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A canábis pode ser usada para tratar alguns sintomas da esclerose múltipla e retardar o avanço da doença
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A canábis pode ser usada para tratar alguns sintomas da esclerose múltipla e retardar o avanço da doença

MUJAHID SAFODIEN/AFP/Getty Images

A canábis pode ser usada para tratar alguns sintomas da esclerose múltipla e retardar o avanço da doença

MUJAHID SAFODIEN/AFP/Getty Images

Canábis: legalizar a planta ou os medicamentos com base nela?

O BE e o PAN defendem a legalização da canábis e produtos associados para fins medicinais, mas cientistas e médicos dizem que só os medicamentos deveriam ser aprovados e só depois de testados.

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A canábis é a substância ilícita mais cultivada, consumida e traficada em todo o mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde. Mas a canábis também é uma planta com um enorme potencial terapêutico. As aplicações medicinais são conhecidas desde há séculos, embora muitos dos seus benefícios careçam ainda de comprovação científica, como frisou o investigador Attila Köfalvi. Legalizar a utilização desta planta para fins medicinais vai permitir não só a entrada dos produtos derivados da canábis no mercado nacional, como também reduzir a estigmatização associada ao seu consumo medicinal, defendeu Moisés Ferreira, deputado do Bloco de Esquerda.

Esta quinta-feira serão votados no Parlamento dois projetos de lei e um projeto de resolução relacionados com a utilização de Cannabis sativa (uma das espécies de canábis) para fins medicinais.

O que vai ser votado em relação ao uso de canábis?

O Bloco de Esquerda e o PAN apresentaram dois projetos de lei independentes (aqui e aqui), mas que incidem sobre os mesmos aspetos-chave: a planta ou os seus derivados devem ser prescritos por uma receita médica e aviados numa farmácia; e esta receita deve conter o modo de administração, a quantidade e posologia. Ambos os partidos defendem também que o doente possa cultivar a planta para consumo próprio.

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“O projeto de lei prevê que o processo [de legalização, entrada no mercado e venda] seja regulamentado pelo Infarmed à semelhança do que acontece com qualquer outro medicamento”, disse Moisés Ferreira. Da mesma forma, o deputado do BE esclareceu que a “a solução para autocultivo também deve ser regulamentada”. Ainda assim, Moisés Ferreira acredita que a “larga maioria das pessoas vai recorrer à dispensa da farmácia” porque cultivar as plantas é exigente e leva alguns meses até que possa ser aproveitada.

A regulamentação implica fiscalização e o PAN propõe coimas para quem não cumpra a lei, que podem ir de 50 a 50 mil euros.

Tendo em conta o crescente interesse da comunidade científica no uso terapêutico da canábis, mas não esquecendo os efeitos nefastos que o consumo pode ter no organismo, o Partido Comunista Português apresentou um projeto de resolução (aqui) para que o Governo analise a utilização da substância para fins terapêuticos e previna o uso recreativo.

“O PCP advoga que a utilização de canábis para fins terapêuticos deve ser apreciada especificamente em função desse objetivo, não se deve confundir a discussão da legalização da canábis para fins unicamente recreativos”, escreveu o Grupo Parlamentar do PCP. “Por fim, mas não menos importante, o uso da canábis para fins terapêuticos é uma questão essencialmente técnica e científica e não uma questão essencialmente política.”

Attila Köfalvi, investigador no Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra, concorda: “O assunto não foi discutido com as pessoas que conhecem a área [na qual se inclui]. Foi uma decisão política e não científica”.

"O uso da canábis para fins terapêuticos é uma questão essencialmente técnica e científica e não uma questão essencialmente política.”
Grupo Parlamentar do PCP

Como vão votar os partidos em relação a estas propostas?

Bloco de Esquerda e PAN apresentam as principais propostas, essencialmente semelhantes, e que visam a legalização o consumo de canábis para fins medicinais. Ambos se mostram disponíveis a fazer baixar os projetos à especialidade sem votação no plenário, conforme noticiou o Público.

Já o projeto de resolução do PCP recomenda ao Governo que analise o que é conhecido sobre as propriedades medicinais da canábis, que se faça mais investigação científica sobre o assunto e que se reforce a prevenção da toxicodependência. O PCP não divulgou a posição de voto em relação aos projetos de lei apresentados pelos outros dois partidos.

O Partido Socialista não vai avançar com nenhuma proposta e dará liberdade de voto aos seus deputados. “Não vamos ter uma iniciativa própria, mas haverá liberdade de voto. Parece-me que vai haver abertura e capacidade para podermos aprovar os projetos na generalidade e depois na fase da especialidade podermos dar contributos para a sua melhoria”, disse a deputada socialista Maria Antónia Almeida Santos, citada pelo Público.

Pelo contrário, o CDS mostrou-se contra as iniciativas e votará negativamente em relação às propostas apresentadas. “Não vemos qualquer premência social nesta decisão e não há evidência de qualquer mais-valia cientifica e clínica no uso da canábis. Temos alternativas que não têm os problemas da canábis e, esses sim, têm evidência cientifica. Não entendemos o cultivo sem regras de fiscalização e não cremos que seja uma prioridade”, disse Isabel Galriça Neto, citada pelo Público.

O PSD também declarou votar contra os projetos de lei do BE e do PAN, conforme disse o deputado social-democrata Miguel Santos à Lusa. O partido assume, no entanto, votar favoravelmente o projeto de resolução do PCP para que o Governo avalie o impacto da utilização terapêutica do canábis.

É possível consumir canábis medicinal em Portugal?

De certa forma a resposta é: sim. O Infarmed (Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde) aprovou em 2012 o medicamento Sativex, uma solução para pulverização bucal, do laboratório GW Pharmaceuticals. Segundo Moisés Ferreira, o medicamento está aprovado, mas não é vendido, porque a utilização da planta não é legal e isso cria um estigma associado ao consumo de canabinóides. “A proposta de lei pretende clarificar que a canábis é legal e que os médicos a podem prescrever”, disse.

O medicamento Sativex é composto por delta-9-tetrahidrocanabinol — tetrahidrocanabinol ou THC é a substância psicoativa mais importante no uso recreativo da canábis — e canabidiol ou CBD, a molécula com mais interesse para os fins medicinais. Quando presentes em quantidades equivalentes, como acontece neste medicamento, o canabidiol inibe os efeitos psicotrópicos do THC.

A utilização deste spray pretende melhorar os sintomas de rigidez muscular associados à esclerose múltipla. Mas a bula ressalva que não deve ser usado quando o doente ou um dos seus familiares diretos “tem problemas de saúde mental como, por exemplo, esquizofrenia, psicose ou outra perturbação psiquiátrica importante”.

Médicos e cientistas admitem a utilização de canábis sob a forma de medicamento, mas não da forma fumada

RAUL ARBOLEDA/AFP/Getty Images

Legalizar o consumo de canábis com fins medicinais pode abrir as portas ao consumo recreativo?

Essa é uma das principais preocupações do Partido Comunista: “O PCP advoga que a possibilidade de eventual regulação do uso terapêutico de canábis não seja utilizado para legitimar o seu uso recreativo”. Mas o Bloco de Esquerda defendeu que a regulamentação e as penalizações podem evitar que isso aconteça. Moisés Ferreira acredita que as pessoas autorizadas a consumir ou produzir canábis não vão dispensar um medicamento que necessitam a pessoas que queiram usá-lo de forma recreativa.

“Haverá muitas pessoas que querem aproveitar a legalização da canábis para fins medicinais, para a usarem com fins recreativos”, disse Attila Köfalvi, responsável pelo Laboratório de Neuromodelação e Metabolismo. “Legalizar é colocar a carroça à frente dos bois: primeiro legalizamos e depois é que fazemos os testes.” O investigador lembrou que é preciso fazer mais investigação.

A especialista em Biologia da Adição, Teresa Summavielle, coloca uma questão diferente: “Porque é que tem de ser legalizado?”. Se a ideia é que seja usado para fins medicinais, as substâncias têm de ser sujeitas aos mesmos testes de laboratório, aos mesmos ensaios pré-clínicos e clínicos e à mesma regulamentação que todos os outros medicamentos, defendeu a investigadora do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, da Universidade do Porto. E os restantes medicamentos não têm de ser legalizados nem votados no Parlamento.

E se os doentes tiverem a sua própria plantação, que quantidade estarão a consumir? Esta é uma das preocupações do investigador da Universidade de Coimbra, isto porque cada planta pode ter concentrações diferentes das moléculas e mesmo duas folhas da mesma planta podem não ter a mesma concentração. “Se o doente ficar melhor é bom, mas e se ficar pior?”

Qual a posição da Ordem dos Médicos?

O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, solicitou um parecer ao Conselho Nacional da Política do Medicamento da Ordem sobre a utilização da canábis para fins medicinais. O parecer admite que, perante a evidência científica atual, é possível considerar a utilização de canábis em casos específicos, como no alívio da dor crónica em adultos, como anti-vómito no tratamento do cancro, no tratamento da esclerose múltipla ou no controlo da ansiedade. No entanto, a utilização deverá ser feita exclusivamente como medicamento e não na forma fumada.

Embora admitindo a utilização de canábis, a Ordem dos Médicos referiu que a aprovação e regulamentação devem passar pela autoridade nacional e europeia do medicamento e que a prescrição deverá ser sempre feita por um médico devido à sua potencial toxicidade. A Ordem dos Médicos mostrou-se disponível para que a canábis fosse usada como medicamento nas situações em que há evidência científica, mas lembrou que “nenhum país europeu autoriza atualmente a canábis fumada para fins médicos”.

“Considera-se que neste momento, a avançar, será como medicamento e não como erva para ser fumada”, afirmou Miguel Guimarães à Lusa. O bastonário afirmou ainda que “seria um risco” avançar para a aprovação da canábis fumada “porque não está suficientemente estudada em termos científicos”.

A Ordem dos Farmacêuticos disse ao Observador não ter ainda uma posição pública sobre o assunto, porque não foi chamada a pronunciar-se ou a emitir parecer sobre o projeto de lei. “Aguardamos o resultado do debate parlamentar e estaremos, como sempre, disponíveis para dar suporte técnico e científico à implementação de medidas no âmbito da política de saúde e do medicamento em especial.”

"A legalização deve focar-se nas moléculas e não na planta.”
Attila Köfalvi, Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra

Que usos podem ser dados à canábis, aos seus derivados ou às moléculas canabinóides?

Para Attila Köfalvi, o mais importante, nas propostas de legislação, é que se distinga a planta dos seus produtos, como os óleos e pílulas. A canábis tem pelo menos 66 moléculas bioativas, entre as quais o tetrahidrocanabinol (THC), a molécula psicoativa (que atua diretamente no sistema nervoso central), ou o canabidol (CBD), a molécula com mais interesse medicinal. “Não é viável usar a planta da canábis. A legalização deve focar-se nas moléculas e não na planta.”

A planta selvagem de Cannabis sativa tem concentrações equilibradas de THC e CBD, permitindo que o canabidiol funcione como um neuroprotetor. Mas têm sido selecionadas variedades da planta com uma concentração maior de THC para serem usadas com fins recreativos.

Quando a planta tem mais de 0,3% de THC por peso seco, chama-se marijuana e é uma droga recreativa, explicou Attila Köfalvi. Se a concentração estiver abaixo de 0,2% de peso seco, chama-se canhâmo industrial e pode ser usada para a produção de fibras e as suas sementes na alimentação.

Em relação aos fins terapêuticos, estes têm sido descritos desde há séculos, mas os ensaios clínicos para demonstrar a eficácia da canábis para tratar várias doenças tem falhado, disse Attila Köfalvi. Para o investigador não quer dizer que esses benefícios não existam, apenas que ainda não foi possível demonstrá-lo cientificamente. As falhas podem estar relacionadas com a dosagem ou forma de administração, por exemplo.

Demonstrada está a eficácia no tratamento dos espasmos musculares associados à esclerose múltipla e da dor crónica associada ao cancro. Também já existem alguns resultados positivos na prevenção de convulsões devido a epilepsia. Outros usos potenciais para a canábis são: diminuição da náusea e vómitos associados à quimioterapia, estimulação do apetite e redução da pressão ocular. A canábis pode ser usada no tratamento dos sintomas, mas não é conhecida como cura para nenhuma doença.

Que efeitos nefastos pode ter a utilização de canábis?

A utilização de canábis com fins recreativos é sobretudo prejudicial para adolescentes e jovens adultos porque o THC afeta o desenvolvimento cerebral, provocando psicoses e sintomas semelhantes à esquizofrenia. Mas, mesmo para adultos, o consumo de canábis pode implicar uma diminuição do desempenho motor e da capacidade de realizar tarefas, como conduzir. A inalação dos fumos da canábis também pode provocar danos nas vias respiratórias, inflamação dos pulmões e fraca resistência a infeções.

O cérebro encontra-se em desenvolvimento até aos 25-26 anos nas mulheres e 28-29 anos nos homens, mas a fase mais crítica do desenvolvimento ocorre entre os 14 e os 21 anos, disse Teresa Summavielle. Nesta fase, há uma reformatação das ligações entre os neurónios, algumas das ligações são quebradas para depois voltarem a ser feitas. “O consumo continuado de canábis, limita a formação correta destas novas ligações”, alertou a investigadora. Este consumo, sobretudo o consumo associado às plantas modificadas, justifica o aumento da admissão de adolescentes nas urgências psiquiátricas com sinais de psicoses e sintomas semelhantes à esquizofrenia.

O uso de canábis ou substâncias canabinóides poderá ter efeitos secundários também nos doentes com esclerose múltipla ou cancro, mas os benefícios compensam largamente os riscos. Além disso, os efeitos negativos da doença principal são muito piores que os da utilização destes medicamentos.

A canábis pode ser vendida sob várias formas, como folhas ou flores desidratadas, pó, óleos ou sementes

AFP/Getty Images

Em que países a utilização de canábis com fins medicinais é legal?

No projeto de lei, o Bloco de Esquerda apresenta os países europeus onde já foi aprovada a legalização da canábis:

  • Holanda, com prescrição e dispensa nas farmácias desde 2003;
  • Itália, com prescrição por médico e a dispensa em farmácias desde 2013;
  • República Checa, onde é legal a aquisição de canábis num local licenciado para o efeito ou a importação da planta desidratada ou de preparações de canábis por parte de quem tenha uma prescrição médica válida;
  • Dinamarca, que tem um programa experimental de quatro anos para a prescrição e tratamento com canábis;
  • Alemanha, onde os médicos podem prescrever extratos de canábis e onde começam a ser autorizadas as primeiras plantações individuais.

Fora da Europa também existem alguns países que já legalizaram o consumo da planta com estes fins, como por exemplo o Canadá, que desde 1999 permite o uso da planta desidratada para fins medicinais. Dois anos depois foi permitido o autocultivo. E, desde 2015, que o acesso à canábis para fins medicinais se estendeu a substâncias e preparações, como óleos e resina, para além da planta desidratada. Outros países incluem Israel, Argentina, México, Perú e Colômbia.

Existe produção de canábis para fins medicinais em Portugal?

Sim, há três plantações de canábis autorizadas pelo Infarmed. A existência destas plantações incentivam o Bloco de Esquerda a apresentar a sua proposta. “Há dois pesos e duas medidas: o Estado admite que a planta pode ser usada para fins medicinais — por isso autoriza a sua produção —, mas não a disponibiliza aos portugueses”, disse Moisés Ferreira.

A primeira plantação, aprovada em 2014, tem cerca de nove hectares e é da responsabilidade da Terra Verde, uma firma da qual é sócia a GW Pharmaceuticals (a mesma que produz o Sativex). Prevê-se uma produção de 21 toneladas por ano que serão exportadas para o Reino Unido. Na altura da autorização o Infarmed referiu que a autorização se destinava à realização de um “projeto de investimento que consiste na plantação de Cannabis sativa e a sua transformação em pó que será exportado 100% para o Reino Unido e utilizado para a produção de medicamentos a utilizar no alívio da dor derivada da doença oncológica, na esclerose múltipla e na epilepsia”.

As outras duas plantações foram aprovadas em 2017. Uma delas, da responsabilidade da empresa canadiana Tilray, já está em funcionamento em Cantanhede. Prevê-se que a exploração produza 62 toneladas por anos que serão exportadas para a Alemanha, Croácia e Chipre. A empresa vai investir 20 milhões de euros até 2020 e criar 100 postos de trabalho, transformando Portugal no maior produtor europeu de canábis com fins medicinais. A Tilray prevê ainda a construção de uma unidade industrial de transformação da canábis.

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