, e que imaginam ter sido mais tranquilo, ordeiro e previsível e em que os conceitos de família, identidade e nação estavam (aparentemente) talhados em granito e tinham aceitação consensual?
Embora exista uma abundante produção de livros e artigos sobre Salazar e o Estado Novo, para nos inteirarmos dos “ideais de Salazar” é sempre útil examinar as palavras do próprio e, para esse efeito, Manuel S. Fonseca coligiu excertos dos “seus discursos, entrevistas, confissões e desabafos íntimos”, num livro intitulado Salazar, as citações: Poder, solidão, amargura, acabado de editar pela Guerra & Paz e que vem juntar-se a duas outras recolhas de citações de Salazar disponíveis no mercado, uma da autoria de Fernando de Castro Brandão (2023, Livros d’Hoje) e outra de Paulo Neves da Silva (2013, Casa das Letras), o que dá ideia do interesse que o ex-presidente do Conselho suscita.
Não conhecendo este escriba o livro de Castro Brandão, pode, todavia, afirmar as claras vantagens do livro de Manuel S. Fonseca sobre o de Neves da Silva. Este último, que agrupa as citações segundo uma vaga organização temática, é parco e impreciso na identificação das citações e atribui a maior parte delas a compilações de discursos, sem explicitar as datas e ocasiões em que foram efectivamente proferidos; a introdução é telegráfica e pode induzir em erro quem nada saiba da história portuguesa do século XX, ao mencionar que Salazar se afastou de poder em 1968, como se o tivesse feito voluntariamente. O livro de M.S. Fonseca dispõe as citações por ordem cronológica, atribui a todas uma data e uma circunstância e agrupa as citações por década, fazendo preceder cada década de um texto conciso de contextualização, que refere os principais eventos da história nacional e mundial e da vida de Salazar.
Ao contrário de outros líderes de extrema-direita seus contemporâneos, como Hitler e Mussolini, cujo carácter sanguíneo e quezilento os levou a anunciar clara e enfaticamente ao que vinham, Salazar era um dissimulador nato e esforçava-se por conferir uma aura benévola às iniquidades do seu regime. Não possuindo carisma nem dotes de orador, nunca improvisava os seus discursos, redigindo-os meticulosamente, num português de vocabulário cuidadosamente escolhido e sintaxe elaborada, mas clara; para mais, debitava-os numa salmodia monocórdica, santarrona e algo lamentosa, rescendendo a seminário, e numa voz aflautada e tremelicante, que não podia contrastar mais com a fanfarronice histriónica de Mussolini e com a vociferação apopléctica de Hitler.
Salazar intemporal
● “É velha pecha em Portugal levarem os portugueses vida com que não podem, assim como não administrarem devidamente aquilo de que dispõem”.
Foi Aníbal Cavaco Silva quem, em 2011, quando da assinatura do memorando que colocou a governação de Portugal sob supervisão da troyka, ficou com fama de ter advertido que “não podemos continuar a viver acima das nossas possibilidades, a gastar mais do que aquilo que produzimos e a endividar-nos perante o estrangeiro”, mas, afinal, estava apenas a repisar o aviso acima, deixado por Salazar numa entrevista a António Ferro, publicada no Diário de Notícias de 12.07.1932.
● “Defendemos que o trabalho da mulher casada e geralmente até o da mulher solteira, integrada na família e sem a responsabilidade da mesma, não deve ser fomentado: nunca houve nenhuma dona-de-casa que não tivesse nada para fazer. […] O trabalho da mulher fora do lar desagrega este, separa os membros da família, torna-os um pouco estranhos uns aos outros. Desaparece a vida em comum, sofre a obra educativa das crianças, diminui o número destas”.
Se este trecho surgisse a meio do livro Identidade e família, editado em Março de 2024, ninguém estranharia e muito menos adivinharia que data de 1933 – provém de um discurso em que Salazar explanou as bases do Estado Novo. Infelizmente para Salazar, as mulheres não se conformaram ao papel que ele lhes destinara, o que levou a que, em 1952, se lamentasse a Christine Garnier: “Que hei-de eu fazer, em Portugal? Reconheço que os meus esforços para reconduzir a mulher às antigas formas de viver são quase todos vãos”. Setenta e dois anos depois, muitos dos coordenadores e autores de Identidade e família ainda têm esperança de triunfar onde Salazar admitiu a derrota.
[Salazar agradece uma manifestação de apoio das mulheres portuguesas, a 28.04.1959, por ocasião do seu 70.º aniversário:]
● “A verdade é que nem temos o juízo claro nem a vontade firme: na crítica oscilamos sempre entre o elogio e o insulto, e nos empreendimentos caímos a cada passo do entusiasmo ao desânimo”.
Estas palavras provêm de um artigo publicado em 1927, o que mostra que o diagnóstico do povo português como ciclotímico já tem (pelo menos) 97 anos. É provável que esta disposição nos seja inata e não exista cura para ela.
● “Estou com uma constipação formidável. […] É-me impossível estudar ou compreender o que leio; bronco, pesado, estou incapaz de aprofundar um problema, de apanhar a força de uma razão, de perceber a nuance de uma ideia, de manter a sintaxe dentro de regrados limites; em suma, estou em óptimas condições para escrever nos jornais”.
O trecho, proveniente de um artigo publicado num jornal em 1927, mostra que o desprezo ou aversão pela imprensa entre os líderes políticos portugueses é antiga. Na já mencionada entrevista de 1932 a António Ferro, Salazar retomou a ideia de forma menos sarcástica e mais contundente: “A nossa imprensa […] oferecia-nos, por vezes, nalguns dos seus órgãos, a triste imagem de um saguão: intrigas, insultos, insinuações, personalismos, provincianismos, baixa intelectualidade. Ora, o jornal é o alimento espiritual do povo e deve ser fiscalizado como todos os alimentos”.
Os governantes e líderes políticos do Portugal pós-1974 já não podem (para grande pena de alguns) recorrer à censura para policiar a comunicação social ou ao Secretariado Nacional da Informação para substituir as notícias por propaganda, mas:
1) Têm empregado outras estratégias para tentar controlar a comunicação social (ver Como Sócrates tentou controlar a comunicação social);
2) Têm fingido não lhe dar importância (Aníbal Cavaco Silva: “Dedico cinco minutos de manhã e cinco minutos à tarde a ler os jornais, porque tenho muito que trabalhar” e “Não acompanho o dia a dia da comunicação social”);
3) Têm-na denunciado como inimiga da democracia (Rui Rio: “A comunicação social […] tem uma enorme responsabilidade na degradação do regime democrático em Portugal […] Demasiadas notícias deturpadas. Demasiadas notícias sem verdade, rigor, isenção e independência”);
4) Têm insinuado que ela é instrumentalizada por poderes ocultos (Luís Montenegro denunciando os jornalistas que “fazem a pergunta que o outro sopra ao ouvido ou [lêem] a pergunta num SMS no telemóvel”).
A missão civilizadora de Portugal
● “Nós somos filhos e agentes de uma civilização milenária que tem vindo a elevar e converter os povos a [uma?] concepção superior da própria vida, a fazer homens pelo domínio da razão sobre os instintos” (discurso, 14.08.1936).
● “A Europa sente-se responsável [pelo vento de revolta que sopra em várias regiões de África] e por uma espécie de cobardia colectiva parece envergonhar-se da obra que ali tem realizado. […] A civilização do Ocidente perdeu infelizmente a coragem de afirmar a sua superioridade” (discurso, 30.05.1956).
● “Sem África, a Europa não pode manter-se; e sem a Europa, os Estados Unidos não podem exercer o papel de potência mundial […] A África é o maior, talvez o último recurso da Europa” (conversa com o embaixador britânico, 17.05.1957)
● “A autodeterminação [das colónias] levará ao caos ou à substituição de soberania efectiva, mas nunca à independência e à liberdade” (comunicação na Emissora Nacional, 01.11.1957).
● “A ideia de superioridade racial não é nossa; a da fraternidade humana sim […] A sociedade plurirracial é, portanto, possível, e tanto de cepa luso-americana, como de base luso-asiática, segundo se vê em Goa, ou luso-africana, em Angola e Moçambique. Nada há, nada tem havido que nos leve a conclusão contrária. Simplesmente, essa sociedade exclui toda a manifestação de racismo […] Estamos em África há 400 anos, o que é um pouco mais do que ter chegado ontem. Levamos uma doutrina, o que é diferente de ser levados por um interesse” (entrevista ao jornal Corriere della Sera, 30.03.1960).
● “Que não me acusem de racismo por dizer que os negros não têm as mesmas aptidões que os brancos; é uma constatação evidente que é fruto da experiência. Os negros precisam de estar enquadrados” (entrevista ao jornal Aurore, 12.10.1964).
● “A verdade é que o amaldiçoado colonialismo – sem que eu pretenda defender os erros ou excessos cometidos – levou a paz a África, permitiu o convívio das populações, promoveu o crescimento demográfico, dotou o continente de mais largos meios de comunicação, descobriu e explorou riquezas e pôs os seus 270 milhões de homens em contacto com a civilização cujos segredos lhes desvendou e colocou ao seu dispor” (discurso, 13.04.1966).
A ideia de que colonialismo português foi mais empático, suave e benévolo do que o de qualquer outra nação europeia (em sintonia com a teoria do lusotropicalismo de Gilberto Freyre) e foi, feitas as contas, uma benesse para os povos colonizados, bem como a ideia de que os portugueses são menos racistas do que a maioria dos povos, continuam, 54 anos após a morte de Salazar, firmemente arreigadas no imaginário português, como atesta a reacção a três afirmações constantes da já mencionada sondagem GfK Metris para o Expresso/SIC:
“A história colonial portuguesa caracterizou-se pela capacidade de os portugueses se misturarem com os povos colonizados”: 56% concordam, 16% discordam;
“O colonialismo português foi fundamental para o desenvolvimento dos povos colonizados”: 52% concordam, 16% discordam;
“Comparando com outros países europeus, as tensões e conflitos entre os portugueses e as pessoas de outras origens que vivem em Portugal são menores”: 58% concordam, 14% discordam.
As firmes e muitas vezes reiteradas convicções de Salazar de que os portugueses tinham uma vocação “missionária e civilizadora” a desempenhar em África e na Ásia, de que as colónias portuguesas eram absolutamente inalienáveis e de que o Ultramar português representava a projecção da “Nação na sua verdadeira grandeza” apresentam inesperadas fissuras. A mais óbvia é a de, em 36 anos como presidente do Conselho (antecedidos de cerca de quatro anos como ministro das Finanças), Salazar nunca ter posto pé no Ultramar e ter dele um conhecimento superficial, parcelar e deturpado. O paradoxo da falta de interesse em ter conhecimento em primeira mão dos territórios que defendia serem tão portugueses como o Minho ou o Algarve só é ligeiramente atenuado pelo facto de Salazar quase não ter viajado para lado algum – talvez padecesse, num grau extremo, de hodofobia ou efodiofobia.
O excerto mais intrigante compilado neste livro provém de uma carta ao primeiro-ministro australiano, datada de 28.10.1961, que arrasa o mito erguido pelo Estado Novo sobre a ancestral e ininterrupta implantação de Portugal em África e desmente outras proclamações do próprio Salazar: “Ouve-se por vezes afirmar que muito mais poderia ter sido feito, desde que Portugal se ufana de estar em África há 500 anos. Esquece-se que o trabalho intenso das potências europeias em África começou praticamente à volta da data da conferência de Berlim (1885) e só nas últimas décadas a ciência permitiu a exploração do interior”. Com efeito, é sabido que a presença de Portugal e restantes potências europeias em África foi (com excepção da orla mediterrânica) pontual e diáfana até à viragem dos séculos XIX-XX (ver capítulo “A expansão dos impérios europeus” em Como as doenças e as epidemias moldaram o mundo, e capítulo “Entretanto, em África…” em O que o mundo moderno deve à exploração de África e dos africanos), o que é surpreendente é que Salazar o admita numa carta a um governante estrangeiro.
A aversão à democracia e a justificação da ditadura
A aversão à democracia é uma das facetas de Salazar mais representadas nesta compilação de citações. Os trechos em que apresenta o regime democrático e o parlamentarismo como sinónimo de desordem, irresponsabilidade, corrupção e descalabro das finanças públicas fazem lembrar algumas considerações de Adolf Hitler em Mein Kampf (ver capítulo “Contra o parlamentarismo” em Mein Kampf: Quem tem medo deste best-seller?) e são próximos da retórica de alguns partidos populistas europeus do presente. O populismo tem uma longa tradição de defender que, perante o “caos” democrático, não há outra alternativa que não seja o autoritarismo (ver capítulo “O caos como estratégia” em Donald Trump: A arte do ludíbrio na era digital). Este é quase sempre apresentado como uma medida temporária destinada a repor a ordem – é o que faz Salazar num artigo publicado em 1929: “Todos os sacrifícios feitos para a conquista da ordem e do poder financeiro são condições indispensáveis não só para prosseguir no caminho encetado sob o ponto de vista das finanças e da economia pública, mas ainda para centrar com eficácia a plenitude da governação directamente subordinada à finalidade política, social e moral, para onde deve tender a Ditadura transitória que os males e desordens anteriores tornaram necessária”. Num discurso a 30.07.1930, refinou o farisaísmo: “Suspendendo direitos que a Nação de facto não exercia, impondo a uns silêncio, assegurando a todos a tranquilidade e segurança, a Ditadura criou à Governação pública as condições necessárias do trabalho fecundo”.
De entrada, todos os autocratas se socorrem deste argumento, ao mesmo tempo que empreendem diligências para assumir o controlo de todo o aparelho de Estado, neutralizar a oposição e manter-se indefinidamente no poder, mas no caso de Salazar a hipocrisia é redobrada, pois enquanto os outros ditadores do seu sector político sempre deixaram evidente a sua sede de poder, Salazar sempre proclamou o seu absoluto desapego ao poder: “Este homem que é Governo, não queria ser Governo. Foi deputado; assistiu a uma única sessão e nunca mais voltou. Foi ministro, demorou-se cinco dias, foi-se embora e não queria mais voltar. O Governo foi-lhe dado, não o conquistou […]; não conspirou, não chefiou nenhum grupo, não manejou a intriga, não venceu quaisquer adversários pela força organizada ou revolucionária. […] Tem todo o ar de lhe ser indiferente estar ou ir; em todo o caso, está” – foi assim que se descreveu a si mesmo no prefácio a Salazar: O homem e a sua obra (1932), de António Ferro. Estava, simplesmente, e continuou a estar durante mais 36 anos.
Em 1938, com a “ditadura transitória” já convertida em ditadura vitalícia, explicava que “a censura […] constitui a legítima defesa dos Estados livres, independentes, contra a grande desorientação do pensamento moderno, a revolução internacional da desordem”, e em 1949 teve o desplante de afirmar que “a generalidade dos portugueses não teve nunca tanta liberdade como no actual regime”.
Em 1966, num discurso nas comemorações da revolução de 28 de Maio, justificava a sua permanência no poder com o abnegado cumprimento de um dever a que não poderia furtar-se: “Eis um belo momento para pôr fim nos 38 anos que levo feitos de amargurado governo [Salazar contabiliza aqui o seu período como ministro das Finanças]. Só não me permito a mim próprio nem o gesto nem o propósito, porque, no estado de desvairo em que se encontra o mundo, tal acto seria tido como sinal seguro de alteração da política seguida em defesa da integridade pátria e arriscar-se-ia a prejudicar a situação definitivamente conquistada além-mar pelos muitos milhares de heróis anónimos que ali se batem”. Repisaria a ideia em Abril de 1968, em conversa com o ministro Franco Nogueira: “Se o terrorismo [i.e., a luta dos povos africanos pela autodeterminação] acabasse, ou se pelo menos acabasse numa das três províncias afectadas, ia-me embora”. Salazar acabou por “ir-se embora” uns meses depois, mas a contragosto e em resultado de um acidente doméstico envolvendo uma cadeira pouco sólida ou uma banheira escorregadia (M.S. Fonseca não menciona a primeira hipótese e opta pela segunda, menos difundida), aliado ao avanço da decrepitude dos vasos sanguíneos que irrigavam o seu cérebro.
Salazarismo e nazismo
Para os muitos que usam o termo “fascismo” com leviandade e falta de rigor para designar todas as autocracias de direita, como se fossem todas iguais, seria proveitoso ler as citações em que Salazar exprime a sua aversão ao ideário de Hitler, nomeadamente “a sede de ‘germanização’ […], a ideia fixa económica, a racionalização da produção levada até aos últimos limites, a estranha sedução sobre o espírito germânico do modelo único e rígido para toda a gente”. Em Setembro de 1941, numa altura em que nada parecia poder deter a marcha vitoriosa da Alemanha, Salazar considera – em privado – que o mal menor seria a Alemanha contentar-se em “explorar as economias dependentes sem subjugar os espíritos dos povos e a sua liberdade”, mas logo admite que o mais provável é que “a Alemanha tenderá a seguir no caminho do domínio até onde lhe seja possível”. A 18 de Maio de 1945, terminada a guerra na Europa, Salazar já exprime em público (na Assembleia Nacional) e em termos mais vigorosos a sua rejeição do ideário nazi: “Estavam na doutrina nazista incluídos dois conceitos: o de Estado totalitário, a cuja potência e a cujos fins tudo estava subordinado […]; [e] o de Estado hegemónico na organização da sociedade internacional, baseado na superioridade racial, de cultura e de força, entre nações dependentes, cuja segurança e destino deviam ser garantidos pelo primeiro”. Nesse mesmo discurso, quiçá temendo que estivesse iminente um rearranjo da ordem política mundial imposto pelas potências vitoriosas, que não estariam favoravelmente impressionadas com o posicionamento claramente à direita e as tomadas de posição dúbias (ou até cúmplices) das duas ditaduras ibéricas durante os anos em que o III Reich estivera na mó de cima, Salazar foi mesmo ao ponto de denunciar “os absurdos e exageros monstruosos” do nazismo, fruto de “aberrações da inteligência e falta de limites morais”. O que é curioso é que, ao mesmo tempo que Salazar rejeita terminantemente a subordinação dos povos europeus à Alemanha, tendo por justificação a suposta superioridade racial, cultural e militar germânica, considera perfeitamente legítimo que os povos das colónias se subordinem a Portugal, com base na suposta superioridade racial, cultural e militar lusitana e na suposta missão civilizadora de que Portugal estaria investido.
Epitáfio
Crónica do tempo (1990), romance de Maria Isabel Barreno cujo enredo se espraia por uma parte substancial do século XX português, inclui uma perspicaz síntese de Salazar e da sua relação com o país que governou: “Salazar, tirano triste. Há tiranos benévolos, tiranos loucos. O nosso foi um tirano triste e solitário, este era o seu carisma. De tristeza e solidão convenceu os portugueses, como de um destino natural”. É um diagnóstico que está alinhado com o subtítulo que M.S. Fonseca escolheu para esta compilação de citações: “Poder, solidão, amargura”.
Das citações de Salazar emerge outra característica central do seu carácter: a sonsice, que foi fundamental para que Salazar conseguisse manter-se no poder durante tanto tempo, para mais, num mundo que passou por fortes convulsões. A mais tremenda destas foi a II Guerra Mundial, durante a qual Salazar praticou todo o tipo de contorcionismos diplomáticos de forma a não dar pretextos nem ao Eixo nem aos Aliados para porem em causa a neutralidade portuguesa. Também a nível interno Salazar recorreu sistematicamente à dissimulação, tentando fazer passar a opressão por manutenção da ordem, a pobreza por dignidade, a estagnação por estabilidade, a tacanhez por prudência.
E isto conduz-nos a outra marca fundamental do carácter de Salazar: a estreiteza de vistas, o horror ao novo, à alteração de rotinas, à introdução de usos e práticas “estrangeiras” que ameaçavam perturbar a placidez rural do país. Foi esta atitude que fez com que, após mais de 36 anos de ordem e estabilidade, sem envolvimento em conflitos internacionais e sem ser embaraçado por partidos de oposição, “forças de bloqueio”, greves ou contestação nas ruas ou nas instituições, Salazar não tenha conseguido que Portugal saísse do fundo da tabela europeia no que respeita a índices de desenvolvimento humano. Salazar cunhou a expressão “orgulhosamente sós” em 1965, para descrever a posição de Portugal na política internacional, dando a entender de que a (relativa) falta de apoio dos países ocidentais à guerra colonial que o país então travava não abalava a determinação do Estado Novo em preservar os seus territórios ultramarinos. Porém, a mundividência tacanha de Salazar fez também com que Portugal ficasse “orgulhosamente só” em muitos outros domínios, zelosamente resguardado dos ventos de mudança – na tecnologia, na economia, na sociedade – que sopravam pelo mundo. Foi ela que levou Salazar a inculcar nos portugueses a ideia de que a sua máxima aspiração deveria ser “viver habitualmente”, isto é, resignados a uma existência de mediocridade material e espiritual, cuja contrapartida seria a ausência de sobressaltos, a previsibilidade, a ordem imutável. Foi ela que fez com que, em mais de 36 anos no poder, Salazar apenas por três vezes pusesse pé fora do solo pátrio e, ainda assim, apenas para discretas e fugacíssimas deslocações a Espanha. Foi ela que fez com que o investimento do Estado Novo na educação se focasse em providenciar às massas (que, em 1930, tinham uma taxa de analfabetismo de 66%) os conhecimentos mínimos (“ler, escrever e contar”) para assegurar o funcionamento numa sociedade dominantemente rural e de indústria e serviços incipientes, mas não mais do que isso – em 1930, a escolaridade obrigatória foi, inclusive, reduzida de quatro para três anos.
Salazar é frequentemente apontado como tendo sido influenciado pelo pensamento de Charles Maurras (1868-1952), um ultraconservador que defendeu uma sociedade ordeira e estática, norteada pelo “nacionalismo integral”, de cariz antipluralista e antiparlamentar e inflamadamente patriótico, e pelos valores da Igreja Católica. Sem pretender beliscar a vinculação entre os ideários de Salazar e Maurras, também é possível encontrar um antecedente remoto para a mundividência tacanha de Salazar no pensamento do príncipe-filósofo chinês Han Fei (c.280-233 a.C.), que concebeu e advogou o conceito de um Estado poderoso e omnipresente, regido por uma legislação abrangente e restritiva, que via como a única forma de assegurar a vida em sociedade, já que, como ensinava o seu mestre, o filósofo Xunzi (c.310-c.238 a.C.) a natureza humana seria intrinsecamente malévola e destituída de virtudes. Assim sendo, defendia Han Fei, “é imperativo que o povo não se ponha a prezar o saber, o que o levaria a descurar a produção agrícola. Um povo que despreza o saber mantém-se ignorante, e nesse estado de ignorância permanece impermeável às influências estrangeiras, o que é de toda a vantagem para a segurança do Estado”.