O Banco de Inglaterra foi o primeiro entre os grandes bancos centrais a subir as taxas de juro, após a crise pandémica. Fê-lo logo em 2021, em dezembro, quando na zona euro o discurso oficial garantia que a inflação era “transitória” e jurava que era “muito improvável” que se reunissem condições para que houvesse qualquer subida dos juros em ponto algum durante o ano de 2022. Agora, o mesmo Banco de Inglaterra poderá ter-se tornado o primeiro a mover-se no sentido oposto, ou seja, a travar na trajetória de aperto monetário. Estará, finalmente, a chegar o “pivô” que, segundo vários analistas, os bancos centrais acabarão por ter de fazer, perante a recessão económica e a instabilidade nos mercados?

Para “restaurar condições de mercado ordeiras”, o Banco de Inglaterra anunciou na manhã desta quarta-feira que vai voltar a intervir nos mercados – “com intensidade de urgência” mas de forma “temporária” – através da compra de títulos de dívida do Tesouro britânico. A decisão, na prática, marca um regresso às intervenções de “alívio quantitativo” que marcaram a resposta dos bancos centrais não só à crise pandémica como também, vários anos antes, à crise financeira pós-2008.

Libra afunda para mínimo histórico com planos orçamentais de Liz Truss e do seu ministro das Finanças

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Esta capitulação surgiu depois de a libra esterlina atingir mínimos históricos, nos últimos dias, numa reação aos planos orçamentais do ministro das Finanças de Liz Truss, Kwasi Kwarteng – que envolvem mais despesa pública e cortes nos impostos. Se tal mistura seria sempre negativa para a cotação da divisa de um país, neste caso a libra do Reino Unido, o efeito foi ainda mais pronunciado porque o dólar norte-americano tem tido uma valorização imparável nos últimos meses, face à libra, ao euro e, basicamente, a todas as principais dividas internacionais.

Cotação do dólar tem sido um “rolo compressor” nos últimos meses. FONTE: TradingEconomics/índice DXY, que mede o desempenho do dólar contra as principais moedas.

A valorização do dólar acentuou-se não só devido ao “refúgio” dos investidores num contexto de tensões geopolíticas mas, também, porque a Reserva Federal dos EUA – e o seu líder, Jerome Powell – têm garantido que não irão ceder na luta contra a inflação e vão continuar a subir as taxas de juro “enquanto for necessário”.

O contraponto a esta atitude é, por exemplo, uma líder do BCE (Christine Lagarde) que também promete que Frankfurt irá fazer “o seu trabalho” na luta contra a inflação mas, amiúde, reconhece que não tem plena capacidade para controlar a subida rápida dos preços – um controlo que, recorde-se, é o mandato e exclusivo do BCE. Por outro lado, a economia europeia é vista como muito mais vulnerável a uma recessão, desde logo pela dependência energética russa.

Embora a pressão sobre a libra tenha um contexto local – os planos orçamentais da nova inquilina de 10 Downing Street e do seu ministro das Finanças – as ondas de choque do anúncio do Banco de Inglaterra não se limitaram à ilha da Bretanha e alastraram-se, rapidamente, a toda a economia global, sobretudo porque alguns investidores assumiram que está dado o primeiro passo de um “pivô” que acabará por ser seguido na zona euro e, até, nos EUA.

Subida de 75 pontos-base pelo BCE deixou de ser o mais provável

Um dos melhores indicadores disso mesmo é que às primeiras horas da manhã os mercados de futuros de taxas de juro na zona euro apontavam para uma probabilidade de 90% de que o BCE irá, a 27 de outubro, aumentar as taxas de juro em mais 75 pontos-base (igualando o ritmo da última subida). Assim que o Banco de Inglaterra anunciou a sua intervenção, essa probabilidade passou a ser de apenas 40% – ou seja, passou a ser mais provável uma subida mais comedida, de 50 pontos-base.

A tese do “pivô” também proporcionou uma recuperação nas bolsas – com os principais índices norte-americanos a subirem entre 1% e 2% – e a cotação do ouro a saltar 2%, impulsionada pela queda do dólar e pelas perspetivas de que os bancos centrais poderão acabar por voltar às políticas de estímulos monetários ou, pelo menos, abrandar o esforço de redução dos balanços (que “incharam” nos últimos anos, precisamente, devido a intervenções como a compra de dívida pública dos seus países).

Ouro recuperou das perdas recentes, fruto da queda do dólar e das esperanças de um “pivô” por parte dos bancos centrais. FONTE: TradingEconomics/Cotações intradiárias do ouro, em dólares

A intervenção por parte do Banco de Inglaterra demonstra que, apesar do “virar de página” que os bancos centrais anunciaram, “continuamos a viver na terra dos contos de fadas [la la land] da política monetária“. Quem o diz é Mohammed El-Erian, ex-líder da gestora Pimco e uns dos colunistas económicos mais prestigiados do mundo. E de que fala El-Erian quando se refere à “la la land monetária”? Significa que é uma ilusão pensar que os bancos centrais vão conseguir apertar a política, corrigindo agressivamente as políticas do passado, sem que isso provoque problemas nas economias.

Em artigo publicado no Financial Times, o economista é claro: “sabemos que nunca seria fácil para os bancos centrais fazer o desmame de demasiados anos de repressão de taxas de juro e injeções massivas de liquidez, com os condicionamentos adversos que isso criou nos mercados”. Agora, “esta transição inevitavelmente conturbada tornou-se muito mais difícil”, diz Mohammed El-Erian, avisando que se tornou “significativamente maior o risco de acidentes dos mercados”, além de “danos reais para a economia” (neste caso, a economia britânica).

Outro colunista do Financial Times, John Plender, é mais sucinto na forma como descreve os riscos do aperto rápido da política monetária: “os bancos centrais estão a cozinhar uma receita de exagero monetário e crises de liquidez“. O que está em causa, com efeito, está longe de ser um exclusivo do Banco de Inglaterra: Andrew Kenningham, economista-chefe para a Europa da Capital Economics, aposta que, tal como o Banco de Inglaterra, também o BCE irá em breve recomeçar as compras de títulos.

Será, porém, por razões diferentes, diz Andrew Kenningham, em nota partilhada com o Observador. “Achamos que há fortes comparações a fazer entre a situação na zona euro e no Reino Unido”, diz o economista, salientando que “o contexto macroeconómico é globalmente similar: tanto o Reino Unido como a zona euro estão a caminhar para a recessão e os respetivos bancos centrais têm vindo a aumentar as taxas de juro para tentar conter a inflação”.

Todavia, “embora na zona euro não se esteja a planear cortes nos impostos [como no Reino Unido], os governos europeus estão a braços com a necessidade de apoiar as empresas e as famílias com os seus custos de energia”. Além disso, entre outros fatores, Andrew Kenningham refere a incerteza relacionada com o novo governo em Itália como uma razão para que o BCE tenha de voltar a intervir nos mercados “num futuro não muito distante”.

Subir juros com recessão à vista. Até quando vão durar os nervos de aço dos bancos centrais?

E o que pode acontecer com a toda-poderosa Reserva Federal? Também nos EUA se pode antecipar um “pivô”? Jerome Powell tem garantido, de forma reiterada, que não irá abandonar prematuramente a luta contra a inflação e, portanto, irá continuar a subir as taxas de juro de forma rápida. Mas essa insistência está a ser comparada com a insistência com que o líder da Reserva Federal garantia, até ao final do ano passado, que a inflação era apenas “transitória” – ou seja, da persistência rapidamente se pode passar para a mudança de opinião.

Peter Schiff, um dos mais conhecidos comentadores financeiros nos EUA, não tem dúvidas: “Este é um gigantesco jogo do galo, portanto acredito que Powell vai continuar a tentar manter esta ilusão tanto tempo quanto for possível” – porém, “acredito que quando ele for realmente confrontado com quão feio isto se vai tornar, vamos finalmente ver esse pivô“.