Rafael Moreno Aranzadi: Este nome diz-lhe alguma coisa? É provável que não. E se, em vez disso, for mencionada apenas a palavra “Pichichi”? Pode continuar a não haver grandes esclarecimentos. Contudo, seguramente existirão mais pessoas a reconhecer o nome do prémio entregue pelo jornal Marca, todos os anos desde 1953, ao melhor marcador da Liga espanhola – o Troféu Pichichi.
Para lá do galardão – que Cristiano Ronaldo venceu por três vezes –, há toda uma história quase mítica atrás do homem que lhe deu o nome. Recuando até 1913, com a cidade de Bilbau como pano de fundo, encontramos Aranzadi a alinhar pela equipa principal do Athletic Club, de Bilbau, e a marcar o primeiro golo de sempre no já icónico estádio de San Mamés (jogo contra o Racing de Irún que terminou empatado a uma bola). Até aqui, nada de anormal; no entanto, analisando os dez anos de carreira deste Pichichi, é fácil perceber o motivo que o transformou numa autêntica lenda: em 89 jogos oficiais marcou 86 golos.
Para sempre imortalizado num busto que mora à saída do túnel de jogadores, no renovado San Mamés, ainda hoje se cumpre a tradição de o homenagear sempre que uma equipa pisa este relvado pela primeira vez – antes do apito inicial, é lhe entregue um ramo de flores. “No estádio antigo era ainda mais impactante: o busto estava na bancada central e os jogadores tinham de subir para deixar as flores. Era um momento lindo”, conta Borja Gonzalez, o atual diretor de exploração do estádio que mostrou os cantos da casa ao Observador. Como bom filho de sua terra – a fama gastronómica do País Basco dispensa apresentações –, Aranzadi era um apaixonado pela comida e os rituais da mesa, e foi precisamente esse amor bon vivant que veio a ditar a sua morte precoce: “Ele morreu muito cedo, comeu uma ostra estragada e nunca conseguiu recuperar”, explicou Borja.
Se há coisa que este pedaço de história mostra é que a comida é algo absolutamente incontornável no contexto do Athletic. Prova disso é, por exemplo, todo o investimento feito nesta área aquando da construção do mais recente San Mamés. Desengane-se quem achar que chamar-lhe “Catedral Gastronómica” pode ser um exagero. É uma afirmação mais que válida e é precisamente isso que se irá explicar. Antes de aí chegar, porém, convém perceber um pouco melhor o carácter especial desta equipa que tem, todos os jogos, pelo menos cinco chefs Michelin a cozinhar no seu estádio.
O verdadeiro “Més Que Un Club”?
Adeptos de futebol mais atentos reconhecerão a frase que aparece no subtítulo anterior – “Més Que Un Club”. O slogan que pode ser traduzido à letra para o português – “Mais Que Um Clube” – é uma das imagens de marca do Barcelona e pretende transmitir a ideia de que há muito para lá do emblema que se pode levar ao peito. Não duvidando da validade desta afirmação, que é propagada por um clube que chega a ter quase mais turistas do que adeptos nos seus jogos, ela facilmente podia ser traduzida para o basco e impressa nas camisolas do Athletic.
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“O Athletic foi um dos fundadores da Liga espanhola, em 1929, e é, juntamente com o Barcelona e o Real Madrid, o único que desde então nunca desceu à 2.ª Divisão”, começa Borja por explicar. É um fator impressionante, claro, mas mais ainda é o facto de este ser “um clube que ainda é um clube”, como diz o nosso anfitrião. A frase pode ser confusa, mas o que quer dizer é que no Athletic não existe uma SAD, por exemplo. Não existe o magnata proprietário ou o oligarca CEO e todas as decisões importantes são tomadas junto dos mais de 40 mil sócios (que ocupam, aproximadamente, 90% dos lugares do estádio com lugares cativos), através de votação. Foi desta forma, por exemplo, que se decidiu remodelar completamente todo o já mítico estádio de San Mamés.
“Quisemos atualizar a nossa casa, torná-la mais moderna e eficiente”, explica Borja enquanto do outro lado de uma janela, no relvado, uma série de máquinas vão cuidando do terreno de jogo. A decisão justificava-se: apesar de ainda estar plenamente funcional, o estádio era o mais antigo de toda a Espanha (inaugurou em 1913) e já merecia uma segunda vida. Foi desta forma que no dia 26 de maio de 2010, por volta das 12h, foi lançada a primeira pedra daquela que seria a nova casa dos Leões do País Basco. À semelhança do que aconteceu com alguns estádios portugueses, a nova casa ficou praticamente no mesmo sítio da antiga, umas centenas de metros ao lado, o que fez com que a 16 de setembro de 2013, quando o Athletic jogo no seu novo estádio pela primeira vez, o mesmo ainda não estava totalmente concluído e uma das bancadas tinha “vista” para os destroços da sua encarnação passada. Só um ano mais tarde, a 27 de agosto de 2014, é que todos os quase 54 mil lugares do San Mamés foram completados – a estreia deu-se numa partida de apuramento para a fase de grupos da Champions, contra o Nápoles, que os bilbaínos venceram por 3-1.
Apesar das suspeitas de uso inapropriado de financiamento europeu na construção do “novo” San Mamés, a verdade é que no final de 2013 tudo seria tido como mentira. No total, Borja diz que foram gastos na construção do estádio 180 milhões de euros, valor surpreendentemente baixo que, segundo o cicerone, foi alcançado através de vários concursos públicos para a construção do projeto, em vez de apenas um: “Fizemos um só para o cimento, outro só para o aço… Assim sucessivamente. Isso permitiu-nos baixar o preço final”.
São onze contra onze… e no fim ganha a comida
A entrada para o piso intermédio do San Mamés pode ser feita de duas formas: através de uma escadaria interior, acessível para lá das portas dos adeptos, ou por elevador, vindo diretamente do parque de estacionamento subterrâneo. O Observador foi pela primeira. “Bem vindos à zona VIP do San Mamés”, explicou o anfitrião. Pintado a preto, branco e vermelho, um aberto e amplo espaço com vista para o relvado fazia-se cobrir com sofás de cabedal preto, mesas altas, painéis de azulejos e, ao fundo, um bar. É aqui que começa a explicar o papel preponderante da comida nesta “Catedral”.
“A gastronomia está no centro da edificação deste estádio”, conta o representante do Athletic. Só no andar VIP – todo o anel intermédio do San Mamés – existem cinco cozinhas profissionais totalmente equipadas que, em todos os jogos, sem exceção, são operadas por pelo menos cinco chefs com estrela Michelin. “Quando surgiu o debate sobre como funcionariam as comidas e bebidas no estádio, a primeira opção foi uma companhia de catering qualquer, muito provavelmente de uma multinacional ou algo do género”, explica Borja antes de falar do momento em que tudo mudou. “Começámos a pensar: porque não apostamos antes nos nossos cozinheiros, que são dos melhores do mundo? Ao menos sempre dávamos dinheiro aos de cá!”. E assim foi: o Athletic celebrou então um acordo com sete cozinheiros bascos, todos de Bilbau e todos com estrelas (no total há dez em jogo, um restaurante de três e sete com uma), que prevê que pelo menos cinco desses sete servirão criações suas a todos os que vierem à bola.
“É uma decisão que, na nossa opinião, faz todo o sentido”, explicou o anfitrião Basco – de recordar que só nesta região espanhola existem 39 restaurantes destacados no Guia Michelin, somando-se um total de 34 com uma estrela, um com duas e quatro com três. De toda essa constelação, os astros que, semana-sim-semana-não, vestem a camisola listada de vermelho e branco, são o Nerua, do chef Josean Alija, Azurmendi (o único três estrelas), de Eneko Atxa, Etxanobe, do cozinheiro Fernando Canales, Zortziko, de Daniel García, Andra Mari, da chef Zuriñe García, o Boroa, de Jabi Gartzia e ainda o Zarate, de Sergio Zarate. É a responsabilidade destas pessoas alimentar todos os que encherem os quase 6620 metros quadrados de zona VIP, que poderão matar a sede, claro, com o melhor vinho regional, o Txakoli (uma espécie de vinho verde) – em cada jogo são selecionados dois produtores da zona. O que se vê, portanto, é um passar para o prato daquilo que o clube sempre fez: honrar as suas tradições regionais.
Toda esta comida começa sempre a ser servida uma hora e meia antes dos jogos e estende-se por mais uma hora, depois do mesmo terminar. Durante esse tempo pode-se comer em dois tipos de espaço: um deles é o das zonas comuns, as áreas com mesas ou sofás, e a outra hipótese são os camarotes – que também não são iguais a todos os outros. Durante décadas, Bilbau foi uma cidade altamente industrial, servindo ao mesmo tempo como um dos principais portos de Espanha. Ao longo da Ría de Nervión O de Bilbau, que atravessa a cidade, vários cargueiros recolhiam e descarregavam contentores de mercadorias. Tudo isto pode ter mudado radicalmente no final da década de 90, com a inauguração do grandioso Museu Guggenheim de Bilbau que marcou a viragem da cidade, mas esse historial não foi esquecido, faz parte da identidade deste povo e é por isso que os camarotes foram desenhados com esse imaginário industrial em mente. Todos eles têm a forma daqueles contentores transportados por cargueiros e isso, diz Borja, “é mais uma forma de homenagearmos a nossa cidade e a sua história”.
Menus de degustação em vez de bifanas
Ainda pelos meandros da zona mais exclusiva do estádio – é enorme e até inclui um espaço que tanto pode servir de bar como pode ser transformado numa espécie de auditório com capacidade para 400 pessoas sentadas – deparamo-nos com uma zona mal iluminada, onde há um bar comprido e umas mesas, tudo decorado a tons escuros com pormenores brilhantes. “Esta é uma das áreas de restauração mais exclusivas”, explicou o basco que guiava a excursão. No San Mamés Jatetxea (“Restaurante”, em basco) encontra aquele que será o ponto gastronómico mais especial de todo o estádio. Com capacidade para cerca de 50 pessoas, este espaço alocado à zona VIP é um restaurante de fine dining em todo o sentido da palavra. Aberto todos os dias menos durante os jogos, esta casa que pretende homenagear a comida típica de Bilbau (tão rica em carnes como em peixe e marisco) tem o formalismo característico dos chamados restaurantes gastronómicos, definição que pode soar a pleonasmo mas é jargão do meio hoteleiro e remete a casas de comida criativa e de autor. Liderado pelo chef Ion Gomez – outro “filho da terra” –, o restaurante San Mamés serve menus de degustação completos que podem ser de seis (45€ por pessoa), nove (60€) ou 12 pratos (75€). “É uma experiência muito especial”, atirou Borja antes de se seguir caminho.
“Repararam no exterior do estádio? É um material especial que nos permite projetar o que quisermos toda a volta. Foi um dos maiores investimentos que fizemos” – esta curiosidade foi dita pelo anfitrião quando chegámos às enormes janelas da La Campa de Los Ingléses. Não seria justo reservar o direito de comer bem apenas aos adeptos da zona VIP e por isso o clube quis criar um espaço mais universal, onde todos os adeptos se pudessem reunir para comer, beber e celebrar a sua equipa. Foi assim que nasceu este espaço cujo nome remota ao sítio onde pela primeira vez se jogou futebol no País Basco.
Num ambiente descontraído que tenta imitar os balneários do clube (há camisolas dos jogadores penduradas por todo o lado, como se estivessem nos respetivos cacifos) e homenagear os típicos bares de pintxos (o nome basco para tapas) da cidade são servidas doses de jamón ibérico (14,90€), claro, e especialidades como um prato de morcela e chistorra (uma salsicha típica da região, 12€) ou até polvo grelhado com paprika e batata a murro (15,90€).
O palmarés desportivo do Athletic – nunca chamar-lhe só “Bilbau” ou muito menos “Athleti”, só a ideia de serem confundidos como Atlético de Madrid pode dar azo a discussão – é considerável (oito Campeonatos de Espanha, 24 Taças e 2 Supertaças espanholas), mas está longe de ombrear com o de clubes como o Real Madrid ou o Barcelona. “Contudo”, exclamou Borja Gonzaléz quase no final do tour, “é preciso ter em conta” que “nunca houve um estrangeiro a jogar pelo Athletic” e “todos os jogadores vêm sempre da formação ou são bascos”. Há um enorme trabalho dedicado a fazer o clube seguir em frente, com o sucesso possível e tendo em conta todas as restrições e dificuldades subjacentes a não só jogar na La Liga (uma das melhores do mundo) como também utilizando apenas os “frutos da cantera“. No meio disto tudo não deixa de ser louvável a vincada vontade de ter fora do campo o orgulho que nele escorre sempre que o árbitro apita e a bola rola. O orgulho de celebrar a importância que a gastronomia tem neste “canto” da Península Ibérica e, com isso, fazer com que todos o potenciem sempre mais.
O Observador viajou a convite do restaurante Nerua e do Governo da Bizkaya