Putin já tinha avisado e cumpriu. A partir de 1 de abril quem quiser comprar gás russo — e for de um país hostil — terá de abrir uma conta em rublos num banco russo. E é a partir dessas contas que os pagamentos terão de ser feitos para as entregas de gás. Na prática, os clientes terão de transferir fundos para bancos russos que serão usados para comprar rublos e liquidar o gás que querem adquirir.
“Se esses pagamentos não forem feitos, vamos considerar que houve um incumprimento (default) por parte dos compradores, com todas as consequências daí resultantes. Ninguém vende nada de graça e nós não vamos fazer caridade — isto quer dizer que os contratos existentes vão ser terminados” (se não seguirem a regra agora imposta), avisou Vladimir Putin numa comunicação televisiva.
A Ocidente a exigência russa está a ser vista como uma quebra contratual. O ministro alemão da Economia, Robert Habeck, afirmou que os aliados ocidentais estavam determinados a não se deixar chantagear pela Rússia. Apesar de ainda não ter visto o decreto de Putin, o responsável sublinhou que o país está preparado para todos os cenários, incluindo a interrupção das entregas. A França também fez saber que iria recusar a reivindicação russa.
Com uma dependência de 50% do gás russo, a Alemanha foi a primeira a dar o alerta com um plano de emergência para responder a eventuais cortes no abastecimento que prevê o racionamento do uso de gás por parte de grandes indústrias na maior economia europeia. A Grécia reuniu de emergência com os fornecedores e os Países Baixos apelaram aos consumidores para usarem menos gás.
Os nervos no mercado energético europeu acalmaram quando foi divulgado um telefonema feito por Vladmir Putin ao chanceler alemão, Olaf Scholz, na quarta-feira à noite, a assegurar que os clientes europeus do gás russo poderiam continuar a pagar em euros (como está estabelecido nos contratos) desde que fossem transferidos para o Gazprom Bank, um dos maiores bancos russos que ficou de fora das sanções internacionais por estar envolvido em transações de recursos energéticos. Putin também ligou ao primeiro-ministro italiano Mario Draghi a explicar o seu plano para o rublo. A Itália compra cerca de 30% do seu gás à Rússia.
Pagar gás russo em rublos. Ninguém sabe como será, mas já se teme pela segurança de abastecimento
Mas ainda há muitas dúvidas sobre as implicações desta exigência russa. Mais do que perturbar o business as usual das compras e vendas de gás, já de si muito afetado pela invasão da Ucrânia, este braço-de-ferro cambial pode resultar em falhas na entrega regular do gás russo, não sendo certo se a abertura de uma conta num banco russo não sancionado será uma condição aceitável para os clientes ocidentais.
Há igualmente o receio de que o pagamento em rublos possa ser estendido a compras de outras matérias-primas por parte de países ditos “inimigos”. Ao mesmo tempo, há a expectativa de que sejam impostas novas sanções por parte da União Europeia que, ao contrário dos Estados Unidos e do Reino Unido, não se pode dar ao luxo de deixar cair os fornecimentos made in Rússia de um dia para o outro.
O que pretende a Rússia?
O decreto assinado por Vladimir Putin estabelece um mecanismo para os compradores de gás natural transferirem moeda estrangeira (euros ou dólares) para uma conta especial num banco russo. E será esse banco a enviar rublos ao comprador estrangeiro para este pagar as quantidades contratadas. O presidente russo diz que esta mudança vai reforçar a soberania russa, ao mesmo tempo que garante o cumprimento das obrigações contratuais.
Um dos efeitos pretendidos já se tem vindo a fazer sentir. Desde a semana passada que o rublo está a valorizar face ao dólar, depois da moeda russa ter sido muito atingida pelas sanções internacionais. Ao “obrigar” os clientes de gás a comprar rublos, a Rússia trava a sangria cambial e tem acesso a divisas internacionais. Do ponto de vista dos aliados ocidentais, esse é precisamente o problema. Ao aceitarem esta exigência estão a minar os seus próprios esforços para penalizar a economia russa e empurrar o Kremlin a negociar e a ceder na Ucrânia. Por outro lado, não interessa à Rússia perder no imediato as receitas fundamentais das vendas à Europa que ainda é o principal cliente do seu gás.
Que condições estão fixadas nos contratos?
Quase todas as condições estão fixadas — desde as entidades que podem pagar e receber, passando pelos bancos correspondentes de cada uma delas e respetivas contas afetas à transação, assim como a moeda na qual devem ser feitos os pagamentos e que no caso dos fornecimentos à Europa é o euro. Estando tudo previamente definido a transação propriamente dita é efetuada através de uma transferência bancária entre contas com as correspondentes mensagens swift. Nestas operações de energia, é frequente encontrarmos como bancos intermediários grande instituições financeiras ocidentais como o JP Morgan, a Morgan Stanley ou BNP Paribas, só para citar alguns.
Se os contratos estão em euros, pode exigir-se rublos?
Não. Todos os juristas e responsáveis de empresas clientes concordam na leitura de que a exigência de pagamento em rublos implica uma quebra contratual por parte da Gazprom. O pagamento em rublos exigiria uma nova operação não contratualizada — cambial — e implicaria que os clientes abrissem contas em rublos nos bancos correspondentes, que é aliás o que Vladimir Putin diz que terão de fazer, mas num banco russo. No caso do vendedor não aceitar este pagamento e decidir interromper o fornecimento ou não enviar mais cargas, isso seria visto como um incumprimento contratual dando origem a um pedido de indemnização que seria dirimido na jurisdição indicada no contrato fosse pela na via judicial ou através de arbitragem.
Quando é pago o gás?
Há dois tipos de entregas e o pagamento é distinto consoante estamos a falar de um fluxo que chega via gasoduto ou uma carga de gás natural liquefeito (GNL) transportada por barco. No primeiro caso, o gás sob pressão é injetado na rede e é feita uma contagem das quantidades consumidas no final de um período temporal de uma semana ou de um mês e depois enviada a fatura. Para o GNL há vários tipos de contratos em função do momento do pagamento, se é pago na entrega (com transporte) ou na origem. Cada modelo tem a sua configuração em termos de liquidação, seguros e responsabilidade de cada parte. Tipicamente, o GNL paga-se após dez dias de entrega. Ao contrário do petróleo, que é um mercado muito mais de curto prazo e spot, um contrato de longo prazo no gás pode durar 15 anos.
A quem é pago o gás?
As empresas russas que vendem petróleo e gás — neste caso estamos a falar sobretudo do grupo estatal Gazprom — usam empresas subsidiárias em outros países pare receber os pagamentos. A Gazprom tem filiais em países como o Reino Unido, Suíça e Singapura que recebem dos seus clientes internacionais e só depois repatriam essas receitas (ou não) para a casa-mãe. No caso do gás que chega à Alemanha por gasoduto, a liquidação financeira é feita junto da Gazprom Marketing and Trading sediada no Reino Unido. Outra entidade que recebe pagamentos é o Gazprom Bank apontado por Vladimir Putin e que tem subsidiárias na Suíça e no Luxemburgo.
O que vão os clientes da Gazprom fazer?
Grande parte das empresas ocidentais estará decidida a cumprir os pagamentos na moeda contratual prevista, o euro. Daí que a Alemanha tenha ativado um plano de emergência para acudir a eventuais falhas de abastecimento por parte da Rússia, levando Vladimir Putin a disponibilizar uma terceira via que parece cumprir a exigência de rublos, mas sem obrigar os clientes ocidentais a contornar as regras do contrato. A resposta poderá também ser distinta consoante se trate de produto vindo por gasoduto ou GNL, com a expectativa no setor a apontar para mais perturbação nas entregas por barco do que através da rede. Mas nem todos os países se poderão dar ao luxo de dispensar o gás russo neste braço-de-ferro, sobretudo quando pode estar em causa mais do que impacto económico (já de si forte), mas sim o conforto da população. Há países a norte e a leste que dependem muito mais do gás russo e, se as temperaturas estiverem muito baixas, o gás para aquecimento é um bem de primeira necessidade.
Quais podem ser as consequências?
Tudo vai depender da resposta que a Rússia vai dar ao comportamento das empresas e países clientes que recusaram o decreto que impõe transações em rublos. Apesar do compromisso que Putin terá dado ao chanceler alemão, a posição pública assumida esta quinta-feira é de aparente intransigência…. Gazprom e o banco central russo ainda deverão apresentar um plano para concretizar o objetivo de migrar estes fornecimentos para rublos no qual estarão definidas as consequências para os clientes que não cumpram a diretiva do rublo. No pior cenário, haverá cortes no fornecimento cujo efeito vai variar em função de cada país ou região. Há quem esteja quase 100% dependente — balcãs, Moldova, Finlândia e bálticos. Noutros como a Alemanha já há planos que preveem racionamento que será sobretudo a clientes industriais, grandes consumidores de gás como por exemplo as elétricas. Estes cortes levarão à redução da produção industrial o que, dependendo da sua extensão e dimensão, pode comprometer a retoma. E, claro, vai aumentar a corrida ao gás natural liquefeito, já que é a única alternativa ao gás que chega por gasoduto com origem na Rússia.
Que impacto terá em Portugal?
Portugal praticamente deixou de comprar gás russo — e no passado este fornecedor sempre foi marginal. A Galp, que é a titular dos contratos de longo prazo de gás natural, tem vindo a diversificar os fornecedores desde o ano passado no quadro de um plano de contingência para responder à subida dos preços e falhas de alguns abastecimentos. Ainda que para já não existam problemas de aprovisionamento ao mercado nacional, Portugal não conseguirá escapar ao efeito destas turbulências no preço do gás. O facto de o país estar a receber mais GNL do que gás da Argélia, que interrompeu as entregas por um dos gasodutos no ano passado, ainda agrava mais a fatura já que o gás liquefeito que vem de barco é mais caro que o do gasoduto. A subida dos preços do gás tem-se verificado, com um expressivo efeito de contágio ao mercado elétrico. Por isso, Portugal e Espanha vão apresentar propostas à Comissão Europeia para limitar o preço do gás usado na geração elétrica.