O presidente da Câmara Municipal de Borba, António Anselmo, sabia que a estrada rodeada de pedreiras que ruiu esta segunda-feira “estava em perigo”, mas recusou agir de imediato. Foi o próprio autarca que revelou essa informação numa Assembleia Municipal (AM) realizada a 27 dezembro de 2014, segundo a ata a que o Observador teve acesso. Na reunião, vereadores e deputados também preferiram adiar a discussão do problema, com mais detalhes, para um outro encontro — que acabou por não acontecer.
Nessa assembleia, António Anselmo foi questionado pelo deputado Celso Ramalho sobre a reunião que tinha acontecido, no mês anterior, entre a câmara, a Direção Regional da Economia (DRE) e os empresários de mármore relativamente à estrada municipal 255 que liga Borba a Vila Viçosa. Na resposta, o autarca explicou que “há uns meses” tinha sido “informado por uns empresários dos mármores que havia um estudo feito na direção Regional da Economia, da parte do serviço geológico, o qual informava que a estrada estava em perigo“, referindo “que lhe tinha sido explicado porque é que a estrada estava em perigo”, lê-se na ata.
Mais tarde, continua o documento, “as pessoas da Direção Regional da Economia estiveram numa reunião com toda a vereação da Câmara Municipal de Borba, onde também lhes foi explicado o assunto referido”. “Posteriormente”, explicou António Anselmo aos deputados, ele próprio entendeu que “se deveria ter uma reunião conjunta, onde estivessem presentes a Direção Regional de Economia, empresários dos mármores daquela zona, e as pessoas que ali têm terras, e que utilizam aquela estrada”. “Assim todos ficavam a saber quais as medidas a providenciar”, acrescentou.
A posição do autarca perante os deputados municipais, porém, foi de dúvida face a esses alertas. Defendendo que é preciso “um pouco de bom senso nestas situações”, questionou: “Um problema que se arrasta há 10 anos, agora é que está em perigo de cair?”. E adiantou a sua decisão: “A estrada só vai ser derrubada se estiver mesmo em perigo”.
Contactado esta quinta-feira pelo Observador, o autarca confirma que esteve na reunião, que aconteceu a 20 de novembro desse mesmo ano, mas nega que alguma vez tenha sido informado sobre o perigo da estrada: “Ninguém me falou em perigo na estrada. Mas pronto. Nunca ouvi falar de estrada insegura”. “Ouvi uma possibilidade de alargamento de uma zona exploratória, não ouvi sobre perigo nenhum”, disse, acrescentando que nem sequer lhe teria sido mostrado qualquer documento.
Uma fonte, que esteve presente nesse encontro, garante ao Observador que o estudo foi mostrado na reunião, bem como um memorando preparado pelos proprietários e apresentado até em PowerPoint “para se ver melhor”. “Mas não me deram coisa nenhuma”, garante António Anselmo ao Observador, confrontado com essa informação. O autarca nega, assim, que tenha desvalorizado o problema — “nunca na vida” — e acrescenta que depois, na Assembleia Municipal de 27 de dezembro de 2014, fez apenas uma interrogação. “A seguir disse que íamos olhar para as coisas, vamos esperar por esses relatórios”, disse ao Observador.
De facto, o autarca disse ao deputados municipais que poderia “limitar o trânsito dos pesados naquela estrada”, mas apenas se “tiver informações concretas dos técnicos sobre o verdadeiro perigo ali instalado” e que esse “assunto” teria de ser “estudado com muita cautela e baseado em factos técnicos muito grandes”. António Anselmo falou mesmo na possibilidade de se fazer uma “conferência explicativa no Cineteatro” de Vila Viçosa “sobre a situação”.
Deputados e vereadores adiaram decisões para uma “reunião alargada” que nunca aconteceu
A decisão de não avançar para qualquer medida, de imediato, foi apoiada por deputados municipais e vereadores da Câmara, segundo a ata da Assembleia Municipal. O vereador Nelson Sousa lembrou, de resto, uma aula de Geologia do professor Luís Lopes, a que tinha assistido, sobre o que se estava a passar na antiga EN255. Nessa aula, na Escola Secundária de Vila Viçosa, segundo o vereador, o professor mostrou fotografias aéreas, mas “nunca colocou a hipótese de se derrubar a estrada, até porque a mesma é uma estrada real”. Teria sido “uma simples apresentação, pouco técnica”. O vereador oferecia-se, assim, para dar o contacto de Luís Lopes, caso fosse necessário o seu “parecer técnico”.
Também o vereador Benjamim Espiguinha considerou que já havia “pouco mais” a “acrescentar a este assunto”, que já tinha sido abordado “em reuniões de câmara” e que “a opinião de todos” era a de que se fizesse uma discussão “da maneira mais alargada possível”. “Todos temos a ganhar com o que se passa ou pode vir a passar nessa estrada. Todos os contributos são bem-vindos”, concluiu.
Nas palavras do deputado municipal Ângelo de Sá, percebe-se que o assunto não era, de facto, novo. Naquela mesma Assembleia Municipal, o deputado alertou que “este assunto da estrada, anda no ar há dezasseis anos”, altura em que tinha visto “um professor do Técnico apresentar um estudo”. O que tinha percebido, “em termos técnicos”, era que existia “uma pequena fratura numa pedreira” e que havia “meios técnicos que podem saber como é que aquilo se preenche, trata”, acrescentando que o assunto merecia ser bem analisado.
Isto apesar de, numa frase que não surge completa na ata, Ângelo de Sá concluir que “é óbvio que o que está aqui em causa não é a segurança, (…) interesses económicos“. O presidente da Câmara, mais à frente, sugeriria isso mesmo, defendendo que o assunto teria de ser “bem analisado tanto a nível técnico, emocional e do ponto de vista das necessidades das coisas”. “Para beneficiarmos três ou quatro pontualmente, não podemos ‘tramar’ uma série de pessoas”, acrescentou. António Anselmo referir-se-ia aos empresários que estiveram presentes nessa reunião um mês antes: alguns concordaram que a estrada fosse cortada, outros opuseram-se a essa hipótese. Em causa estaria também o prejuízo que uma mudança de rota poderia trazer para as empresas que usavam aquela via na sua atividade diária.
A ideia de uma nova reunião, “uma assembleia extraordinária, em conferência, onde se discuta o assunto”, foi também defendida pelo vereador Celso Ramalho, por ser “um assunto importante demais para ser decidido por duas, três ou quatro pessoas” e tendo em conta que eles próprios não eram técnicos. Mas o encontro nunca terá acontecido.
Apesar de, na Assembleia Municipal, ter ficado com a tarefa de contactar a DRE e o professor Luís Lopes para estarem presentes na reunião, o presidente da Câmara diz ao Observador que a conferência não chegou a ser marcada e que o assunto nunca voltou a ser discutido, recusando explicar porquê.
“Aqueles que, na reunião, não aceitaram a proposta, nem piam”
Foi um grupo de três proprietários de pedreiras que sugeriu a realização da reunião de 20 de novembro de 2014, com a Câmara de Borba e a Direção Regional da Economia. O Observador ouviu um dos proprietários que esteve presente no encontro e que garante que naquele local, para aquele efeito, estiveram presentes “cerca de sete ou oito empresários”, elementos da DRE, o engenheiro Bernardino Piteira e engenheira Maria João, o presidente da câmara e dois vereadores da mesma autarquia.
Ali ter-se-á ficado a saber que a Direção Regional de Economia tinha realizado “uma série de estudos” sobre os problemas de sustentabilidade e segurança da estrada junto àquelas pedreiras. Esse estudo foi conclusivo e “bastante claro”, indica a mesma fonte ao Observador, recordando que a DRE considerou a situação insustentável e defendeu a realização de uma reunião com a câmara para a estrada ser fechada. Esse mesmo organismo terá adiantado que o papel dos proprietários era bastante importante para a concretização daquele desejo, uma vez que seria necessário encontrar uma solução harmoniosa, que não causasse dificuldades ao trabalho das empresas.
Dois documentos terão sido mostrados nessa reunião. Além do estudo da Direção Regional da Economia, terá sido apresentado também um memorando — “não é mais do que uma breve resenha”, lê-se no próprio documento, a que o Observador teve acesso, no qual os proprietários alertam para “as questões de segurança de pessoas (utentes da via e trabalhadores das explorações) e bens”.
A história dos dois cunhados arrastados pela derrocada, contada por quem os viu cair
Além da segurança, os proprietários terão avisado ainda que, uma vez que era um risco trabalhar perto da estrada, algumas zonas estavam paradas. “Torna-se imperativo a resolução da problemática com a EM255 para que seja possível assim reabilitar a exploração nestas pedreiras e consequentemente contribuir para o crescimento dos postos de trabalho“, lê-se no memorando.
O documento, que não passava de um simples “draft” (rascunho), pode ser agora, acredita a mesma fonte, a “sorte” deles. Os empresários acreditam, “sem dúvidas nenhumas” que, se algum dia tiverem de ir prestar declarações à justiça, este será o documento que os irá ilibar de todas as culpas. “Se nós não tivéssemos estes documentos, estávamos lixados”, diz ao Observador um deles. O Ministério Público já abriu um inquérito para investigar as causas do desabamento na pedreira de Borba. Ao Observador, a Procuradoria-Geral da República explica que o inquérito servirá para “apurar as circunstâncias que rodearam a ocorrência”.
“A estrada que estava sinalizada como estando em perigo era parte do troço que ruiu”, apontou um dos proprietários, ouvido pelo Observador. Juntos terão tentado encontrar — com o auxílio do Google Maps — alternativas à estrada. Solução? Duas rotundas que seriam construídas antes do troço que viria a ruir na passada segunda-feira. “Andámos a ver os caminhos alternativos que se podiam fazer e identificámos saídas para todas as empresas. Não só as nossas!”, referiu o proprietário. O documento apresenta esses mesmos acessos alternativos para cada uma das nove empresas que seriam afetadas, caso a estrada fosse cortada.
Além das alternativas, o grupo de proprietários previu ainda a “criação de um grupo de trabalho entre empresários, Câmara Municipal e DRE para quantificar os custos e para fazer um ‘como’ e um ‘quando'”, segundo explicou um proprietário de uma pedreira. Foi também pensada a hipótese de se definir uma estratégia de comunicação à população, para atenuar as reações menos positivas. “Se tivermos a câmara a dizer que fecha a estrada, vão perder eleitores, porque vão dizer que são os interesses dos malandros do empresários que querem explorar o mármore”, explicou a mesma fonte.
Na reunião onde o documento terá sido mostrado, a maioria dos proprietários terá concordado que a melhor hipótese seria cortar a estrada. Mas houve quem se opusesse. “Não podemos agradar a gregos e a troianos”, disse um dos elementos que esteve na reunião. Quanto aos opositores, o memorando já se antecipava, numa espécie de premonição: “Os principais ‘opositores’ da solução serão os primeiros, em caso de algum acidente, que esperemos que não suceda, a mostrarem-se revoltados pela existência da estrada referindo que desde sempre estavam indignados pelo perigo da estrada e por ninguém fazer nada!”.
A estrada cercada por pedreiras. Os responsáveis, os avisos e as perguntas sem resposta
Segundo a mesma fonte, as justificações dos empresários da região para rejeitarem esta proposta eram variadas: “Um disse que ia desvalorizar a empresa porque deixava de ter uma estrada e passava a ter um beco, outro dizia que aquilo ia trazer custos, ia-lhe custar mais gasolina nos camiões”. Houve cinco ou seis — a mesma fonte não sabe precisar — proprietários a dizer que sim. “A ideia era que concordassem todos. Os outros empresários no fim quase que nos chamaram de parvos, que parecíamos uns parvos porque a ideia era do nosso interesse”, contou.
Já depois do acidente, conta o proprietário, “aqueles que na reunião não aceitaram a proposta, nem piam”. “Nós já tivemos telefonemas de todo o lado mas daqueles que disseram que não, nem um pio. Podiam ter telefonado: ‘Opá, vocês tinham razão’. Mas não. Nada”, lamenta ao Observador, acrescentando ainda que “o acidente demorou quatro anos”, depois da reunião, mas “podia ter demorado uns dois ou três”. Estava “consciente de que este dia ia chegar”. Tanto que, no dia da derrocada, assim que ouviu o estrondo, no interior do seu escritório, disse ao seu colega: “Queres ver que a estrada caiu?”.
As contradições do Presidente da Câmara de Borba
Presidente da Câmara desde 2013, eleito pelo Movimento Unidos por Borba com 40% dos votos, e reeleito em 2017 com maioria absoluta, António Anselmo tem sido cauteloso nas declarações que faz sobre a derrocada da antiga EN255, adiando sempre explicações mais detalhadas para o final das operações de busca e para quando tiver oportunidade de ler todos os documentos que mandou reunir sobre a estrada. Horas depois do incidente, dizia que ali estaria para “assumir responsabilidades — ou não”. Mais tarde garantiria que “nunca na vida” tinha sido informado.
É preciso recuar a 2014 para perceber qual era, afinal, a informação — e a posição pública — do autarca sobre o problema. Ouvido a 21 de novembro daquele ano pela Rádio Campanário — um mês antes da referida Assembleia Municipal –, a propósito da reunião que tinha tido, na véspera, com a Direção Regional de Economia e com os empresários das pedreiras, António Anselmo explicava que a avaliação da eventual extinção da estrada tinha começado “há 4 ou 5 meses, mas só agora foi colocada em cima da mesa”. E, logo ali, admitia a existência de estudos que apontavam para os riscos: “A Direção Regional de Economia, através da secção de Geologia, diz que há uma série de estudos que metem em perigo a estrada”. Acrescentava, aliás, que “foram feitos estudos, ouvidos os empresários, houve uma explicação” e que já tinha falado “com todos os proprietários de terrenos envolventes, garantindo que “estando em causa o perigo da estrada, o assunto é muito sério”.
Isso mesmo era confirmado, à mesma rádio, pelo Diretor Regional de Economia, João Filipe de Jesus: “Há ali uma questão de segurança que pode colocar em perigo a segurança das pessoas e há o estudo feito pelo Laboratório Nacional de Engenharia e Geologia que o confirma”.
Quatro anos depois, no turbilhão da derrocada, António Anselmo parece desmentir-se. À Agência Lusa, na terça-feira, disse que se lembrava, de facto, dessa reunião, mas garantia que a questão da segurança não foi levantada naqueles termos. Explicou, pelo contrário, que a “ideia não era cortar a estrada — era partir a estrada para fazer exploração nesse sítio onde uma parte caiu”. Porque é que essa “possibilidade” de interromper a via nunca avançou? Porque “os empresários nunca se entenderam”, ou seja, “não houve consenso”. É nesse contexto que o autarca reafirma que “nunca na vida” foi alertado por técnicos para o perigo e que o que tinha “em termos legais e de conhecimento” era que “a situação” da estrada “estava perfeitamente segura”.
Na mesma linha, esta quarta-feira, em entrevista ao Expresso, também apontou o dedo aos empresários das pedreiras que garantem que o Presidente da Câmara foi informado. Insistindo que o objetivo da referida reunião era o de alargar a área de exploração para o espaço ocupado pela estrada, voltou a garantir que teria agido de imediato se houvesse qualquer alerta oficial: “É impensável imaginar que, havendo relatórios ou avisos de entidades oficiais a alertar para qualquer perigo, a autarquia não procedesse ao fecho da estrada”. Explicou, por exemplo, que ainda há pouco tempo esteve naquele local “com um autocarro cheio de turistas americanos” e com deputados do PS, questionando: “Como é possível pensar que a câmara ignorou avisos ou seja o que for? Lamento muito a morte daquelas pessoas”.
Ao Observador, o autarca também disse que está de “consciência tranquila” e que a prioridade é “tirar os cadáveres de lá”.