Praias paradisíacas, esplanadas cheias e marginais com pessoas a passear. O cenário parece ser o de uma estância balnear em qualquer parte do mundo, mas a todo o momento pode ouvir-se o som de explosões. Indiferentes aos ataques e à guerra na Ucrânia, vários turistas russos continuam a passar férias na península da Crimeia. “Apesar de explosões e tudo o resto, nós não vamos mudar os nossos planos. Vamos ficar aqui com prazer… E relaxar sob este sol maravilhoso e com este mar maravilhoso”, conta o cantor russo Yury Znamenskiy à agência Reuters.
Várias webcams, que mostram o que se passa nas praias da Crimeia em tempo real, revelam um clima de aparente tranquilidade. Entre mergulhos e dias passados ao sol, os turistas russos parecem não se importar com os ataques de que a península tem sido alvo na última semana. Evgenia Romashova, uma mulher oriunda de Zheleznogorsk, admite à Reuters que teve algum receio, mas decidiu passar uma temporada na capital da península, Simferopol: “É a nossa cidade favorita”.
[Em direto pode assistir ao que se passa num resort em Sevastopol, Crimeia]
Enquanto os turistas russos desfrutam das suas férias, tudo leva a crer que o Kremlin terá sido apanhado desprevenido pelos os ataques contra o território que esteve no início do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, em 2014 — e que mantém vivos vários pontos de discórdia entre Moscovo e Kiev. Desde dia 9 de agosto, data em que várias explosões atingiram uma base aérea em Saki (precisamente junto a uma estância balnear), que os ataques se sucedem na península.
O Ministério da Defesa russo confirmou a existência de explosões a 9 de agosto, indicando que se deveu à detonação de munições. Por sua vez, a Ucrânia nunca reivindicou o ataque, mas, nesse mesmo dia, deixou uma mensagem irónica nas redes sociais, juntamente com uma foto do ataque. “O Ministério da Defesa da Ucrânia gostaria de lembrar a todos que a presença de tropas ocupantes no território da Crimeia ucraniana não é compatível com a época alta turística.”
The Ministry of Defense of Ukraine would like to remind everyone that the presence of occupying troops on the territory of Ukrainian Crimea is not compatible with the high tourist season. pic.twitter.com/PFl6jBzKh4
— Defense of Ukraine (@DefenceU) August 9, 2022
A lista de ataques na Crimeia dos últimos dias
A Rússia rejeitou liminarmente que aquilo que aconteceu no dia 9 de agosto tivesse sido um ataque levado a cabo pelas tropas da Ucrânia, garantindo que não houve qualquer ferido nem destruição de material de guerra. Em sentido inverso, as autoridades de Kiev garantem que vários aviões russos foram abatidos. No discurso de 10 de agosto, o Presidente ucraniano deu conta de que nove aeronaves pertencentes à Rússia foram destruídas na Crimeia.
“Respeitem as regras de não fumar”. Ucranianos gozam com russos sobre explosões na Crimeia
Na passada terça-feira, voltaram a ouvir-se explosões na Crimeia, na aldeia de Maiske, junto a um depósito de munições. A Rússia, pela voz do ministro da Defesa, Sergei Shoigu, voltou a confirmar o ataque e, contrariamente a Saki, reconheceu a existência de danos “em linhas elétricas, a numa central nuclear, numa linha de comboio e em prédios residenciais”, assim como deu conta de dois feridos ligeiros.
As motivações do ataque? Sergei Shoigu referiu que se tratou de um “ato de sabotagem”, tendo sido “tomadas as medidas necessárias para remediar as consequências”. E registaram-se mais explosões na passada terça-feira — uma deles ocorreu em Simoferopol e outra numa base militar Gvardeyskoye, no centro da península.
Esta quinta-feira, os sistemas de defesa aérea russos impediram, de acordo com a agência de notícias russa RIA, mais um ataque com um drone na Crimeia, mais especificamente na base militar de Belbek e na localidade de Kerch. A Rússia não prestou qualquer esclarecimento sobre a autoria do ataque, nem a Ucrânia o reivindicou.
#BREAKING: Russian air defense system activated over Kerch, Crimea, where a bridge was built that connects the Crimean peninsula with Russia pic.twitter.com/ibefRKl3ZA
— Amichai Stein (@AmichaiStein1) August 18, 2022
Mas afinal quem estará por trás destes ataques? E, no futuro, prevê-se que se intensifiquem?
Rússia nunca reconheceu que Ucrânia esteve por detrás dos ataques — mas nomeou um novo comandante
A estratégia do Kremlin tem sido a mesma desde o dia 9 de agosto: justificar os ataques com tentativas de sabotagem ou meros acidentes, nunca os relacionando com a Ucrânia.
No entanto, em meados de julho, Dmitri Medvedev, ex-Presidente russo atual vice-presidente do Conselho de Segurança da Federação da Rússia, parecia antever esta situação e deixou uma forte ameaça às tropas ucranianas no caso de atacarem a Crimeia — será o “dia do juízo final”.
“As consequências [do eventual ataque] são óbvias. Se algo semelhante acontecer, o dia do juízo final chegará em breve para todos eles [ucranianos]. Será muito rápido e muito duro”, afirmou Dmitri Medvedev.
Medvedev ameaça Kiev com “dia do juízo final” em caso de ataque à Crimeia
Na quarta-feira, a Rússia aparentava dar sinais de estar reagir aos ataques, tendo nomeado um novo comandante na frota russa no Mar Negro — que tem a base exatamente na Crimeia. Viktor Sokolov foi o escolhido para substituir Igor Osipov no cargo. Moscovo justificou que era “normal” a rotação, não tendo revelado grandes detalhes sobre o assunto. Se é a concretização das ameaças de Medvedev, não se sabe ainda.
Comandante da frota russa do Mar Negro substituído após explosões na Crimeia
Mas, já este sábado, o presidente Ucraniano veio alertar para o risco de ataques cruéis, pedindo especial vigilância, numa altura em que se aproximam duas datas de celebração nacional. “Devemos todos estar cientes de que esta semana a Rússia pode tentar fazer algo realmente feio, algo particularmente cruel”, disse o Presidente. E acrescentou que os ucranianos não devem deixar Moscovo “espalhar desânimo e medo”, disse na sua mensagem diária. Recorde-se que no dia 23 de agosto celebra-se o Dia da Bandeira e no dia seguinte, quarta-feira, o Dia da Independência.
Os sinais mistos da Ucrânia: “desmilitarização” ou bluff?
A Ucrânia nunca declarou, oficialmente, a autoria de nenhum dos ataques dirigidos à Crimeia. Ao Washington Post, uma fonte ucraniana confirmou, contudo, que o ataque dirigido contra a cidade de Saki tinha sido levado a cabo por Kiev. O mesmo aconteceu a 16 de agosto; ao New York Times, também uma fonte ucraniana deu a entender que uma unidade militar de elite da Ucrânia tinha estado por detrás das explosões em Maiske.
No entanto, nenhum membro do governo ucraniano reivindicou a autoria dos ataques. Mas deixaram algumas pistas que podem levar a ligar os ataques da Crimeia às forças de Volodymyr Zelensky.
Apesar de não confirmar a autoria dos ataques, o Presidente ucraniano começou o discurso diário de 9 de agosto a dizer que naquele dia “muita atenção” estava a ser dirigida para o “tópico da Crimeia”. “E ainda bem”, nota, explicando depois o motivo: “A Crimeia é ucraniana e nunca deveremos desistir dela. Nós não vamos esquecer que a guerra russa contra a Ucrânia começou com a ocupação da Crimeia. A Rússia transformou a nossa península, que sempre foi e será um dos melhores locais na Europa, num dos lugares mais perigosos”.
A 16 de agosto, no ataque contra o depósito de munições em Maiske, o chefe de Estado da Ucrânia elevou mais o tom no que concerne aos ataques na Crimeia. “Todos os dias vemos novas notícias de explosões no território temporariamente ocupado”, assinalou Volodymyr Zelensky, que indicou que os ataques têm como objetivo “destruir a logística do ocupantes, as suas munições e equipamento militar”, sendo que isso “salva a vida do povo” ucraniano.
“Quanto menos oportunidades os ocupantes tiverem para magoarem e matarem ucranianos, mais cedo seremos capazes de terminar esta guerra, libertando as nossas terras”, destacou Volodymy Zelensky, que nunca assumiu a autoria dos ataques. Não obstante, o Presidente ucraniano concluiu, recorrendo às alegadas “filas de pessoas para deixarem a Crimeia”, que “a maioria dos cidadãos do Estado terrorista entende ou pelo menos sente que a Crimeia não é lugar para eles”.
Outros membros próximos a Volodymyr Zelensky também deixaram no ar a possibilidade de a Ucrânia estar por detrás dos ataques. Por exemplo, o conselheiro do Presidente ucraniano, Mykhailo Podolyak, escreveu na sua conta pessoal do Twitter que estaria em curso uma “desmilitarização”. “Uma lembrança: a Crimeia de um país normal relaciona-se com o Mar Negro, montanhas, recreação e turismo. Mas a Crimeia ocupada pelos russos é sobre explosões em armazéns e alto risco de morte para os invasores e ladrões.”
Morning near Dzhankoi began with explosions. A reminder: Crimea of normal country is about the Black Sea, mountains, recreation and tourism, but Crimea occupied by Russians is about warehouses explosions and high risk of death for invaders and thieves. Demilitarization in action.
— Михайло Подоляк (@Podolyak_M) August 16, 2022
Ataques devem intensificar-se
Mykhailo Podolyak admitiu que os ataques contra a Crimeia devem aumentar nos próximos “dois a três meses”, nunca referindo, porém, uma alegada intervenção ucraniana. “Concordo certamente com o Ministério da Defesa russo, que está a prever mais acidentes deste tipo nos próximos dois, três meses. Eu penso que podemos ver mais [destes ataques] a acontecerem”, assinalou, em entrevista ao Guardian, o conselheiro de Volodymyr Zelensky.
O Instituto para o Estudo da Guerra, um think tank norte-americano, também antecipa um maior número de ataques no futuro, embora não identifique a autoria dos mesmos. “Ainda não é claro se as explosões se devem a ataques ucranianos ou à utilização pouco eficaz do equipamento militar por parte Rússia.” Tendendo para a primeira hipótese, o organismo considera que os alvos militares na Crimeia deverão “continuar a ser atacados”, de modo a Kiev conseguir “diminuir as capacidades logísticas e degradar as capacidades russas para suster as operações na margem oeste do rio Dnipro”.
Mesmo assim, perante estes cenários, os turistas russos na Crimeia deverão continuar a estender as toalhas nas praias da península. “Quem não arrisca, não petisca. Não temos medo”, comentou um turista russo à Reuters — e o futuro dirá se a guerra chegará ou não às estâncias balneares.