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O encontro foi numa sala simples. O primeiro-ministro vestia uma camisa preta, sem gravata. Em cada lugar havia uma garrafa de água e espalhados em cima das mesas estavam os posters com os rostos dos reféns que estão algures na Faixa de Gaza. Tinha passado uma semana e um dia desde o fatídico 7 de outubro, quando militantes do Hamas os haviam raptado de vários pontos de Israel. Agora, pela primeira vez desde então, Benjamin Netanyahu reunia-se com alguns dos seus familiares.
Netanyahu holds first meeting with families of Israeli captives in Gaza https://t.co/vVkkSm1Q0P . Click to read ⬇️
— The Times of Israel (@TimesofIsrael) October 15, 2023
Representantes de cinco famílias estavam ali presentes, escolhidos na sequência de uma decisão coordenada entre o gabinete do primeiro-ministro israelita e a recém-criada organização “Quartel-Geral das Famílias”. Mas, a meio da reunião, uma outra família que nenhum dos presentes aparentemente conhecia juntou-se ao encontro.
Um homem tomou a palavra e fez uma declaração dissonante do tom geral, em que pais e filhos pediam encarecidamente ao primeiro-ministro que fizesse tudo o que fosse possível para resgatar os seus entes queridos: “Não amo a minha filha menos do que qualquer um dos que aqui estão amam os seus filhos. Mas, no final de contas, temos de olhar para Israel e garantir a continuidade da sua existência”, afirmou, segundo o Times of Israel.
A frase e a estranheza daquelas presenças não caiu bem entre os familiares dos reféns. “Sentimos que foi oportunismo político. Ele não veio connosco, deve ter sido convidado”, dizia um dos presentes à saída da reunião ao Canal 12. Desde então, os media israelitas revelaram que o homem é um ativista de extrema-direita, próximo da família de Netanyahu, e não tem qualquer ligação conhecida aos reféns. O gabinete do primeiro-ministro garante ao Haaretz, contudo, que não o convidou e que ele apareceu espontaneamente.
O fosso entre “Bibi” — a alcunha pela qual é conhecido o primeiro-ministro que governa Israel há mais tempo do que qualquer antecessor — e as famílias dos reféns é cada vez mais fundo. “Alguns já me disseram que, se isto continuar assim, vão pedir a [Joe] Biden que os represente”, comentou um membro do “Quartel-Geral das Famílias”.
É um reconhecimento do apoio concedido pelo Presidente norte-americano às famílias afetadas: afinal, Biden fez uma vídeochamada com os familiares de raptados com nacionalidade norte-americana, que durou mais de hora e meia, numa altura em que Netanyahu ainda não tinha sequer falado com nenhum deles. “Quem dera que as famílias israelitas tivessem este tipo de abraço e de simpatia”, comentou um dos pais, Ruby Chen, à Foreign Policy.
O “Senhor Segurança” que enfrentou a maior falha na História de Israel
Em tempos chamaram-lhe “Rei de Israel”. “Bibi Melech Yisrael” era a frase entoada frequentemente por apoiantes do primeiro-ministro, adaptando a frase original da canção judaica David Melech Yisrael. Foi assim que Netanyahu foi recebido numa reunião do seu partido, o Likud, em janeiro de 2017, mesmo depois de ter sido aberta uma investigação criminal contra si — acusado de três crimes ligados a corrupção, o primeiro-ministro tem o processo judicial suspenso devido à imunidade que lhe é concedida pelo cargo de chefe de governo.
Agora, porém, tudo mudou para Benjamin Netanyahu. O ataque do Hamas de 7 de outubro, que provocou a morte a mais de mil pessoas e resultou no rapto de mais de 200 israelitas, foi uma hecatombe com duras consequências políticas. Uma sondagem de 20 de outubro dá conta que 80% dos israelitas consideram que Bibi deve assumir responsabilidades pelo que aconteceu. A maioria considera que o líder da oposição Benny Gantz — que faz agora parte do governo de emergência nacional — daria um melhor primeiro-ministro nesta altura que Bejamin Netanyahu. A confiança dos israelitas no seu governo está em 18%, o valor mais baixo dos últimos 20 anos.
“Há um sentimento esmagador entre a sociedade israelita de que Netanyahu tem grande parte da culpa pelo massacre de 7 de outubro”, aponta ao Observador Guy Ziv, diretor do Centro de Estudos sobre Israel da American University. “Até agora, o chefe dos serviços de segurança internos, o Shin Bet, pediu desculpas pela falta de preparação. O mesmo fez o responsável pelos serviços de informações militares. E, no entanto, Netanyahu não assumiu qualquer responsabilidade por aquilo que foi o maior falhanço na História de Israel.”
A demora em reunir com os familiares dos raptados e a incapacidade de assumir responsabilidades pelo que aconteceu são dois dos fatores que mais têm incomodado os israelitas na atitude de Bibi. Ainda para mais porque muitos consideram que o timing do ataque foi escolhido tendo em conta a situação de crise que se vivia em Israel, devido à polémica reforma judicial que Netanyahu tentava aprovar.
“Foi uma enorme distração que, sem dúvida, contribuiu para destruir a coesão da sociedade israelita em geral e das Forças Armadas em particular, que o Hamas conseguiu explorar”, nota o professor Ziv. “No passado dezembro, Netanyahu formou o governo mais à direita e mais religioso da História do país. Deu cargos importantes, incluindo os de segurança, aos seus lacaios, que não tinham conhecimento ou experiência. Os seus ministros promoveram zelosamente uma agenda altamente impopular para enfraquecer o Supremo Tribunal, destroçando a sociedade israelita. E milhares de reservistas das Forças Armadas, incluindo os das unidades de elite e forças especiais, ameaçaram não se apresentar ao serviço. Foi um desastre que levou a um desastre ainda maior.”
E que tem um impacto particularmente grave num político que, ao longo da carreira, se apresentou como paladino da Defesa. As alcunhas de “Senhor Segurança” e “Bibi-sitter” foram usadas nas suas campanhas eleitorais e Netanyhu nunca se coibiu de invocar as suas credenciais no combate ao terrorismo. No passado criou uma Fundação em nome do irmão, morto num ataque em 1976 no Uganda, e escreveu um livro sobre o tema. O título é Combater o Terrorismo: Como as Democracias podem derrotar os Terroristas Internos e Internacionais.
Os que querem “servir a cabeça de Netanyahu numa bandeja” vão desde colegas de partido até aos generais
“Há uma total unanimidade quanto ao facto de que, quando a guerra acabar, Netanyahu é passado”, comentou ao Haaretz um ministro em funções do Likud, o próprio partido do primeiro-ministro. “Enquanto falamos, o Likud está a preparar-se para servir a cabeça de Netanyahu numa bandeja, a fim de salvar o partido. Se ele não chegar à conclusão óbvia, outros vão chegar por ele.”
Em público e dando a cara, muitas figuras de proa da política israelita vão dizendo abertamente que Bibi tem de sair. Os antigos primeiros-ministros Ehud Barak e Ehud Olmert, por exemplo, já o disseram. “Netanyahu não tem a confiança do povo, das famílias dos que foram chacinados, nem dos comandantes e dos soldados no terreno”, resumiu Olmert, que é também do Likud.
Dois antigos membros da Mossad também fizeram críticas diretas ao primeiro-ministro em público. O ex-diretor Efraim Halevy disse ao The Times que Netanyahu não adotou o tom certo em público desde o ataque de 7 de outubro. Já o veterano David Meidan foi ainda mais ácido: “Bibi Netanyahu é um fingidor. É um falso.”
Perante este cenário, difícil é encontrar em Israel quem diga que Benjamin Netanyahu será primeiro-ministro durante muito mais tempo. “Ele pode manter-se no cargo enquanto a guerra durar, mas não tem futuro político”, resume Guy Ziv. “Até os seus apoiantes de longa data o abandonaram e querem que ele se demita.”
Os que conhecem Netanyahu, porém, pensam que o primeiro-ministro não tenciona deitar a toalha ao chão. “Neste momento, durante os briefings e reuniões operacionais, ele só está a pensar na sua própria sobrevivência. É essa a sua natureza”, comentou um antigo colega com Anshel Pfeffer, jornalista do Haaretz e autor da biografia Bibi: The Turbulent Life and Times of Benjamin Netanyahu.
É com isso em mente que muitos analistas e jornalistas israelitas olham com desconfiança para os sinais que vão surgindo em torno da operação militar em curso na Faixa da Gaza. O atraso numa invasão terrestre prometida há duas semanas pode explicar-se precisamente pelas tensões internas dentro do governo e na relação de Netanyahu com as Forças Armadas.
“Netanyahu está em campanha. Está a recolher materiais contra o exército e afirmar em conversas em off que não tem culpa e que a informação [sobre o ataque] não lhe chegou”, comentou outra fonte com o Haaretz. Na passada sexta-feira, o site Walla publicou uma notícia dando conta de que a mulher do primeiro-ministro teria dado instruções para que fossem recolhidos todos os detalhes das comunicações que Netanyahu manteve e continua a manter com representantes da área da segurança e da defesa, numa tentativa de preparar o terreno para uma possível comissão de inquérito futura.
Ao mesmo tempo, o ambiente dentro do executivo é de cortar à faca. Ao Ynet, um ministro responsabilizou mesmo Bibi pelo atraso na invasão e chamou-lhe “um cobarde”.
A situação é pior ainda entre Netanyahu e o ministro da Defesa, Yoav Gallant. A relação entre os dois já se tinha deteriorado quando, em abril, Netanyahu pediu a demissão do ministro, por considerar que este não foi suficientemente firme com os reservistas que ameaçaram não se apresentar ao serviço, em protesto pela lei judicial. Os protestos na rua fizeram Bibi voltar atrás, mas a relação com Gallant nunca melhorou. “O que salta agora à vista é a tensão entre o primeiro-ministro e Gallant”, notou uma fonte do executivo ao Haaretz. “Já é de algum tempo, todos sabemos o que aconteceu no passado, mas também se aplica ao futuro, a quem vai ser responsabilizado pelo falhanço.”
Para além da tensão entre ministros, há ainda o diferendo de Netanyahu com as Forças Armadas. O biógrafo Pfeffer já notou no passado, por exemplo, como Bibi sempre desconfiou dos generais, que pensa poderem ter aspirações políticas. Guy Ziv, que escreveu recentemente um livro intitulado Netanyahu vs The Generals, elabora sobre esta questão: “As notícias sobre a tensão entre Netanyahu e a liderança do exército, com o primeiro-ministro a tentar culpá-los pelo 7 de outubro, não são surpreendentes e encaixam-se no seu modus operandi. Ele sempre manteve os generais à margem, sempre os viu como esquerdistas e rivais políticos.”
No meio de uma guerra, começa a desenhar-se um cenário em que as Forças Armadas parecem querer avançar para uma invasão, mas o primeiro-ministro vai resistindo — também por pressão do governo norte-americano, que teme o contágio do conflito ao Líbano. Os sinais dessa resistência são notados numa recente campanha que tem circulado nas redes sociais e que foi promovida por Ran Baratz, antigo membro do gabinete de Netanyahu: “Bombardeiem os túneis subterrâneos antes de entrarem nos subterrâneos”, pede o vídeo, que foi partilhado por várias figuras vistas como próximas de Netnyahu.
Em concreto, estará uma estratégia de prolongar o conflito e manter a campanha aérea ou com ataques localizados, em vez de avançar para uma invasão de larga escala a Gaza. “Por ele, isto pode ir continuando com pausas até ao verão”, comentou com o Haaretz uma fonte que conhece o primeiro-ministro. “Isso garante que ele não tem de testemunhar no seu julgamento [no qual estarão a ser ouvidas testemunhas até meados de 2024], o qual morreria face aos atuais desafios. Ele espera que, durante esse período, as pessoas esqueçam o choque e a raiva se dissipe.”
“Vai-te embora, Bibi.” Netanyahu sem apoio, nem sequer entre as vítimas e familiares dos reféns
A reação popular, contudo, não parece estar a virar a favor de Netanyahu. Até entre os familiares dos raptados, que, na maioria, querem evitar uma invasão terrestre por temer que resulte na morte dos reféns. O grupo tem defendido a negociação com o Hamas, na esperança de que os reféns ainda possam ser libertados e, para isso, contornou o governo israelita. Segundo o biógrafo Pfeffer, os familiares arranjaram os seus próprios negociadores, a maioria antigos espiões do Shin Bet e da Mossad com ligações ao mundo árabe. O jornalista é claro ao dizer que “Netanyahu está petrificado face às famílias dos reféns. Isso pode ter impacto na sua capacidade de decisão”, escreveu.
Para além dos protestos diários que grupos de apoio às vítimas têm promovido em frente à residência oficial de Netanyahu, o descontentamento popular face ao governo tem sido expresso muito claramente nas ruas. Ao longo das últimas semanas, dois ministros foram insultados em público quando foram a hospitais visitar vítimas do 7 de outubro. No kibutz de Bari, um dos mais afetados pelo ataque, a visita preparada de Netanyahu com a sua entourage não foi bem recebida: “Eu ainda não tenho autorização para voltar para a minha casa. Se alguém tem o direito a tirar uma fotografia ao pé da minha casa, onde passei 48 horas de inferno até conseguir escapar, sou eu”, escreveu um dos residentes numa publicação de Facebook, que terminava com a frase “Vai-te embora, Bibi”.
Com a libertação dos primeiros reféns vindos de Gaza, os familiares das vítimas ganharam novo ímpeto, como notou ao The Guardian Daniel Levy, antigo negociador israelita: “Deu-lhes abertura para falar mais em público, para se afirmarem. Quanto tempo terão de esperar até receberem outro gesto ou outra libertação, não sabemos.”
A questão dos reféns pode mesmo influenciar toda a situação em Gaza e até quaisquer movimentações militares, nota Guy Ziv. “Os israelitas estão com a respiração suspensa à espera de que os reféns sejam libertados”, diz o professor, que sublinha que a tradição na sociedade israelita é a de tentar obter sempre a libertação de reféns, custe o que custar. “Os israelitas pensam em cada um dos reféns como sendo membros da sua própria família.”
Significa isso que Bibi ainda tem uma esperança? Se, graças a intensas negociações, o primeiro-ministro conseguir pelo menos a libertação de alguns reféns e avançar só depois para uma ofensiva militar, talvez Benjamin Netanyahu possa ainda voltar a ser apelidado de “Rei de Israel”? O professor Guy Ziv considera que essa é uma esperança vã para Bibi: “Nem que todos os reféns fossem libertados… Nada seria suficiente para salvar a sua carreira política neste momento.”