Ao 13.º dia da guerra, e quando se perspetiva um novo super aumento no preço dos combustíveis, o Governo cedeu aos que exigiam medidas de mitigação do impacto da invasão da Ucrânia no preço do petróleo e dos produtos refinados. E anunciou que vai baixar o imposto petrolífero na medida em que antecipe ganhar mais no IVA sobre os combustíveis com os pré-anunciados aumentos de preços, a partir da próxima semana.
A alteração anunciada por António Costa apenas quatro dias depois de João Leão ter descartado a descida do ISP, na apresentação do reforço do programa Autovoucher, tem uma nuance importante em relação ao regime anterior. A devolução do IVA passa a ser calculada a partir do acréscimo de cobrança por litro que o Governo antecipa em resultado dos aumentos anunciados de preço, um saldo a conferir todas as semanas. Se o Estado estiver a ganhar mais 5 cêntimos por litro em IVA nos combustíveis, devolve o mesmo valor baixando o imposto, exemplificou o primeiro-ministro.
Portugal não tem liberdade para alterar a taxa de IVA nos combustíveis sem a autorização da Comissão Europeia como aconteceu no caso da eletricidade. Ainda que essa proposta tenha sido feita por Portugal (e outros estados-membros assinalou o primeiro-ministro), a resposta não é imediata e envolve também a aprovação no Parlamento.
Já o imposto petrolífero pode ser reajustado já pelo Governo sem pedir autorização a ninguém, desde que cumpra o mínimo fixado em diretiva europeia. E face a esse mínimo, e considerando a totalidade do imposto cobrado com taxas autónomas, a margem legal para baixar o ISP varia entre os 17 cêntimos no gasóleo e quase 30 cêntimos por litro da gasolina. Mas há um custo a pagar.
A nova abordagem é mais transparente e de maior impacto que o anterior modelo de devolução de ganhos do IVA implementado em outubro de 2021 e que permitiu, na altura, baixar o ISP em dois cêntimos na gasolina e em um cêntimo no gasóleo. E mais nada desde então. Isto porque a conta era feita ao valor médio do acumulado semanal a partir de uma determinada data — neste caso 11 de outubro (dia em que foi anunciada a descida do imposto). Esta metodologia só se traduziria em descidas de ISP depois de um período relativamente longo de preços a subir. Mesmo um aumento recorde, como o verificado no início desta semana, daria, quanto muito, para baixar um cêntimo ao imposto porque contaria apenas como uma semana para um valor médio registado ao longo de 20 semanas.
Governo vai calcular todas as semanas devolução de imposto dos combustíveis
Descida do ISP para equilibrar IVA só compensa menos de um quinto do aumento do preço
Com a mudança agora introduzida o Governo promete devolver em tempo real o ganho que espera obter com a maior cobrança de IVA em resultado da valorização do preço antes de impostos. Esse ganho é calculado em relação a cada litro e não a partir da dimensão da receita fiscal efetivamente arrecadada (e que só é apurada mais tarde) e que depende muito das quantidades vendidas. Como argumentou o ministro das Finanças quando questionado sobre a razão de não baixar o imposto, a receita fiscal nos combustíveis estava ainda abaixo da verificada em 2019. O Governo estava a usar o ano pré-pandemia como referência para este mecanismo e os combustíveis vendidos não retomaram o volume desse ano — provavelmente nunca retomarão devido à substituição gradual da frota automóvel por carros elétricos ou híbridos.
Mas, se este modelo é mais imediato e de impacto maior, será sempre um paliativo face a aumentos elevados do preço dos combustíveis. É preciso que a subida antes de impostos seja superior a cinco cêntimos para isso resultar num acréscimo de 1 cêntimo de cobrança para o Estado.
Fazendo as contas às subidas desta semana:
- O gasóleo teve um aumento médio de 14 cêntimos por litro face à semana passada, de acordo com os preços médios diários recolhidos pela Direção-Geral de Energia e Geologia que se reportam aos combustíveis simples incluindo descontos feitos na compra. O IVA cobrado subiu 2,6 cêntimos, o que aplicando o modelo anunciado pelo primeiro-ministro seria a dimensão da redução do ISP. A baixa do imposto corresponde grosso modo a um quinto do aumento.
- Na gasolina e para um acréscimo de preço médio diário entre a semana passada e esta de oito cêntimos por litro (de acordo com os mesmos dados da DGEG), daria uma cobrança adicional de 1,5 cêntimos por litro que seria devolvido pela baixa do imposto.
Ainda que os aumentos previstos para a próxima semana sejam da mesma dimensão — já se falou em valores mais altos, mas esta quarta-feira o petróleo baixou e a conta final só fica fechada sexta-feira de manhã — a descida do imposto ficaria aquém da dimensão da subida, cerca de um quinto. Uma forma de potenciar esta devolução seria o Governo contabilizar já na anunciada baixa do imposto petrolífero o ganho que obteve esta semana — 1,5 cêntimos na gasolina e 2,6 cêntimos no gasóleo — e somar ao IVA que espera cobrar a mais com os novos aumentos previstos. Aí a descida de imposto seria maior, ainda assim sempre bastante aquém da subida do preço.
Por mais generoso que seja, um mecanismo que se limita a devolver um ganho fiscal em outro imposto nunca será suficiente para responder ao quadro de subidas dramáticas de preço que só têm comparação (se não forem piores) com o que aconteceu no primeiro choque petrolífero de 1973 na sequência da Guerra dos Sete Dias entre Israel e os países árabes.
Autovoucher subsidia todas as despesas desde que feitas no posto de combustível
Daí a decisão de reforço muito substancial do valor a devolver através do programa Autouvoucher, de 5 para 20 euros por contribuinte que abasteça (ou faça qualquer despesa, incluindo cigarros) numa estação de serviço no mês de março. Este reembolso é complementar à devolução dos ganhos no IVA porque o Governo sabe que a “neutralidade fiscal” e a devolução “do ganho fiscal” teria sempre uma dimensão residual ou até simbólica, face ao aumento do preço.
Mas ainda que as devoluções do Autovoucher sejam prolongadas para além de março, como tudo indica que serão, estes descontos só chegam aos que estão inscritos (estão a crescer muito e acima de 1,6 milhões de contribuintes, mas ainda não serão a maioria dos teoricamente elegíveis) e deixam de fora, por exemplo, carros de empresas cujo abastecimento não seja possível associar a um contribuinte porque este terá já o seu consumo individual de combustíveis para registar.
Governo dá 20 euros nos combustíveis, mas não baixa imposto para já
Por outro lado, este é um programa que potencia o desvio para outros gastos, já que não estabelece um valor mínimo de despesa em estação de serviço para devolver os 20 euros, nem sequer permite identificar se a compra foi de combustível. Permite ainda que contribuintes da mesma família optem por abastecer mais do que uma vez o mesmo carro, mas de forma faseada, para poderem os dois (ou até três) receberem o reembolso. No fundo trata-se de um subsídio ao rendimento.
O Governo não pode mexer no IVA, mas tem liberdade para baixar o ISP, se quiser
António Costa sinalizou, após a reunião da concertação social desta terça-feira, que Portugal defende junto da Comissão Europeia a suspensão temporária das regras do IVA sobre a energia que determinam, em particular nos combustíveis, que os Estados-membros sejam obrigados a aplicar a taxa máxima, 23% no caso português. Mas frisou igualmente que esta mexida no IVA — que no caso dos combustíveis poderia passar para a taxa intermédia aplicada à restauração de 13% — depende não só da autorização de Bruxelas, mas implicaria também uma lei do Parlamento ou um Orçamento do Estado aprovado, não estando por isso ao alcance do atual Governo enquanto o próximo não tomar posse.
Para o primeiro-ministro, se é o IVA que sobe com o aumento do preço antes de impostos, este deveria ser o imposto a ser revisto. Mas se o IVA é um imposto com regras rígidas do ponto de vista comunitário, o imposto petrolífero não está sujeito ao mesmo condicionamento. Na verdade, nem sequer é necessária uma lei aprovada no Parlamento, nem um Orçamento do Estado aprovado, para o Governo ter a necessária margem de manobra para baixar e muito o ISP.
Portugal tem apenas de cumprir as taxas mínimas fixadas pela Comissão Europeia para os vários combustíveis, valores que estão definidos no Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo (CIEC). Até aos valores mínimos, o Governo pode, por portaria, ajustar o imposto para baixo ou para cima sem precisar de pedir a autorização a outra entidade.
A taxa mínima de ISP a aplicar ao gasóleo é 0,330 euros por litro. A taxa aplicada está atualmente nos 0,503 euros por litro, o que em tese daria para baixar cerca de 17 cêntimos por litro. Na gasolina, o ISP mínimo é de 0,359 euros por litro e os impostos específicos valem atualmente 0,648 cêntimos por litro, o que daria margem para baixar o imposto em quase 29 cêntimos por litro.
No entanto, estes números podem ser enganadores. É que os valores que se atribuem ao ISP incluem duas taxas fixadas de forma autónoma e cuja receita está consignada a entidades e objetivos políticos. A contribuição rodoviária cuja receita passou a ser incluída no imposto petrolífero em 2019 e que serve para financiar a Infraestruturas de Portugal (e que vale cerca de 600 milhões de euros por ano). E a taxa de carbono afeta ao Fundo Ambiental e cujo congelamento (interrompendo a atualização anual) foi uma das primeiras medidas para conter o preço dos combustíveis.
Excluindo essas duas taxas, o ISP encolhe, tal como encolhe o valor que se pode baixar cumprindo a diretiva comunitária, e que é zero no gasóleo e 14 cêntimos na gasolina. O Governo pode ir além destes valores, eliminado, por exemplo, a taxa de carbono no diesel (que é uma decisão de política nacional) o que dará uma folga de cinco cêntimos por litro. Mas isso pode colocar em causa o financiamento das estradas (e o pagamento dos contratos de parcerias público privadas) e/ou uma fonte de financiamento das políticas ambientais, obrigando a encontrar alternativas.
Se o Estado pode baixar o ISP, porque hesitou tanto (e hesita ainda) o Governo a ir por aí? Por razões políticas, mas também financeiras.
Desde “o enorme aumento de impostos” sobre os combustíveis introduzido no primeiro orçamento apresentado por António Costa em 2016, este tem sido um tema sensível para os socialistas porque não cumpriram o que afirmaram na altura: aumentaram o ISP para compensar a perda de IVA causada pela descida dos combustíveis em 2015, mas não chegaram a repor a neutralidade fiscal prometida.
Por outro lado, o ISP é o principal imposto ambiental que o Governo tem ao seu dispor para estimular mudanças de comportamento e de consumos na transição energética. Baixar o ISP é dar um sinal na direção errada e tornar mais difícil a implementação de medidas de penalização dos combustíveis rodoviários. A derradeira motivação é contudo financeira e de cautela orçamental. O ISP é o imposto sobre o consumo que dá maior receita — 3.500 milhões de euros em 2019 e o mesmo valor estimado para este ano — e um dos mais cresce com a retoma económica.
No atual contexto, de incerteza e pressão para a valorização do petróleo e derivados, não é garantido que baixar o imposto faça a diferença, porque essa redução pode ser, como foi no passado, pulverizada por um novo aumento do preço. Mas o Estado já está a perder receita, qualquer coisa como 6,5 milhões de euros por mês por cada corte de 1 cêntimo. É menos que os prometidos 40 milhões de euros do Autovoucher — só uma descida de sete cêntimos teria uma dimensão comparável em perda de receita —, mas não tem um quadro temporal para terminar. E será muito difícil politicamente voltar a aumentar o imposto nos próximos meses se se mantiver o cenário internacional de sanções à Rússia e da total reconfiguração dos equilíbrios geográficos e económicos na energia.