(Artigo originalmente publicado em março de 2019)
“Mudou-se o 100 Maneiras para Lisboa e, em relação ao original, só não mudaram três coisas: a boa cozinha, o chefe que a elabora, o bósnio Ljubomir Stanisic, e o nome. […] Ljubomir Stanisic mostrou estar em grande forma e muito entusiasmado. O novo 100 Maneiras vai obrigá-lo a trabalhar muito e bem, o que não o intimida.”
Estas palavras foram escritas no dia 28 de fevereiro de 2009, há precisamente dez anos, e saíram da pena de David Lopes Ramos, um dos mais importantes e adorados críticos gastronómicos portugueses. Por essa altura, o cozinheiro bósnio mais popular do país e arredores estava longe de ter o destaque que hoje tem. Ainda a recuperar do desaire do primeiro e cascalense 100 Maneiras, que acabou por ir à falência, Ljubo ganhou uma segunda vida no Bairro Alto, bem no coração de Lisboa, e foi assim que “o 1oo” passou a morar no 35, número de porta na rua do Teixeira onde cresceu e triunfou ao longo dos últimos anos. David Lopes Ramos foi um dos primeiros críticos a visitar esse restaurante e os louvores que lhe deu ficaram para sempre marcados no coração do bósnio. “O Ljubo tem um carinho muito grande pelo David, ele foi dos primeiros a apoiá-lo depois da falência. Ele nunca mais se esqueceu disso”, conta Mónica Franco, a mulher do cozinheiro, ao Observador. “Quando ele ganhou o prémio David Lopes Ramos [em 2016, atribuído pela Revista de Vinhos]… Nunca o tinha visto tão emocionado”, continua.
Há quem duvide do poder das coincidências ou até do simples facto de existirem, contudo, de vez em quando há acontecimentos que abalam a convicção de qualquer um. As palavras trocadas com a companheira de Ljubomir deram-se à mesa, claro, num jantar especial no 100 Maneiras que agora mora debaixo de um teto novo, duas portas ao lado do mesmo número 35 que David Lopes Ramos elogiou na tal crítica. Uma década mais tarde, no mesmo dia e no mesmo mês, este novo espaço inaugura oficialmente. Foi esta quinta-feira que o renovado 100 Maneiras abriu portas e, não parecendo, foi totalmente por acaso que a data desta reabertura coincidiu com a crítica que mudou a vida de Ljubomir Stanisic.
“É engraçado que muitas das coisas que ele escreveu sobre o 100 nessa altura encaixam completamente neste de hoje”, afirma Mónica enquanto todos aguardamos que chegasse o primeiro momento do menu de degustação (mais sobre isto daqui a pouco). A sua afirmação comprova-se totalmente mas, para que não restem dúvidas, vale a pena perceber ao certo a história deste novo projeto.
Não havia energia suficiente para a visão de Ljubo
“Desde os primeiros tempos no 35 que o Ljubo se metia com o velhote aqui do lado, quando vinha à rua fumar um cigarro”, conta Mónica Franco. O antigo residente do número 39 da rua do Teixeira costumava ir à esplanada do seu restaurante esticar as pernas e fumar, também ele, e não tardou muito até que os dois começaram a conversar. “Aquele sítio sempre chamou à atenção e ele brincava com o senhor a dizer que um dia ainda ia ficar com o espaço. Sempre teve essa ideia na cabeça.”, continua. Durante vários anos a lenga-lenga esticou-se, Stanisic deixou sempre claro o seu interesse no edifício baixo, igualmente antigo, até que o proprietário da até então Adega do Teixeira acabou por lhe fazer a vontade.
O esqueleto dos dois restaurantes não era radicalmente diferente, mas ainda assim, os vários metros quadrados a mais que Ljubomir passou a deter rapidamente se tornaram potencial para ir mais além — “Esta cozinha continua a não ser muito grande, mas em comparação com a do 35… Acho que devia ser a cozinha mais pequena do mundo!” O entusiasmo da mudança rapidamente se instalou, começaram a ser feitos planos e mais planos mas tudo acabou por travar bruscamente e a ficar parado durante 4 anos. “Tudo isto atrasou-se de forma absurda… Estivemos parados quase quatro anos. Foi um esforço inacreditável, quanto mais não seja porque estivemos algum tempo com a equipa contratada para o novo 100 sem ainda termos tudo pronto para a pôr a trabalhar”, explica a ex-jornalista que é ao mesmo tempo mulher e assessora de imprensa do cozinheiro bósnio.
É bastante comum haver atrasos no processo de abertura de um restaurante. Seja por causa de obras ou licenças, há sempre imprevistos, contudo é totalmente fora do comum haver delays tão grandes. Quase impensável, até. O que justificou estes 48 meses extra? “Foi um filme”, começa Mónica por explicar. As obras foram extensíssimas, “foi tudo descascado” e reconstruído. Pormenores como o bloco de pedra maciço que serve de lavatório no WC ou a raiz de árvore que está suspensa logo à entrada do restaurante levaram o seu tempo, bem como as licenças da praxe (quando se trata de edifícios muito antigos, tudo fica ainda mais difícil) e os projetos paralelos do cozinheiro bem como o período de pesquisa gastronómica justificaram parte da demora. No entanto, houve uma coisa em específico que baralhou as contas de toda a gente.
Consegue imaginar aqueles aborrecidos momentos em que ligou ao mesmo tempo o aquecedor, a televisão, a máquina de lavar e o quadro geral foi ao ar? Sim, aqueles em que fica tudo às escuras. Isso acontece porque o quadro da eletricidade não aguenta com a quantidade de energia que precisa de fornecer e não é fenómeno exclusivo das casas dos comuns mortais: Os restaurantes não são exceção. “Houve um dia em que praticamente deitámos a luz abaixo do Bairro Alto todo. A instalação elétrica não só do restaurante como de toda a zona era demasiado fraca, não aguentava as coisas todas que queríamos pôr”, recorda Mónica. Este problema que em casa se pode resolver com alguma facilidade obrigou a suportar obras colossais, “rasgos no chão” que “fechara o Miradouro de São Pedro de Alcântara durante três meses”. Toda uma epopeia de adversidades que culminaram na casa que hoje recebe os primeiros clientes.
Ouvir Mandela enquanto se vai ao WC
Se por um lado o atraso foi um preocupante contratempo para a família 100 Maneiras, ele permitiu gastar (melhor, investir) algum tempo extra na pesquisa de novos sabores e influências. Durante vários meses, Ljubomir e parte da sua equipa comeram e beberam a Europa quase inteira, passando por sítios como a Sarajevo do chef, o País Basco (um dos seus sítios favoritos, a par de toda a França), países nórdicos… Jantares e almoços não faltaram, mas como a vida não pode ser só comer e beber também foram visitados vários fornecedores, lojas e artesãos que, alguns deles, acabaram por vir parar ao novo 100 Maneiras. Muitas das loiças, por exemplo, vieram do norte da Europa e, só poucos dias antes dos primeiros jantares de teste é que foram escolhidas — “No final tínhamos tanta coisa que não cabia aqui dentro. Tivemos de escolher só aquilo que íamos mesmo usar e o resto teve de ser guardado na nossa cozinha de produção [espaço central, que fica na zona de São Bento, onde são tratados os ingredientes em bruto, por exemplo, antes de seguirem para os restaurantes. Peixes inteiros desmanchados em porções, vegetais limpos e cortados, carne pesada e embalada,…]”, explica Mónica.
Se se levou tão a sério só o simples facto de escolher a loiça não seria de estranhar que o pormenor domine toda este novo 100 Maneiras. Da antiga Adega do Teixeira sobrou apenas o muro e o portão de entrada, tudo o resto foi profundamente alterado, daí ter sido mais fácil aplicar todos os infinitos detalhes que vai poder encontrar, como a caveira de gado caprino, trabalhada, que o próprio Ljubomir montou, as peças em loiça com a forma de cabeças de porco, que se encontram no centro de algumas mesas, ou na curiosa surpresa que mora na casa de banho — em loop circulam gravações históricas como discursos de Tito, o ex-líder da Jugoslávia, de Nelson Mandela ou até a conversa entre os astronautas da missão Apollo 11.
Antes de chegarmos à comida propriamente dita, é importante “pintar o quadro” daquilo que o Observador conheceu e que vai poder encontrar quando aqui vier comer. Para começar, atravesse a zona envidraçada onde começa este 100 Maneiras. A construção estica-se para a frente havendo primeiro uma zona de bar, com uns poucos lugares sentados, onde poderá provar os já famosos cocktails da casa. Isto do lado esquerdo, à direita começa a cozinha (há uma zona aberta, primeiro) ultra-moderna que se estende a todo o comprimento do restaurante. Segue-se por um corredor curto, ladeado por uma escadaria que desce para o WC e a garrafeira, e desagua na sala de jantar, também esta “dividida” em dois: primeiro uma mesa comunitária enorme e depois, mais para o fundo, uma secção de mesas mais pequenas. Tudo isto floresce num ambiente soturno, algures entre o misterioso e o sexy, onde predominam cores escuras intercaladas por elementos mais naturais como apontamentos em metal, madeira crua ou mármore. Se a imagética só por si e bastante rock n’roll, o que dizer da comida.
Dr. Bayard com foie gras: Porque não?
Tudo o que tem lido ate agora foi testemunhado in loco num jantar pré-abertura, como já foi dito. Foi neste contexto que deu para perceber toda a história e conceitos por trás desta mudança mas, tratando-se do 100 Maneiras, há sempre mais uma carta na manga: Esta não era uma refeição normal já que Ljubo fez questão de pôr sentadas à mesa todas as suas chefias, do pessoal de sala à de cozinha, “para verem como são importantes e como tudo fica mais difícil sem vocês”, revelou o próprio num dos poucos momentos em que conseguiu estar na sala de refeições por mais de cinco minutos. “Eu era para estar a servir à mesa hoje!”, tinha atirado logo Mónica pouco depois de nos termos sentado pela primeira vez. Esta informação não seria de grande relevância se não se tivesse seguido aquilo que foi possível testemunhar ao longo das quase quatro horas em que se provou o menu de degustação “A História” (110€ sem bebidas), o mais completo que aqui se servirá.
Lembra-se do programa de TV “Pesadelo na Cozinha” e da forma como Ljubomir regularmente corrigia e incentivava os participantes? Pois bem, apesar de ser para lá de redutor associar este cozinheiro a esse programa, a verdade é que ao vê-lo corrigir coisas como a forma como um prato era servido — “o bico da tigela [era um recipiente em forma de gota] tem de ficar para a direita para conseguimos servir o caldo”, atirou Stanisic a um do staff de sala que estava a servir — ou a ordem com que os pratos era colocados a frente dos clientes — “pões primeiro à frente de quem está sentado, nunca o contrário” — trouxe reminiscências dessa aventura televisiva. Notava-se o profissionalismo e seriedade do cozinheiro em pormenores como estes ou na simples forma como olhava para o que estava a acontecer à sua volta, quase que em transe, sempre a ver o que podia melhorar ou precisava de ser corrigido.
Ora a “história” que Ljubomir conta através dos 17 pratos que vai poder provar é quase que uma auto-biografia da sua vida. Começa com a “capa”, como qualquer bom livro, que é como se fosse um couvert composto por pequenos petiscos de nome quase impronunciável como ajvar (pasta de pimento e especiarias), queijo kajmak, stelja (fumeiro típico), uma manteiga com sabores de bivalve e a pasteta. Com exceção da tal manteiga, tudo o resto são produtos típicos dos Balcãs, memórias vivas do passado de Ljubomir Stanisic com histórias para contar. A pasteta, por exemplo, é uma espécie de patê de miudezas que nos tempos da guerra a que o chef assistiu era servido pelos missionários da Cruz Vermelha — “Era o favorito do Ljubo, ele pedia sempre para trocar outros alimentos que lhe davam só por isso”, contou Nélson Amaro, um dos responsáveis de sala do restaurante. Tudo isto acompanhado por dois pães, também eles de valor sentimental: a influência portuguesa sob a forma de broa de milho e o “pão Rosa”, receita da mãe de Ljubo que tem tanto de saborosa como de viciante.
Depois deste ponto de partida segue-se uma verdadeira maratona de criatividade, irreverência e sabor que ganham forma em pratos como a “Lampreia à Minhota” (uma bolacha de arroz de lampreia com o mesmo animal servido em tiras finas com sabor a fumo), a “Salada Mista” (mistura de anchovas com trufa preta e parmesão), o hiper-guloso lingueirão com lardo e manjericão, as línguas de bacalhau com espuma de ameijoas e nozes macadâmia ou o surpreendente “Foie pa’tosse”, uma combinação de foie gras, gelatina de vinho colheita tardia “Mais Vale Tarde do Que Nunca” (parceria do chef com a Real Companhia Velha), iogurte, ras el hanout ,o tempero favorito de Ljubo e, prepare-se, rebuçado Dr. Bayard. O icónico doce/remédio português é transformado numa espécie de telha que dá um elemento de frescura a esta pré-sobremesa.
As memórias do fogo e o talismã
No meio de tanta comida há sempre composições que se destacam mais que outras e nesse aspeto este 100 Maneiras não é diferente. A carta é toda feita com base em memórias e trocadilhos irreverentes e esses acabam por ser alguns do segredos de algumas estrelas instantâneas como o prato de salmonete com “chá” de presunto (“é o LjuboLipton”, atirou Stanisic quando o serviu), por exemplo, em que Ljubo faz um caldo com ossos de presunto cedidos “pelo meu amigo Pedro, do Solar dos Presuntos” (como o próprio afirma), e aparas do dito fumeiro, que fica a infusionar por uns instantes, antes de ser vertido sobre o brilhante filete de salmonete. Outra vitória imediata é a cabeça de vaca que o pai de Ljubomir costumava fazer e que vem desfiada num pequeno tacho, acompanhada de tutano, rábano e pão sonum, uma espécie de panqueca que faz com que tudo isto faça lembrar o pato à Pequim chinês — o objetivo é cada comensal fazer a sua própria “sanduíche” com os toppings que são servidos. Também não dá para ignorar uma das sobremesas, “A fumo e fogo”, que juntam um gelado de feno queimado com linhaça e leite de amêndoa e foi inspirada no episódio em que Ljubo viu o seu carro a ser completamente queimado num grande fogo que houve na zona do Douro e “consumiu um estábulo de cavalos onde levávamos os clientes do Six Senses [Douro Valley, hotel onde o chef também tem um restaurante]”. Finalmente, o último prato é a pedra de toque (literalmente) que prova a qualidade superior do que aqui se faz: dentro de uma espécie de ovo de Fabergé em forma de globo vem uma pedra com alho fermentado, azeitonas, chocolate branco e maracujá. “Esta é a pedra vai-te foder. Não é para gostares, é para te fazer pensar, para te tirar da zona de conforto”, contou o chef ao Observador. Prove 100 medos e divirta-se.
“Foi no 35 que nos conhecemos, eu e o Ljubo”, conta Mónica já durante os cafés. O espaço pequeno onde antes já tinham morado restaurantes como o primeiro Olivier ou, ainda antes disso, o Porta Branca, foi um ponto de viragem na vida pessoal e profissional de Ljubomir Stanisic, o espaço que o permitiu reerguer-se após a falência e chegar aonde está hoje. “Jantámos lá os dois no domingo passado, o último dia de funcionamento. O Ljubo está totalmente focado neste novo projeto mas não consegue abdicar do 35…”, continua a mulher do chef.
Ainda não se sabe ao certo o que o futuro reserva a essa casa agora desativada, mas duas coisas são certas: Ljubo não a vai largar e, no futuro, ela poderá vira a ganhar uma vida nova, seja como restaurante de fine dining vegetariano, bar de cocktails ou cave de comida tradicional portuguesa. Ainda está tudo em aberto, mas algo acontecerá. Por enquanto todos os olhos e atenções estão neste novo filho que promete vir a fazer sucesso.
100 Maneiras
Rua do Teixeira, 39, Lisboa (Bairro Alto)
Das 19h às 2h (não fecha, última mesa senta-se às 22h30)
110€ por pessoa (sem vinhos)