Fazer as pazes com os eleitores zangados, puxar por um novo acordo escrito com os socialistas — frisando que o Bloco não desejava (nem contava que acontecesse) uma crise política — e contar com o instinto de sobrevivência de António Costa num PS que começa a fervilhar e a olhar para Pedro Nuno Santos como o senhor que se segue.
É mais ou menos assim que, uma semana depois de a crise política ter rebentado, o Bloco de Esquerda pensa o seu próprio rumo e a campanha que aí virá. A poeira ainda está a assentar e não é claro, na cabeça dos bloquistas, o efeito que a convocação de eleições antecipadas poderá ter junto do seu eleitorado — o eleitorado que o próprio Bloco julga ter validado o rumo da geringonça e pedido uma repetição da solução nas eleições de 2019.
Publicamente, os dirigentes bloquistas ocuparam-se, nos últimos dias, a repetir as mesmas garantias para eleitor ouvir: não foi o Bloco que quis uma crise, o Bloco só se focou em nove propostas orçamentais já com a intenção de não dispersar nas negociações, o Bloco não considera que as eleições fossem a resposta inevitável ao chumbo do Orçamento, e que se o PS quisesse mesmo negociar tinha negociado e evitado este cenário. Catarina Martins até chegou a mandar uma carta aos militantes para fazer os mesmos avisos e apelar a que os eleitores não se deixem seduzir pelos apelos à maioria do PS.
Chegados aqui, e arrumada a narrativa que serve, no imediato, para conter danos no pós-crise, segue-se a fase seguinte: os argumentos e os cenários que os bloquistas traçam para campanha eleitoral que se segue. As variáveis são muitas — e muitas, confiam o Bloco, vão ser resolvidas dentro do próprio PS.
O efeito Pedro Nuno e Costa, o survivor
Com os dados que existem hoje em cima da mesa é pouco provável que as próximas eleições legislativas venham trazer uma dinâmica parlamentar muito diferente: PS minoritário, esquerda com maioria no Parlamento, António Costa dependente de Bloco e/ou PCP. Neste cenário, os bloquistas apoiam tudo no instinto de sobrevivência de António Costa — preferirá o socialista cair sem acordo ou vergar-se à esquerda?
“A situação de ingovernabilidade pode pôr em causa a liderança do PS”, sugere um dirigente, fazendo eco do que se vai comentando nos bastidores do partido: se a situação do Governo ficar insustentável, sem conseguir chegar a acordos que resolvam o impasse político, o PS vai começar a agitar-se internamente e Costa pode sair fragilizado.
O passo seguinte não é difícil de adivinhar: há um único nome que paira consistentemente quando o assunto é a sucessão de Costa e é o de Pedro Nuno Santos, o rosto da ala esquerda do PS que nunca negou a vontade de liderar o partido e que ainda esta semana fazia questão de dizer aos jornalistas que a geringonça não foi “um parênteses” na política portuguesa.
Dentro do PS, os pedronunistas vão garantindo que o terreno está todo pronto para o eventual sucessor, mas também lembram que este não é o tempo de furar a união que (ainda) existe no partido. Se houver crise prolongada, logo se verá.
Consciente da agitação interna que se vai vivendo no PS, o Bloco de Esquerda aposta tudo neste “logo se verá”. Os bloquistas acreditam que se António Costa quer sobreviver internamente não pode deixar o impasse arrastar-se indefinidamente sob pena de alimentar a irritação da ala mais à esquerda do PS — e o capital político de Pedro Nuno Santos.
Bloco quer acordo escrito e olha para Espanha
Há um ano, quando o Bloco de Esquerda rompeu com o PS, instalou-se uma tese no partido: se o PCP tomasse a mesma atitude, seria impossível a Costa fugir a responder ao grande nó das relações à esquerda: a exigência de alteração das leis laborais.
Este ano, o PCP pegou efetivamente no tema e misturou-o nas negociações orçamentais, ainda que sem sucesso. O sinal, no entanto, foi revitalizador para o Bloco de Esquerda. Com esta mudança de orientação dos comunistas, o partido liderado por Catarina Martins acredita que agora — e muito por causa da tal ameaça interna que pode aparecer no PS — Costa pode ser obrigado a negociar com a esquerda e voltar a tentar uma solução.
Entre os dirigentes do Bloco ouvidos pelo Observador, a garantia que existe é que o partido não vai focar a campanha num interminável passa-culpas sobre de quem é a responsabilidade pela crise política. Pelo contrário: Catarina Martins vai repetir até à exaustão de que urgente reconstruir um “projeto de consenso à esquerda”.
No Bloco de Esquerda, de resto, há quem sugira que é preciso repetir a célebre fórmula que Jerónimo de Sousa usou no nascimento da geringonça, em 2015. Desta vez, também “só não há acordo se Costa não quiser”.
Esta vontade de compromisso tem uma regra de ouro e inultrapassável: o Bloco de Esquerda só aceitará fazer parte da solução com um acordo por escrito, com uma “lista de medidas” e prazos concretos e escrutináveis, tão ou mais sólido do que aquele que foi assinado em 2015.
Ninguém ignora as dificuldades desse processo. Os bloquistas continuam a insistir em exigências, leis laborais à cabeça, que o PS diz serem muito difíceis de satisfazer (embora tenha dado alguns passos, pela primeira vez, a começar pela caducidade da contratação coletiva, dos temas mais emblemáticos para a esquerda).
Mas o Bloco olha para Espanha, onde esta terça-feira o PSOE de Pedro Sánchez chegou a acordo com o Unidas Podemos para finalmente resolver o impasse quanto à lei laboral que está em vigor desde os tempos do PP de Mariano Rajoy (2012).
O acordo ainda está por detalhar — como dizem os jornais espanhóis, faltam as “letras pequenas”, que terão de ser definidas pelos ministérios do Trabalho e da Economia — mas o topo do Governo decidiu assumir que se trata de uma “revogação” da lei laboral, uma vitória para a esquerda, enquanto garante que vai procurar um acordo “justo e equilibrado” para descansar os empresários.
É neste exemplo que o Bloco deposita agora as suas esperanças e vira o seu discurso de campanha para provar que existe o tal “projeto de consenso à esquerda”, confiante em que nessas duas semanas Costa terá mesmo de responder publicamente e esclarecer sobre o que pretende fazer com as leis laborais.
Um arrufo ou um namoro acabado?
Uma situação de ingovernabilidade poria, claro, em xeque na mesma ou até em maior medida os partidos de esquerda, e no BE isso também é reconhecido: se BE e PCP forem “necessários” para garantir que há Governo (e que não é de direita), terão de mostrar boa vontade e negociar. Se as bancadas encolherem, terão necessariamente menos força negocial.
Para evitar esse cenário, será preciso perceber a reação dos eleitores a esta crise. O Bloco acredita que a campanha será mesmo determinante. Por um lado, porque traçar toda esta narrativa — é inevitável para o PS entender-se com a esquerda e aqui estão as exigências, sobretudo laborais, do Bloco — leva tempo e exige uma resposta do PS.
Por outro lado, porque os dirigentes bloquistas admitem que pode haver eleitorado “zangado” — se as eleições acontecessem já, sugere um, o partido provavelmente estaria em maus lençóis — mas também há esperança de que o “arrufo” possa desaparecer até à data das eleições. Eleitores de cabeça quente a seguir à crise, sim; eleitores ainda de cabeça quente daqui a meses e depois de uma campanha em que o Bloco insistirá que esta é a oportunidade para forçar o PS a virar à esquerda veremos, acreditam os bloquistas.
O risco de toda esta estratégia é evidente: ela só terá espaço para ser posta em prática se não houver maioria absoluta para o PS e os socialistas forem mesmo obrigados a negociar, nem que seja com bancadas diminuídas do lado esquerdo do hemiciclo. Se os eleitores decidirem castigar a esquerda ou a bipolarização funcionar de tal modo que os votos recaiam sobretudo sobre PS (ou até sobre PSD, colocando a direita no poder), a perda de influência do BE dificilmente se reverterá. Uma estratégia de alto risco, portanto.