As taxas de juro de Portugal no mercado superaram esta semana os 4% no prazo a 10 anos. É o valor mais elevado desde os dias tensos de fevereiro do ano passado, quando o governo discutia os planos orçamentais com Bruxelas, e contrasta com os juros abaixo de 2% de Espanha e Itália. Falámos ao telefone com Richard McGuire, responsável pela estratégia em dívida pública europeia do Rabobank, a partir da City londrina, para compreender o que está na origem desta pressão renovada.
Em termos absolutos, se vier a haver emissões com juros de 4% isso não será particularmente danoso para o custo global da dívida de Portugal, porque é um valor que não fica longe do custo médio da dívida total — “juros mais altos levam algum tempo até chegarem à corrente sanguínea”, explicou McGuire, porque a dívida vai sendo renovada e só lentamente os juros das novas emissões vão afetando o custo médio da dívida total.
Mas há dois problemas: em primeiro, outros países estão a aproveitar a política monetária para emitir a custos mais baixos do que a média da corrente sanguínea, ou seja, estão a poupar no pagamento de juros nos próximos anos; e, em segundo lugar, o problema é que, com um mundo de juros baixos em toda a parte, uma taxa de 4% hoje não é o mesmo que uma taxa de 4% há cinco anos — 4% hoje, enquanto a Alemanha paga pouco mais de zero, mostra que há uma perceção de risco latente que pode levar a que os investidores cada vez mais considerem a dívida portuguesa demasiado arriscada, independentemente da rendibilidade generosa.
McGuire diz que vêm aí “meses difíceis” e as compras do BCE vão deixar de ser a panaceia que já foram.
Os juros de Portugal estão acima de 4% a 10 anos, num mundo de fracas rendibilidades em todo o lado. O Rabobank está a recomendar aos clientes aproveitar estes juros?
Não. Há algum tempo já que recomendamos cautela não só com a dívida portuguesa mas, também, com a dívida dos chamados países periféricos, no geral. O nosso receio número um é o populismo e a ascensão de movimentos populistas no Ocidente, algo que ficou bem patente no referendo do Brexit e na vitória de Donald Trump nos EUA.
Sobretudo depois da vitória de Trump, estamos a ver uma viragem de maré nos juros da dívida, incluindo no caso de Portugal?
Até ao momento, nos países periféricos como Portugal as compras do BCE têm, em certa medida, protegido esses mercados de boa parte dos acontecimentos capazes de agravar a perceção de risco. Mas com a vitória de Trump notou-se, efetivamente, uma quebra e temos indicadores de mercado que mostram que a eficácia do programa do BCE está a ser desafiada.
O que quer dizer com eficácia?
Estou a falar na capacidade do programa de compras de dívida de proteger a dívida dos países mais fragilizados em relação à perceção de riscos específicos e em relação a incertezas políticas ou económicas. Já foi o tempo em que o programa era plenamente capaz de conter todos esses riscos. E o risco maior, na nossa opinião, é mais geral e está ligado à ameaça populista. A ameaça populista não coloca em risco apenas a unidade europeia mas, também, a coesão da zona euro.
As compras do BCE são suficientes para evitar que essas incertezas ameacem a capacidade de financiamento de alguns países?
Depois do Reino Unido e dos EUA, 2017 é o ano em que a Europa enfrenta várias barreiras em que o populismo pode vencer mas irá, certamente, no mínimo influenciar. Holanda, França, Alemanha mas, também, possivelmente, Itália [possíveis eleições antecipadas]. É muita incerteza e pode ser pedir demasiado — ao programa de estímulos do BCE — conter todos estes riscos.
E Portugal? Onde fica no meio de toda esta incerteza?
Vimos as taxas de juro a 10 anos subir para mais de 4%, o que já não víamos desde fevereiro do ano passado. Ou seja, é a segunda vez que os juros de Portugal superam este nível desde que começou o programa de compra de dívidas (março de 2015).
São níveis preocupantes?
Falando estritamente em termos de preço, do ponto de vista histórico, este nível de taxas de juro não é extraordinário. Não está longe do custo médio de todo o stock de dívida portuguesa. E como existe muita dívida seria preciso um período mais longo de financiamento mais caro para fazer subir o custo médio. Desse ponto de vista, não é caso para ficarmos automaticamente alarmados.
Correto, mas está a falar na taxa de juro absoluta. Em 2010/2011 também se dizia que os juros podiam estar nos 5% ou 6% durante algum tempo que isso não faria grande diferença no custo médio total. O problema não é, também, os quase mais quatro pontos percentuais em relação à Alemanha e os mais de dois pontos percentuais de diferença em relação a Espanha e Itália? É que esses países estão a conseguir fazer o contrário: lentamente, baixam o custo médio.
Claro, como dizia, desse ponto de vista é preocupante porque o nível relativo de juros é um símbolo da perceção de risco dos investidores. Juros altos não são necessariamente um atrativo — se forem demasiado altos a questão desloca-se para risco demasiado alto. Portanto, se a sua pergunta é se é um nível preocupante, a resposta é que depende da tendência daqui para a frente. É difícil apontar um valor específico como fronteira entre o que é aceitável e o que é perigoso, mas é certo que se pode chegar a um momento em que o sentimento negativo pode começar a alimentar-se a si próprio, como uma profecia que se cumpre a si própria.
Esse era um tipo de raciocínio que se ouvia muito da boca dos analistas em 2010 e 2011. Estamos a caminhar para a mesma situação?
Julgo que ainda estamos a alguma distância disso, mas a direção dos spreads [prémios de risco] é, em si própria, preocupante. Imaginemos que os juros da Alemanha não mudam muito e Portugal continua a subir — aí poderemos começar a chegar a esse ponto de inflexão em que a perceção de risco em torno de Portugal pode começar a ganhar um efeito de bola de neve. E é possível que os juros continuem a subir, sobretudo porque sabemos que existem ameaças externas de dimensão sistémica, a primeira das quais são já as eleições presidenciais francesas de maio.
O que acha que vai acontecer e que implicações haverá?
A maioria das opiniões e sondagens diz que Marine Le Pen não irá conseguir vencer. Mas toda a gente se lembra que as mesmas opiniões e sondagens diziam que o Reino Unido ia ficar na União Europeia e que Donald Trump não ia vencer a corrida à Casa Branca. Não temos qualquer base para avaliar qual é a força do apoio aos partidos populistas. Portanto, de um modo geral, os países periféricos estão muito vulneráveis e, se tivesse de apostar, diria que a tendência é a de que os juros continuem a subir em antecipação a esses momentos de risco como as eleições na Europa.
Voltando ao programa do BCE, sem o qual o economista-chefe do Natixis disse ao Observador, há alguns meses, que Portugal ficaria numa “situação dramática”. O ritmo de compras de dívida portuguesa tem vindo a cair nos últimos meses, o que pode ser fruto de o programa ter sido alargado e, no caso de Portugal, poder estar a atingir os limites auto-impostos pelo BCE [não comprar mais de 33% de cada linha de obrigações]. Isto deve preocupar-nos?
Estamos hoje mesmo a fazer alguns cálculos e estimativas, tendo em conta vários fatores como a quantidade de dívida que o BCE já tem em cada linha, a margem que ainda existe para comprar, as perspetivas de emissão futura. A conclusão que tirámos é a de que o BCE deve continuar a poder comprar dívida portuguesa até maio e, depois, vai ter de ultrapassar os limites. O programa tem alguma flexibilidade para “recalibrar” as compras, se for necessário para cumprir os montantes que o programa preconiza comprar. Mas as nossas contas apontam para que o Eurosistema possa comprar uma média de 419 milhões de euros em dívida pública portuguesa, o que compara com mais de mil milhões por mês que eram comprados anteriormente.
419 milhões por mês? Isso chega para travar a subida dos juros?
Podemos argumentar que isso pode não ser suficiente. É provável que não seja, porque é uma diminuição muito significativa em relação ao volume de compras que existia no passado. O programa de compras de dívida do BCE já não é a promessa de uma rede de segurança, como já foi.
Portugal está mais vulnerável do que outros países a essa perda de “eficácia” do programa de compras do BCE, como lhe chamou?
Um dos fatores específicos que fragilizam Portugal é a questão da dívida que chega ao mercado, aquilo que chamamos a oferta (supply).
Refere-se aos quase 16 mil milhões de euros que o IGCP precisa de emitir em 2017, em dívida de médio e longo prazo?
Não é só isso. Não podemos esquecer que algo que concorre com a emissão de nova dívida (pelo Estado) é a dívida existente que os investidores querem vender no mercado. Essa também conta, até porque o BCE vai comprar ao mercado e não diretamente aos Estados. Portanto, é preciso ter em conta as necessidades de financiamento, mas também é preciso ter em conta o grau de vontade dos obrigacionistas atuais em vender os títulos que têm. Tudo isso vai para o mesmo mercado. Portanto, só porque o BCE vai passar a comprar cada vez menos títulos isso não quer dizer que os juros vão subir, mas tudo vai depender de se os investidores atuais mantêm os títulos ou se os querem vender também. Se os outros investidores não tiverem confiança, o BCE não será capaz de travar os juros sozinho. E Portugal é mais vulnerável do que Espanha, por exemplo, a alterações no sentimento dos mercados a cada momento.
Que impacto tem sobre a confiança desses investidores manchetes como o ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, ou o presidente do Mecanismo Europeu de Estabilidade, Klaus Regling, a dizerem que Portugal virou para o lado errado e que está a regredir?
Não sei ao certo. Eu diria que os investidores são pessoas inteligentes e têm experiência suficiente para ver além de declarações politicamente motivadas. Os investidores querem é ver os números. Toda a gente sabe que há um conflito ideológico entre os defensores da austeridade e os seus opositores. Contudo, é claro que o receio é que esse conflito ideológico possa tornar-se um problema caso venha a ser necessário haver mais apoio financeiro, se um dado país entrar em dificuldades.
Os investidores querem ver números, mas as agências de rating, como a DBRS, sublinham sempre que aquilo que é muito importante para Portugal é a ausência de conflitos com os credores.
Sim, mas é natural que haja comentários mais politicamente motivados. Com a extrema-direita da Alternativa para a Alemanha (AfD) a respirar por cima do ombro de Angela Merkel, é muito difícil para ela fazer comentários reconfortantes em relação aos países periféricos. A situação política não é conducente a que os países mais poderosos se movam no sentido da única coisa capaz de resolver a crise europeia, que é a partilha de responsabilidades [mutualização de dívida]. E somos muito críticos do programa de compras de dívida porque acreditamos que contribuem para maiores desigualdades, porque inflacionam os preços dos ativos de alguns, mas reduzem os juros das poupanças do cidadão comum. Mas uma coisa boa do programa é que é a primeira instância de uma partilha de responsabilidades, neste caso via banco central.
Voltando a Portugal, estes primeiros dias de 2017 estão a ser marcados por muita incerteza e, uma vez mais, aquilo que acontece periodicamente que é Portugal ser notícia pelos piores motivos. Neste ano decisivo do ponto de vista político e com tanta coisa em jogo, Portugal pode tornar-se um tema de discussão nos próximos meses?
Não podemos excluir que isso possa acontecer, mas não quero parecer alarmista. É verdade que existe uma preocupação com Portugal, que está entre os mais vulneráveis. E também é verdade que existe uma ameaça populista e, na nossa opinião, as compras do BCE vão deixar de ser a rede de segurança que foram no passado recente.
Adivinham-se meses difíceis?
Pelo menos até às eleições alemãs, serão meses de alguma tensão e não devemos esperar que venham do centro da Europa grandes manifestações de apoio explícito. Mas, na verdade, ninguém sabe o que pode acontecer e para que lado podem ir os mercados. Quem sabe se o Sr. Trump foi eleito e vai acabar por nos salvar a todos e vamos todos viver felizes para sempre? Eu acho isso muito pouco credível, mas nunca se sabe.