Está sozinho num quarto com duas camas de grades e vista para a Avenida de Ceuta, em Lisboa. Apesar de ter acabado de acordar da sesta e de ainda estar meio estremunhado, rodeado de peluches e a esfregar os olhos inchados, assim que sente alguém chegar põe-se de pé no colchão, abre o sorriso e estica os braços — quer colo e o facto de nunca nos ter visto antes não há-de pesar mais do que isso.
Tem 15 meses acabados de fazer e zero medos ou vergonhas, tudo o quer é que o tirem da cama. Pode parecer um bebé sociável, simpático e bem resolvido — quem dera que todos fossem tão fáceis — mas, apressa-se a explicar Sandra Anastácio, diretora-geral da Ajuda de Berço, não é de todo assim. O que é suposto é que os bebés sejam desconfiados, que não se atirem à primeira para os braços de qualquer desconhecido.
C. passou o primeiro ano de vida no Hospital Dona Estefânia, onde nasceu em agosto de 2018 com problemas graves de saúde, e onde foi abandonado pelos pais, separados, que um dia não apareceram para a visita — e no outro a seguir também não e no seguinte idem. “O abandono pode ser feito de várias formas: há mães que abandonam os bebés e dizem ‘Vou-me embora, não quero saber mais’ — o que é raro —; e depois há mães que vão desligando aos poucos, que sabem que se vão embora mas não querem assumir isso, que vão deixando, até deixarem de visitar durante vários meses seguidos”, contextualiza a diretora-geral da instituição.
Quando, finalmente, teve alta, já com um ano, C. foi encaminhado para a Ajuda de Berço, criada em 1998 para acolher bebés como ele. É lá que vive há três meses, tempo insuficiente para apagar as marcas deixadas por um primeiro ano de vida em situação de internamento no hospital. E será exatamente por isso que nos pede colo.
“Este menino sofre de hospitalismo, um fenómeno estudado na Segunda Guerra Mundial com crianças e bebés deixados nos hospitais e nos orfanatos: com falta de colo, de carinho e de vinculação, desenvolvem uma série de problemas físicos e psicológicos, começam a embalar-se e a consolar-se a si próprias, é dramático”, explica a socióloga e diretora-geral da Ajuda de Berço. “Para além de não saber andar e de não ser seletivo nas pessoas com quem se vincula — ele vai com alegria para o colo de toda a gente porque foi assim que se habituou no hospital, que funciona por turnos e por onde passam enfermeiras, auxiliares, visitas e outros doentes a toda a hora —, abana-se, é uma espécie de autismo, de falta de estimulação. O abandono hospitalar causa outros problemas, é essencial que a criança que é abandonada só esteja no hospital o tempo necessário para fazer os tratamentos de que precisa.”
As mães que dão os filhos para adoção e as mães que “deixam de aparecer”
Quando, no mês passado, o país despertou para o drama do recém-nascido abandonado pela mãe num ecoponto em Lisboa, o responsável da unidade de cuidados intensivos neonatais do Hospital Dona Estefânia, para onde o bebé foi encaminhado, deu a entender que o caso não seria único e que existiriam nos hospitais portugueses várias crianças em situação de abandono, internadas por motivos de saúde desde o nascimento até atingirem a maioridade.
Não seria o caso do bebé resgatado do lixo por um grupo de sem-abrigo e informalmente batizado pelo INEM como Salvador: apesar do início de vida pouco auspicioso e de ter corrido riscos, era saudável, só precisou de um banho, de um biberão e de uma proteção antibiótica. Assim que teve alta, foi encaminhado pelo Tribunal de Família e Menores para uma família de acolhimento.
Mas foi o que aconteceu a C. e a uma série de outros bebés com problemas de saúde abandonados pelos pais, à nascença ou pouco depois. Não é que estejam efetivamente abandonados nos hospitais, explica Sandra Anastácio ao Observador, mas na prática, por motivos legais, é como se estivessem: “Hoje em dia já não há bebés abandonados nos hospitais, o que pode haver é bebés que têm um problema de saúde, estão de facto em situação de abandono, e ainda não tiveram alta clínica, pelo que não se pode procurar uma instituição de acolhimento”.
De entre os números totais de bebés abandonados em 2018, de acordo com o último relatório de atividades das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), não é possível perceber quantos recém-nascidos tiveram efetivamente de ficar hospitalizados para lá do tempo dito normal. O que salta à vista é um ligeiro aumento do número de casos de abandono registados à nascença ou nos primeiros seis meses de vida — de 8 em 2017 para 10 em 2018. Seja como for, garante ao Observador Patrícia Santos, assistente social no Hospital Fernando da Fonseca (HFF), os casos de abandono continuam a ser muito raros.
Amadora-Sintra: 10 a 20 casos de risco por semana
↓ Mostrar
↑ Esconder
Todas as semanas, a equipa multidisciplinar do Núcleo Hospitalar de Apoio à Criança e ao Jovem em Risco do Hospital Fernando da Fonseca, composta por pediatras, psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais, analisa entre 10 a 20 casos de crianças e jovens em risco ou perigo. Os casos de abandono são residuais, garante a pediatra Helena Nunes de Almeida, coordenadora da equipa. “70% dos casos dizem respeito a abusos físicos e 30% a abusos sexuais, sendo que temos notado também um crescimento das situações de risco provocadas pelos próprios jovens, quer por auto-mutilação, quer por tentativas de suicídio.”
No Amadora-Sintra, por exemplo, desde 2014 já foram deixados 17 bebés mas só três deles foram efetivamente abandonados. Um deles, no primeiro semestre de 2019: “Era uma mãe que já tinha outros filhos institucionalizados. Foi uma gravidez não vigiada e não desejada e assim que chegou ao hospital disse logo que não queria ficar com o bebé, e combinou aparecer para tratarmos do processo. Mas depois foi-se embora, não assinou nada, não registou o bebé e nunca mais conseguimos entrar em contacto com ela. O bebé ficou internado por motivos sociais e a mãe desapareceu; tivemos de pedir orientações ao tribunal porque, sem registo, a criança não pode sequer seguir para uma instituição. Acabámos por tratar nós do registo — com o nome da mãe — e um mês depois o bebé teve alta e foi para uma instituição”, explica a assistente social, que faz parte do Núcleo Hospitalar de Apoio à Criança e ao Jovem em Risco do HFF.
No fundo, mais do que semântica, a do abandono é uma questão legal, enquadra Patrícia Santos: se antes de deixarem os bebés as mães assinarem um documento, estão a entregá-los para a adoção, se não o fizerem, estão a incorrer num crime de exposição ou abandono, nestes casos punido com pena de prisão de 2 a 5 anos. “A maior parte das situações que temos tido são de mães que nos dizem logo ao início que querem dar os bebés para adoção. Isso não são abandonos: depois do parto, em vez de irem juntos para a obstetrícia, a mãe vai para o serviço de ginecologia e o bebé para o de neonatologia, e apesar de não terem qualquer contacto, a mãe tem sempre de fazer o registo do bebé (que é obrigatório por lei), e de assinar uma declaração a atestar que quer dar o bebé para adoção. A partir daí encaminhamos para a CPCJ, que vai validar a decisão e encaminhar o processo para os tribunais, que são os únicos que podem ordenar medidas de adoção”, explica a assistente social.
“As situações de abandono são diferentes, são pais que, por diversas razões, deixam de aparecer e nunca mais vêm visitar os bebés. Já tivemos algumas situações de pais que diziam que queriam ficar com os bebés, mas eram toxicodependentes e ao longo do internamento foram desaparecendo. Nestes casos, como os bebés nascem com síndrome de abstinência e têm de fazer morfina, podem ter de ficar dois ou três meses no hospital. Já tive outra situação em que estive durante uma semana a ligar, a mãe atendia o telefone, combinava comigo no dia seguinte e não aparecia. Depois dizia que tinha ficado doente ou dava outra desculpa qualquer. Tive de pedir a colaboração da polícia para ir lá a casa, mas mesmo assim foi complicado, porque ela depois também não compareceu na Comissão.”
Não é um processo simples: as CPCJ só atuam se os pais estiverem de acordo e os pais, com trocas constantes de números de telemóvel e de morada, são muitas vezes impossíveis de localizar — tarefa que o novo regulamento de proteção de dados veio tornar tudo ainda mais difícil. “Isto são mães que não querem mesmo pensar naqueles seres, nem sequer tratam das poucas coisas que tinham de fazer para que eles pudessem ter uma vida, um outro projeto. Depois temos uma legislação que, em toda a Europa, é das que mais restrições coloca à adoção e à possibilidade de os miúdos serem desinstitucionalizados. O foco não está muito na felicidade das crianças mas nos direitos dos pais”, desabafa Helena Nunes de Almeida, médica pediatra e coordenadora do Núcleo Hospitalar de Apoio à Criança e ao Jovem em Risco do HFF.
“Quantos bebés eu já não vi largados no balde do lixo?!”
Instituto Português de Oncologia de Lisboa, Hospital de São João, no Porto, e Hospital do Espírito Santo, em Évora, garantiram nunca ter registado qualquer caso de abandono de bebé ou criança. Em 2019, até novembro, apenas em outros dois hospitais da Grande Lisboa, apurou o Observador, já foram deixados seis bebés, dois na Maternidade Alfredo da Costa e outros quatro no Hospital Dona Estefânia — todos tiveram alta entretanto e foram encaminhados para famílias de acolhimento ou instituições de solidariedade social. Como a Ajuda de Berço que, em 21 anos de existência e num total de 400 bebés acolhidos, conta 19 por “motivo de abandono”. “Depois o que há é um número muito maior de crianças que acabaram por ficar aqui abandonadas”, ressalva a diretora-geral.
“Já nos deixaram dois bebés à porta e já recebemos bebés que foram largados em vãos de escada e em baldes do lixo. São vinte e tal anos de Ajuda de Berço, quantos bebés eu já não vi largados no balde do lixo?! Ainda assim, já foi muito pior. Em relação aos bebés abandonados nos hospitais, não havia alternativa, não havia instituições, ficavam lá até alguém olhar para eles ou até à Santa Casa da Misericórdia, no caso de Lisboa, ter vaga para os acolher. Havia muitos bebés abandonados nos hospitais e nós nascemos com o objetivo de, por um lado, olhar para as crianças que pudessem vir a ser vítimas de aborto e, pelo outro, de acolher os bebés que se encontravam abandonados nos hospitais”, recorda Sandra Anastácio. “Tanto já foi pior que, em 2002, a Ajuda de Berço tinha uma lista de espera de 90 bebés; e até há cinco anos só recebíamos bebés até aos três ou quatro anos e agora já acolhemos crianças até aos nove.”
Mesmo assim, e por muito mais dourada que a pílula esteja, C. não é sequer o bebé mais pequeno neste momento em situação de abandono no centro de acolhimento da Ajuda de Berço, no bairro da Quinta do Cabrinha, em Alcântara.
Entre os 20 bebés e crianças ali institucionalizados, há um menino de apenas 15 dias, que foi deixado pela mãe assim que nasceu, no Hospital de São Francisco Xavier. “Agora está novamente no hospital, com um problema respiratório. Antes de o deixar, a mãe deu o consentimento prévio — o pai não, é um bebé filho de pai incógnito. Daqui a seis meses a mãe vai voltar a ser chamada, para se perceber se mantém a decisão, e só depois disso é que poderá ser iniciado — ou não — um processo de adoção. É o que acontece com todas as crianças: ficam aqui até voltarem às famílias biológicas ou serem adotados. Quando não conseguimos estabelecer uma rede de apoio e reabilitar as famílias, para que se vinculem aos seus bebés ou crianças, fazemos prova na justiça de que a família não presta. E quando isso acontece não temos pudor nenhum em lutar para que as crianças ganhem uma família nova”, explica a diretora-geral da Ajuda de Berço.
O caso de C., que em vez de gatinhar se arrasta de rabo no chão, com uma perna semi-fletida a fazer de muleta, é um pouco mais complicado do que isso. Como os pais o deixaram no hospital sem aviso, nunca assinaram o documento a concordar com a sua adoção, pelo que cabe agora à instituição que o recebeu, em conjunto com o Ministério Público, a tarefa de os encontrar, ou a quaisquer outros membros da família mais próxima, como tios ou avós, para que possam manifestar-se legalmente sobre o seu futuro. “Quando se trata de abandono, não é possível às Comissões de Proteção de Crianças e Jovens obter, por parte dos pais, o consentimento indispensável para a intervenção. Por esse motivo, o caso é encaminhado para o Ministério Público. Trata-se sempre de um de processo de âmbito judicial”, contextualiza a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção de Crianças e Jovens (CNPDPCJ) em resposta ao Observador.
O que significa que só depois de esgotadas todas as tentativas legais é que C. poderá ser elegível para adoção. Para já, passaram 15 meses desde que nasceu e, por muito que a Ajuda de Berço tente ao máximo replicá-lo — “Funcionamos em três turnos, cada turno tem 4 pessoas e cada pessoa tem cinco bebés, sempre os mesmos cinco bebés, para procurar a vinculação que foi perdida”, explica Sandra Anastácio —, continua a não ter um colo de mãe.
“Os pais desapareceram muito pouco tempo depois do nascimento, não conseguimos encontrar ninguém, provavelmente já nem estão em território nacional. Houve uma associação, em contexto hospitalar, que o apoiou muito, mas não é a mesma coisa. Nos primeiros dias de vida é muito importante que um bebé esteja no colo da sua mãe, que lhe sinta o cheiro, que mame… Sacar um bebé do colo da mãe é uma das coisas mais violentas desta vida”, diz a diretora-geral da Ajuda de Berço.
“A falta de afetos nos primeiros meses de vida tem repercussões muito graves ao nível do desenvolvimento psicomotor da criança. E a falta de estimulação sensorial também — os bebés hospitalizados estão o dia inteiro no mesmo sítio, numa caminha numa enfermaria, sem luz natural, a olhar para o teto. Não saem dali, andam muito pouco ao colo das pessoas, porque temos o problema das infecções hospitalares, não tem nada a ver com a vida em casa”, acrescenta a pediatra Helena Nunes de Almeida.
Neste contexto e no Hospital Fernando Fonseca, a que acorre fundamentalmente uma franja mais desfavorecida da população, reconhece a médica, pouca diferença fará o facto de os bebés internados terem ou não sido abandonados: a partir do momento em que estão sujeitos a longos períodos em enfermarias, quase todos ficam sozinhos. “Temos muito o problema das famílias com vidas complicadas que têm doentes crónicos pequeninos no hospital e que os vêm visitar poucas horas por dia (ou nem todos os dias), portanto os meninos são muito cuidados pelos profissionais do hospital, pelos enfermeiros, auxiliares, médicos, voluntários… Temos muitos bebés muito sozinhos no hospital porque os pais não podem cá estar com eles, porque têm outros filhos ou porque têm de trabalhar… Agora temos um bebé que tem uns quatro meses, está cá desde nasceu, e a mãe só consegue vir uma hora por dia, portanto são as voluntárias que lhe fazem miminhos.”
Aprender a comer aos 15 meses
Sentado no chão da sala de brinquedos, com uma voluntária e outros dois bebés, mais ou menos da mesma idade, C., já bem desperto, vai mordiscando um molho de chaves coloridas, indiferente à conversa dos adultos. Ao todo, naquele que é o primeiro centro de acolhimento da Ajuda de Berço, construído no espaço outrora ocupado por quatro armazéns, ao comprido e ao longo de um estreito corredor, há seis quartos, à direita e à esquerda, uns interiores, outros com janela para a Avenida de Ceuta.
Sobre as camas estão as fotografia e os nomes dos bebés ou crianças que lá dormem, auxiliares de memória essenciais para as várias dezenas de funcionários e voluntários que por ali passam todos os dias. Na parede do quarto de C. — que, para já, está sozinho para se resguardar de vírus e afins nestes primeiros meses no novo ambiente — há ainda, acima do muda fraldas, uma lista com todos os cuidados de saúde de que necessita.
Ninguém diria que aquele bebé, que entretanto largou as chaves e se agarrou a uma peça de puzzle de madeira, que também vai mordendo afincadamente, até há bem pouco tempo não tolerava por o que quer que fosse na boca, tão dolorosas eram as feridas que tinha, em consequência de meses de intubação. “Como não havia outra forma de o alimentar e de lhe fornecer oxigénio, esteve muito tempo intubado e ficou com trauma na cavidade oral, não suportava que se lhe tocasse e nunca usou chucha, faz da própria língua chucha. É uma evolução extraordinária, já põe tudo na boca e agora está a aprender a comer pela boca e a engolir”, explica Sandra Anastácio.
Só depois do nascimento é que se percebeu que C., fruto de uma gravidez indesejada e desacompanhada, não era um bebé saudável. Mais: que era um bebé que ia precisar de cuidados de saúde para o resto da vida. Não tinha ligação entre o esófago e o estômago e, por isso mesmo, teve de permanecer internado no hospital durante meses, ao longo dos quais foi submetido a uma série de cirurgias. Finalmente, quando fez um ano, já com o sistema digestivo devidamente reconstruído, teve alta clínica e foi encaminhado pela Segurança Social para a Ajuda de Berço.
Só agora, aos 15 meses e com cerca de um ano de atraso, é que começou a saborear os primeiros alimentos — e apenas através de chupetas de alimentação, com redes onde as ajudantes de ação educativa vão depositando pedaços de fruta e legumes, para evitar o risco de asfixia.
No dia a dia, continua a ser alimentado de forma líquida, por PEG (ou Gastrostomia Endoscópica Percutânea), diretamente no estômago, um método que obriga a uma série de cuidados e que pode até comportar riscos de infeção mas que pode ser executado por qualquer pessoa. “Não são precisas enfermeiras, qualquer mãe consegue fazer isto. Continua a ter problemas de saúde, vai tê-los a vida toda, mas não precisa de estar num hospital. Percebo que não é fácil para ninguém, que ainda para mais vai ter um bebé que não quer ter, deparar-se com uma criança nestas circunstâncias. Acho que uma mãe que abandona um filho tem sempre associado, à parte todos os problemas sociais, um problema de saúde mental”, diz a diretora-geral da Ajuda de Berço. “Enquanto não olharmos para estas mães que estão em risco; mães sozinhas, com adições… enquanto as instituições de saúde e judiciais não olharem para as mães e para os pais das crianças nunca mais vamos combater este flagelo que é uma criança que fica sozinha. Esta mãe possivelmente vai abandonar outros filhos”, vaticina.
Fala do cimo de décadas de experiência e de exemplo, garante, enquanto uma auxiliar atravessa o corredor em direção à zona da cozinha e das casas de banho, com uma bebé de apenas dois meses ao colo: “É irmã de outra menina que passou por aqui e que acabou por seguir para adoção. É filha de outro pai mas a situação é a mesma, às vezes muda, mas neste caso não. As famílias que apanhamos são basicamente sempre as mesmas, porque não tratamos do que há para tratar; continuamos a sacar crianças, tiramos daqui, pomos ali, mas não tratamos pais. E enquanto não ajudarmos pais não salvamos crianças”.
Por muito chocante que seja, o abandono é apenas a ponta do icebergue, uma situação que não chega sequer ao top das maiores situações de perigo diagnosticadas pelas CPCJ em 2018 — representou 1,8% de um total de 13.905. Negligência (43,1%), comportamentos de perigo na infância e juventude (18,7%), direito à educação (17,4%), violência doméstica (11,9%) e maltrato físico (2,8%) foram as situações que a precederam.
Nem é preciso sair da sala repleta de brinquedos da casa da Ajuda de Berço, na Avenida de Ceuta, para perceber que o que não faltam são casos dramáticos. Como o de M., 13 meses, passo seguro e sorriso desarmante, que apesar de não ter sido rejeitada pela mãe, toxicodependente, foi-lhe retirada à nascença — para passar depois três ou quatro meses de agonia e dor enquanto expulsava a droga do próprio organismo.
Ao contrário das duas gémeas de 6 anos ligadas a ventiladores no quarto ao lado, abandonadas ali na instituição pelos pais, incapazes de lidar com a grave doença neuromuscular de origem genética com que ambas nasceram, M. não entrará no sistema para ser adotada. “Vai ficar com a família alargada, com uma tia”, diz Sandra Anastácio. “Quanto às gémeas, apesar de estarem com sentença para adoção, parece-me pouco provável que isso aconteça. Precisam de um arsenal de equipamentos e de idas frequentes aos hospitais, são meninas que seguramente vão crescer aqui connosco, por casos como os delas é que queremos fazer uma nova casa, com capacidade para receber estes meninos que precisam de cuidados especiais de saúde.”
Se a situação evoluir como previsto, C. deverá deixar de fazer parte deste grupo em breve. Na copa da Ajuda de Berço, numa mesa baixa, redonda e colorida, dois meninos e uma menina, entre os 2 e os 3 anos, estão sentados, já de babetes postos, à espera das respetivas tigelas de leite com cereais. Numa cadeira de alimentação alta, C. também está pronto para o lanche mas, para já, não precisa de proteger as roupas de eventuais acidentes. Em vez de com uma colher, é alimentado por seringa, que lhe leva a papa diretamente ao estômago. Não lhe sente o sabor e a auxiliar que lhe vai injetando o líquido grosso na sonda confessa que não faz ideia sobre se o bebé se vai ou não sentindo saciado. Bate palmas e sorri — e isso já é muito mais do que fazia há apenas três meses.