“Está-se bem na Bica do Sapato. Mesmo muito bem” — Foi desta forma que a 20 de dezembro de 1999 o célebre David Lopes Ramos encerrou a crítica ao espaço que viria a mudar a restauração lisboeta daí para a frente. Na altura, a casa de Fernando Fernandes, José Miranda, Manuel Reis e John Malkovich tinha inaugurado há poucos meses mas para o famoso crítico gastronómico já era “o acontecimento do ano”. Nos últimos tempos, porém, essa aura parece ter esmorecido e as notícias que têm surgido apontam para um desfecho menos feliz. Apesar da posição oficial da Bica do Sapato ser de que o espaço simplesmente “fechou para obras”, como disseram ao Observador, a verdade é que os rumores que dão conta da venda do espaço podem ter razão de ser.
Sendo a empresa que detém o restaurante, a Bica do Sapato – Turismo e Hotelaria, Lda., responsável por todo o complexo de armazéns do Cais da Pedra e, consequentemente, senhorio de casas como a loja de discos Flur, o espaço de decoração Nord, a pizzaria Casanova, o Delidelux e o restaurante Cais da Pedra, falta perceber ao certo qual o impacto que esta alteração terá nestas casas. O Observador falou com várias pessoas ligadas a estes negócios e ficou a perceber que pelo menos a loja Nord e a Flur vão abandonar esta localização (a primeira já tem espaço novo e a saída acertada e a segunda permanecerá no mesmo sitio pelo menos até outubro de 2020). O “quadro” que se segue é o resumir (ou culminar?) de vários anos de um sonho que pode não sobreviver à constante mutação da capital.
Lisboa vira-se para o rio
A cidade de Lisboa vivia uma roda vida de transformações na passagem dos anos 90 para os 2000. Talvez um pouco a reboque da profunda transformação da zona do Parque das Nações, a propósito da Expo 98, os lisboetas (clientes e investidores) passaram a “virar-se mais para o rio Tejo”, como diz ao Observador o jornalista gastronómico Paulo Amado, e a Bica do Sapato acabou por ser um dos vértices mais aguçados dessa mudança.
Quando “o Bica”, como informalmente é tratado, nasce em 1999, Fernando Fernandes e José Miranda já tinham o famoso Pap’açorda do Bairro Alto aberto há 18 anos. Estreara-se em 1981, na Rua da Atalaia (onde permaneceu até 2016, altura em que se mudou para o primeiro andar do Time Out Mercado da Ribeira), e o seu nascimento surge fruto de um convite de Manuel Reis. Até então, Fernandes e Miranda trabalhavam num restaurante de comida tradicional portuguesa na Costa da Caparica. O espaço é inaugurado com o objetivo de criar uma espécie de meio-termo entre a simplicidade das tascas e o formalismo de grandes casas como o Aviz ou Gambrinus e, apesar de Fernandes ter apenas 22 anos na altura (“era um miúdo”, revela numa entrevista dada à revista Inter), o sucesso acabou por se cimentar.
Com o passar do tempo a relação de Fernandes, Miranda e Manuel Reis vai-se fortalecendo, cria-se quase que um eixo Pap’açorda-Frágil (e vice-versa), até que o tal “boom” pré-ano 2000 serve para unir ainda mais estes três homens. Em setembro de 1998 Manuel Reis inaugura a discoteca Lux e, segundo a tal entrevista de Fernando Fernandes à Inter em 2019, o mesmo Manuel começa a desafiá-lo para um novo projeto de restauração. Ao que tudo indica, o carismático Reis sugeriu “muitas vezes” que Fernandes trouxesse o Pap’açorda para o espaço que morava em frente ao Lux, antigo edifício de uma empresa de estivadores datado de 1910, mas este recusou — queria criar “uma coisa nova” com “uma cozinha mais moderna, mais contemporânea.” Assim foi: depois de terem falhado “negociações com o Jardim do Tabaco”, ofereceram-lhes esse espaço ribeirinho, o tal vizinho da famosa discoteca lisboeta, com o agora trio de sócios a lançar-se numa aventura.
Fernandes, Miranda e Reis decidiram então criar uma espécie de réplica do Bairro Alto em todo aquele espaço. Numa entrevista concedida no âmbito do Makro Food Bizz 2016, Fernando explica que quiseram “ficar com o espaço todo para que não viessem” para o seu lado “pessoas que não tivessem a ver” com eles e isso traduziu-se numa espécie de curadoria, feita por convite, onde os homens por trás da Bica do Sapato escolhiam a dedo os seus vizinhos. Havia uma loja de discos da Valentim de Carvalho (mais tarde transformar-se-ia na Flur, que ainda hoje existe); uma livraria de arquitetura que depois deu lugar à loja de decoração Nord; a pizzaria Casanova (descendência direta do Casanostra no Bairro Alto, de Maria Paola Porru); a mercearia gourmet Delidelux e o Facto Lab, híbrido peculiar onde a esta sucursal do já famoso e “bairroaltiano” cabeleireiro com o mesmo nome se juntava uma loja de ténis. Em 2013, este último exemplo deu origem ao restaurante Cais da Pedra, a hamburgueria do chef Henrique Sá Pessoa (e do grupo Multifood, que entretanto passou a ser dono do Delidelux, também) que ainda hoje permanece no mesmo sítio.
Moderna e com Portugal lá dentro
Paulo Amado é uma das pessoas que mais de perto acompanhou a evolução da gastronomia portuguesa nas últimas décadas. Via telefone, o responsável pela revista Inter, o site Etaste, a organização do Congresso dos Cozinheiros e muitos outros eventos recorda ao Observador o ano de 2011, altura em que fazia um guia de restaurantes: “Não havia dúvidas que nessa altura [a Bica do Sapato] era um dos melhores restaurantes de Lisboa.” Esta ideia era generalizada e já vinha de trás. Desde o momento em que abriu portas pela primeira vez que se afirmou como uma lufada de ar fresco no panorama gastronómico lisboeta. Mais uma vez, Fernando Fernandes, José Miranda e, agora também Manuel Reis, conseguiam criar algo que a cidade não tinha: um espaço cosmopolita, enorme (dividia-se em 4 partes, o sushi-bar, a cafetaria, o restaurante fine dining e a esplanada) e com os olhos postos na cultura dos chefs, algo que até então não se fazia.
O primeiro a liderar a cozinha do Bica foi Joaquim Figueiredo, emigrante que tinha regressado a Lisboa para abrir uma pequena brasserie na zona da Lapa quando foi descoberto por Fernandes. “Ele queria renovar a comida portuguesa”, disse nessa entrevista no evento da Makro. E foi conseguindo, ele e os vários cozinheiros que por esta casa passaram, entre eles nomes que hoje brilham como o de Fausto Airoldi, João Rodrigues, Alexandre Silva, Bertílio Gomes e Henrique Mouro, que deu por lá os seus primeiros passos e que regressara agora para chefiar a cozinha na companhia de Pedro Rezende Pereira. “A Bica sempre foi moderna com Portugal lá dentro”, conta Amado.
Pratos como uma pá de cabrito com crosta de azeitonas, pão, ervas aromáticas e batatas da padeira (que custava 2900 escudos, cerca de 14,50€, em 1999) ou o lombo de bacalhau com puré de feijão e lulas estaladiças com limão foram conjugando simplicidade com técnica, inovação com tradição. Paulo Morais foi o segundo sushiman da história da Bica do Sapato, substituindo “um japonês brasileiro” que teve de regressar a casa. Ao Observador, Morais (que hoje está à frente do Tsukiji e do Kanazawa) explica que foi lá parar quando regressava de uma curta estadia de trabalho pelo Algarve, depois de já ter passado “sete anos no Penha Longa”. Fausto Airoldi foi quem o convidou para esta viagem que ocuparia cinco anos da sua vida e que hoje recorda como algo que o “marcou muito, num ótimo sentido.”
Na altura já existiam espaços de sushi em Lisboa, “mas nenhum com aquela dimensão”. Foi na mezzanine suspensa em cima da sala de jantar que Paulo e Ana Lins passavam a maior parte do tempo e descobriram, conta o próprio Morais, uma série ingredientes que até então não se usava na cidade: “Foi lá que tive conhecimento do caranguejo real, do caranguejo de casca mole, do próprio lírio [tipo de peixe], até.” Recorda as horas que passava a conversar com José Miranda, por exemplo, que era o ” homem da gastronomia” que o desafiava e incentivava todos os dias. “Ele era a pessoa mais incrível daquele restaurante […]. Ninguém percebia do assunto como ele, ficávamos horas a conversar”, conta. Paulo diz que esta sua passagem pela Bica do Sapato ajudou-o “a abrir horizontes, a pensar de forma diferente”, e tudo isto só ajuda a provar ainda mais o quão importante foi todo este projeto — tanto para ele como para a cidade.
Quando tudo começa a correr pior
Foram anos dourados, aqueles que se seguiram à abertura da Bica do Sapato. A aura e o sucesso do Pap’açorda contagiaram este irmão mais novo que rapidamente se tornou num ícone da cidade. “Tudo o que era artista estrangeiro que vinha a Lisboa acabava sempre por ir lá parar”, conta Paulo Morais.
O Bica passou a ser o sitio onde ia toda a gente que fosse importante, dos ministros aos músicos, portugueses ou internacionais. O mesmo Morais relembra entre sorrisos um ritual de observação que tinha com os seus colegas: o “planeta Herman José”: “Nós cá de cima tínhamos uma visão muito gira porque víamos a cafetaria toda e havia com frequência uma coisa engraçada a que chamávamos de planeta Herman José. As mesas eram redondas e a dele era sempre incrível, tinha sempre seis ou oito pessoas. Depois tinhas os seus “satélites”, as outras mesas de pessoas que queriam estar próximas dele e ficavam nas mesas circundantes. Era o planeta Herman e o seus satélites [risos]. Ele ia lá muitas vezes, a mesa dele começava com oito e acabava sempre com umas 16 pessoas.”
Como este haviam muitos exemplos, hoje ainda se mantém alguma clientela ilustre — ainda há pouco tempo publicaram uma foto de Marcelo Rebelo de Sousa a jantar numa mesa junto à esplanada –, mas as coisas mudaram muito.
https://www.facebook.com/bicadosapato/photos/a.10153119133075107/10161189496940107/?type=3&theater
Na tal entrevista ao vivo no âmbito da conferência Makro Food Bizz, Fernando Fernandes (que já tinha mudado o seu Pap’açorda do Bairro Alto para o Mercado da Ribeira), admite que se “sentia uma ilha” na zona onde brilhou juntamente com o Frágil, e começa por explicar que o que o fez abrir ali o Bica foi a sensação “de que a cidade ia aumentar, ia crescer à conta da Expo”. No seguimento dessa afirmação acaba por concluir que tal acabou por não acontecer.
Em 2008 o mundo inteiro mergulhou numa crise profunda e Portugal não foi exceção. A economia retraiu de forma abrupta, os portugueses fecharam os seus porta-moedas e a restauração, vista por muitos como um “luxo”, sofreu com isso. Foi a reboque dessa conjuntura que os famosos quatro ambientes da Bica do Sapato passaram a três: “A cafetaria foi integrada no restaurante. Depois de 2008 passaram a ser um só espaço porque era tudo muito grande e com a crise deixou de haver poder económico para um restaurante gastronómico como eu tinha.” Este terá sido um dos primeiros momentos em que se percebeu que este bastião de sofisticação e motor de evolução gastronómica também tinha fragilidades como todos os outros. Na mesma intervenção Fernandes explica como este cenário o levou a “olhar a custos”. Em que é que isso se traduziu? “Resolvi diminuir as minhas cozinhas, por exemplo. Tinha duas, cada uma com uma equipa.”
Os anos foram passando, seguiam-se os altos e baixos do negócio que apesar de ainda seduzir muita gente tinha perdido o fulgor dos seus tempos áureos. O panorama da gastronomia e hotelaria lisboeta também mudava a um ritmo cada vez mais acelerado. Fosse como forma de tentar combater a crise ou simplesmente para aproveitar o acréscimo de turistas que aos poucos já se começava a sentir, mais restaurantes foram abrindo, e a esperança de que a cidade se estendesse para aqueles lados continuava por cumprir. Até o processo de implementação do metro mesmo à porta do restaurante quase pareceu piorar. Aquilo que à partida seria algo de ótimo acabou por envolver obras demasiado grandes e morosas que afugentavam clientes do Bica e das outras casas que habitavam aquele complexo de armazéns.
No início de 2016 o Pap’açorda muda de sítio, ganha uma cara nova mas “Zé” Miranda, sócio original de Fernando Fernandes no “Papa” e parte do trio que depois fundou e geria o Bica, morre. Em agosto desse mesmo ano é publicada na página de facebook da Bica do Sapato uma despedida profundamente sentida:
É com uma tristeza profunda que nos despedimos hoje de um amigo de toda a vida. Juntos fizemos um percurso feito de coisas em que acreditamos. A vida impõe que seja agora e assim a despedida. A vida impõe-nos a morte mas permite-nos guardar e eleger memórias; do Zé Miranda guardamos a bondade, a generosidade e uma personalidade de poesia que o levava a prestar atenção à beleza e a detalhes que só ele sabia ver. Hoje somos menos e fica aqui um lugar vazio.
Adeus Zé.
Fernando Fernandes e Manuel Reis”
O choque deixou marca. Miranda fazia parte do motor que movia este(s) projeto(s) para a frente, como o próprio Paulo Morais explica: “era um senhor da gastronomia”. No final de março de 2018, o vaso, já lascado, racha de vez, quando se sabe que “Manel” Reis também tinha morrido, uma baixa de peso na própria história recente da Lisboa cultural, gastronómica, política, urbana e artística. De repente, Fernando Fernandes viu-se sozinho, sem os seus sócios, os seus conselheiros, os seus amigos. Comenta-se em surdina que este desaparecimento foi um golpe muito duro para o transmontano de Montalegre que veio para Lisboa com 22 anos e desistiu do curso de Economia para se virar para a restauração, primeiro com um espaço na Costa da Caparica e depois com o “Papa”. O negócio ressentiu-se.
Manuel Bóia, o chef até então, decide “abraçar um novo projeto” — como diz Fernandes à Inter — e a dupla Henrique Mouro e Pedro Rezende Pereira assume o controlo no final de 2018. “A maior mudança que houve [no Bica] foi esta que está a acontecer neste momento. Foi a mais radical.”, explica o proprietário referindo-se à ementa da sua casa. Deixou alguns clássicos mas houve muita coisa nova, muita renovação. Tentativa de salvar um barco que já seguia agitado? Talvez. Olhando para as notícias recentes que dão conta do alegado encerramento e venda do espaço a novos investidores (apesar de a posição de Fernandes se manter no “Estamos só fechados para obras”) é possível presumir que as coisas não iam bem.
Um pouco por todo o complexo de armazéns do Cais da Pedra comenta-se que a saúde financeira deste projeto já não anda bem há vários anos, de tal forma que, segundo o que o Observador conseguiu apurar, os vários arrendatários do senhorio Bica do Sapato tiveram aumentos consideráveis nas suas rendas. O acréscimo foi de tal forma considerável que pelo menos dois negócios dessa zona comercial, a loja de decoração Nord e a meca dos discos Flur, já decidiram sair de lá. O que acontecerá a seguir? Essa é a grande questão. O futuro desta zona ribeirinha mantém-se numa grande incógnita: a Bica do Sapato foi mesmo vendida? Se sim, foi na totalidade ou só parcialmente? Quem a comprou? O que vão fazer com ela? As dúvidas são muitas. Uma coisa, porém, é certa: qualquer desfecho irá sempre ter repercussões em toda esta área e na cidade de Lisboa, quanto mais não seja porque o eventual fecho da Bica do Sapato seria o ponto final numa das histórias mais saborosas da capital.