Nos anos 80, Lech Walesa é uma das figuras mais repetidas e irrepetíveis do telejornal português da RTP, esse programa nunca mais (infelizmente) visto com a duração de 20/25 minutos. É o homem-revolucionário, o eletricista do estaleiro naval de Gdánsk que funde e lidera o Sindicato Solidariedade, o Prémio Nobel da Paz em 1983 e o presidente da Polónia entre 1990 e 1995. Aparece sempre na televisão. A preto e branco. E a cores. Como João Paulo II, Ronald Reagan, Mikhail Gorbachev, entre outros. Figuras daquele tempo. Como Walesa, um ícone. Na Polónia, a quantidade de Lech Walesas é elevada. Sejam peões, empregados de restaurantes, taxistas ou futebolistas. Agora escolha. E escolhemos Boniek. Que só fala em polaco ou italiano. Optamos pelo bloco b.
Heyyyyy, tudo bem desde 2012?
2012?
Entrevistei-o antes do Europeu.
Ah sim? Não me lembrava disso, foram tantas as intervenções que perdi a conta.
Na altura, o Boniek estava animado com o Euro-2012. E agora?
Estou animado com o Mundial-2018 [na altura do telefonema, a Polónia ainda nem está qualificada]. Sempre à frente, ahahah.
Sempre à frente ou não tivesse sido o Boniek avançado.
Nem sempre, sabes? Antes dos seniores, muito antes, cheguei a jogar como defesa-central.
A sério?
Como era alto, impunha-me com mais facilidade que os outros. Só aconteceu às vezes. Na maioria das vezes, era médio de ataque.
Bem sei, o Maradona dizia que o Boniek era o melhor do mundo em contra-ataque.
Ahhh, o Maradona, belas recordações.
Então?
Vê-lo a jogar era um caso sério. Quando jogava na Juventus, lembro-me de planearmos no balneário a marcação homem a homem.
E resultava?
Baaaaah, nem por isso. A nossa vontade era acertar-lhe para metê-lo na ordem, só que ele escapava sempre com a classe que o distingue dos demais.
E depois?
A única solução era desfrutar do seu jogo, não havia outra maneira. Foi o maior. Via-se que o seu futebol era o de rua.
E o do Boniek?
Também, claro. Todos os daquela geração aprenderam a jogar no meio da rua, onde a lei do mais forte é cruel.
Então?
Hey, eu era o dono da bola. Por isso nem me queixo muito, mas havia desníveis enormes. Falo de desníveis sociais. Como o meu pai jogava futebol na Polónia, sempre tive acompanhamento e bola para jogar. Havia miúdos com talento sem nada disso e perderam-se.
O Boniek safou-se?
Aos 17 anos, um olheiro do Widzew Lodz levou-me para longe de casa. Começou aí a minha verdadeira aventura. Prometi à minha mãe continuar a ir bem nos estudos e fazer-me futebolista internacional.
E?
Tirei um diploma com tese e tudo.
De futebol?
Naaaaah, isso seria fácil demais. Tese de basquetebol.
A sério?
Hum hum.
E a parte do futebolista internacional?
Dois anos depois, estava a jogar o Mundial-78, na Argentina.
Nada mau.
Comecei no banco, com a RFA. Depois, com a Tunísia, outra vez banco. Ao terceiro jogo, o do tudo ou nada, com o México, o selecionador virou-se para mim e disse-me: ‘Há muita gente que acredita em ti, que me faz pressão para meter-me a jogar, mas eu acho que tenho razão em encostar-te ao banco. Hoje, vou meter-te a titular e vamos ver quem tem razão’.
Uauuu. Como acaba?
Três-um para nós, com dois golos meus.
A partir daí, o céu é o limite.
Um ano depois, em 1979, há um jogo entre a seleção argentina, campeã do mundo, e uma seleção da FIFA em Buenos Aires. Bettega [Juventus] lesiona-se à última hora, Rummenigge [RFA] e Blokhin [URSS] não podem ir por compromissos com as respetivas seleções. Então, Bearzot [seleccionador italiano] chama-me. Lá fui. Sem saber do meu futuro na Juventus, joguei ao lado de Tardelli, Cabrini, Rossi e Platini, com quem aliás dividi o quarto.
Platini e Boniek no mesmo quarto, isso é futurologia pura.
Ahahahah. Deu certo. Em 1982, juntámo-nos em Turim.
É o ano do Mundial de Espanha.
O prazo das inscrições para o campeonato italiano acabava em Abril, antes do Mundial. No dia 30, estavam dirigentes da Roma e da Juventus hospedados no mesmo hotel em Varsóvia para me contratarem. A Roma desiste por falta de meios e a Juventus contrata-me. Por dois milhões de dólares, que agora não é nada no futebol. Nessa mesma noite, o Michel assina pela Juventus em Turim.
https://www.youtube.com/watch?v=S_QlDFUEpaU
Dois estrangeiros.
Os únicos do plantel. De resto, só italianos. Todos de fibra. Basta começar pelo guarda-redes.
Zoff?
No primeiro dia de treinos, viro-me para ele e pergunto-lhe se o trato por tu ou você.
Uau. E ele?
Só sorri. Para bom entendedor.
E mais, e mais?
Na apresentação oficial dos dois estrangeiros aos adeptos da Juventus, o Michel guiou-nos a mim, à minha mulher e à minha filha no seu Range Rover verde. Estavam assustados com aquela receção. Muita gente. Imensa mesmo.
Quantos?
Acho que uns 50 mil.
Xiiiii
Gentile protegeu-me dos abraços mais calorosos dos adeptos e ao Michel tiraram-lhe o pullover de caxemira. Michel foi um jogador de outra galáxia e é sobretudo boa pessoa, tímida e reservada. A treinar-nos, o melhor de sempre: Trapattoni.
Era mesmo bom?
Uma máquina. Quando perdemos a final da Taça dos Campeões em 1983, com o Hamburgo, ele só dizia ‘porca miseria’. No balneário, em Atenas, ninguém falou falou durante meia-hora. Às tantas, o Trapattoni vira-se e diz-nos que vamos ganhar tudo daí em diante. Olha lá o que se passou.
Em 1984, foi a Taça das Taças vs Porto.
Com um golo meu, o 2-1.
No ano seguinte (1985), a Taça dos Campeões.
A tragédia de Heysel Park. É o jogo mais longo da história. Ainda não acabou, sabes? Nem festejei, nem toquei na taça. Nem sequer fiquei com o prémio de jogo, as 100 milhões de liras. Dei-o todo às famílias das vítimas. Para mim, é uma taça não ganha, o que é pena porque depois ganhámos a Supertaça Europeia ao Liverpool, com dois golos meus, e mostrámos que éramos superiores em toda a linha.
Heysel muda o futebol?
Há mais coisas. O doping administrativo, por exemplo.
Como?
Os clubes que não pagam aos jogadores. E as televisões.
Ah sim?
A televisão devora tudo. Cobrem-te de ouro e pedem-te a vida em troca. Agora um jogo dura quê? Um dia, se tanto. Pode ser o jogo da tua vida mas não resiste. No dia seguinte, há outro jogo. E depois outro. E mais e mais e mais. Por exemplo, tu que és português: sei tudo do Benfica de Eusébio e Torres e pouquíssimo do Benfica de hoje. O futebol devia ser como no passado: toda a jornada ao domingo, e vá lá, um jogo antecipado para sábado à noite.
Boniek é conhecido como “bello di notte”.
Foi uma alcunha que pegou, na verdade. Foi um evento em Nova Iorque. Estava lá o Kissinger e o advogado [Agnelli, presidente da Juventus] apresentou o Michel [Platini] ‘está aqui o belo di giorno’ e depois apresentou-me ‘está aqui o bello di notte’. Disse isso só uma vez, a propósito das minhas exibições noturnas nas provas europeias, e nunca mais ninguém se esqueceu. Era um personagem, o Agnelli.
Porquê?
Eu fazia parte do grupo dos seis.
Seis quê?
O grupo dos jogadores a quem o Agnelli telefonava às seis da manhã.
Seis da manhã?
Com dúvidas e perguntas.
É a equipa do seu coração?
Baaah. Muitos vêem-me como romanista.
Ai sempre acabaste por jogar na Roma?
Depois de três anos na Juventus, joguei outros três anos na Roma. Com Ancelotti, Conti, Cerezo, Giannini, Pruzzo, Desideri. Lembro-me perfeitamente da reunião com um dirigente da Roma ao fim de dois anos e meio na Juve. Foi ali em Florença e levei a passear o Ferrari do Michel [Platini].
E os seus Mundiais?
O de 1982 foi espetacular. A Polónia acabou em terceiro lugar, como em 1974. Marquei três golos à Bélgica, na fase de grupos, e ninguém me tira da cabeça que aquele amarelo mostrado pelo Valentine [árbitro escocês] no jogo com a URSS foi encomendado para me tirar das meias-finais com a Itália. Eu queria ver um Itália-Polónia comigo em campo e sem o Rossi lá. Eu queria ver.
E o de 1986?
Bem diferente, para pior. Só ganhámos uma vez. Olha, curiosamente a Portugal, 1-0 do Smolarek. Depois, perdemos 3-0 com a Inglaterra, hat-trick do Lineker. E, uns dias mais tarde, fomos eliminados pelo Brasil nos oitavos [4-0].
Lembro-me claramente de um pontapé de bicicleta do Boniek fora da área nesse jogo.
Aaaaah, obrigado. A bola saiu ao lado. Esse lance é um pouco o desenho da participação da Polónia nesse Mundial-86.
É o Mundial do Maradona.
Em forma, com a cabeça desanuviada e descansado da vida, era o maior. Nem o víamos. Mas lá está, tenho de falar novamente da televisão. Maradona aparecia constantemente na televisão, Pelé não. Eu, pelo menos, só o vi umas 15 vezes. Mesmo assim, dizem que Pelé foi superior. Incrível.