Estão sentados no chão, na terra revolvida de um caminho estreito, rasgado por máquinas, em plena floresta laurissilva, no Paúl da Serra. Nas mãos, têm couvetes de alumínio com arroz e bifanas, que chegaram, minutos antes, em paletes carregadas por dois colegas que as foram buscar — dois quilómetros a pé, sempre a subir até ao topo da colina, o único ponto onde chegava um carro para dar apoio à equipa, acampada no meio da floresta.
É hora de almoço, depois de muitos dias sem hora marcada para coisa nenhuma, a não ser travar o fogo que consumiu a Madeira durante uma semana, em 2012. Uma semana sem descanso que terminava ali, naquela refeição, com as chamas que ameaçaram aquele património natural já extintas e o rescaldo assegurado. Tinham passado a noite anterior a escalar o monte, para chegar onde nenhum carro de bombeiros conseguia. Dormiram o possível numa gruta com os colegas do Grupo de Intervenção, Proteção e Socorro, da GNR, com quem fizeram equipa. Travaram o fogo sem água. Agora só faltava voltar a descer a vereda da Terra Chã, pelo meio do mato, até à base do monte, e voltar para Lisboa.
Foi uma das missões mais marcantes da Força Especial de Bombeiros. “Uma excelente missão”, diz ao Observador um dos elementos que fez parte daquela equipa, mesmo que tenha sido “um trabalho muito intenso, com pouco descanso”, sem tempo para parar entre pedidos de apoio em zonas diferentes da ilha. Até porque, garante, é sempre assim. Tanto que é difícil eleger uma só situação como a mais difícil, a mais cansativa ou a mais perigosa.
“Per Angusta ad Augusta” – do desafio ao triunfo
A Força Especial de Bombeiros Canarinhos (FEB) foi criada em 2007, na sequência de uma reforma da estrutura de combate a incêndios florestais, “com duas companhias situadas nos distritos de Beja, Castelo Branco, Évora, Guarda, Portalegre, Santarém e Setúbal”, como se lê no despacho assinado pelo, então, secretário de Estado da Proteção Civil, Ascenso Simões. Juntava-se ainda uma unidade, sediada em Lisboa, com 15 elementos, na dependência do presidente da Autoridade Nacional de Proteção Civil.
Dois anos depois, a FEB foi reorganizada, passando a ter três companhias, mas a mesma missão: “Responder, com elevado grau de prontidão, às solicitações de emergência de proteção e socorro, a ações de prevenção e combate em cenários de incêndios, acidentes graves e catástrofes”, dentro ou fora do país, e dar “formação especializada”, por exemplo, a forças congéneres, como aconteceu em São Tomé e Príncipe, em 2008, em Moçambique, um ano depois, ou na Guiné Bissau, em 2011. Com o lema “per angusta ad augusta” (expressão latina que significa “do desafio ao triunfo”), inscrito nos símbolos que os representam, descrevem-se a eles próprios como corajosos, abnegados e com o sentido de dever acima de todas as coisas.
Hoje são cerca de 250 operacionais, recrutados dentro dos corpos de bombeiros mistos e voluntários e espalhados pelo país, com competências que vão dos resgates em montanha, aos salvamentos subaquáticos e ao apoio humanitário em situações de catástrofe natural. São, ainda assim, mais conhecidos por uma característica distintiva (ainda que não exclusiva): apagam incêndios sem água. Os “canarinhos”, como são chamados, atuam, sobretudo, em locais mais isolados (para onde são levados de helicóptero, se possível ou onde chegam a pé) e de forma muito musculada, quase sempre apenas com instrumentos manuais, em trabalho sapador. O rescaldo, por exemplo, é feito com enxadas, pás, ancinhos e moto-serras, usados para cortar a vegetação, numa faixa de terreno aberta à volta da zona ardida — caso o vento faça reacender as chamas, o fogo não passa para fora desse “cordão”.
A missão no Chile e a dívida de gratidão
A bandeira nas mãos de Marcelo Rebelo de Sousa (que se vê na foto) está assinada pelos 52 elementos da Força Especial de Bombeiros que integraram a equipa destacada para o Chile, em janeiro do ano passado. O país sul-americano debatia-se com incêndios de grandes proporções (os piores da sua história), combatidos por milhares de operacionais, e tinha pedido ajuda internacional. 12 horas depois, Portugal respondia com uma equipa de Canarinhos, numa missão apelidada, de imediato, de “emocional”. O secretário de Estado da Administração Interna da altura explicava que era “um resposta de solidariedade, reconhecimento e gratidão para com o Chile”, numa alusão aos 5 bombeiros chilenos que morreram quando apoiavam os portugueses no combate a um incêndio na Guarda, em 2006. “Se outro país amigo de Portugal o pedir, também responderemos da mesma forma, mas com o Chile há alguma emoção”, dizia Jorge Gomes.
A FEB esteve no terreno durante duas semanas, num trabalho descrito como “muito cansativo, sobretudo, por causa das grandes distâncias percorridas quase sempre a pé”. Em Maule, na província de Talca, onde foi registado o maior incêndio, começaram a trabalhar quase de imediato, um dia depois de terem chegado, integrados em equipas chilenas, que os levavam para os locais onde eram precisos. Uma operação facilitada pelas semelhanças entre as forças dos dois países, nomeadamente no uso do mesmo material sapador. A tarefa não foi fácil: tinham como função a abertura de faixas de contenção, no combate indireto ao fogo, e faixas de segurança, para rescaldo. No total, terão rasgado mais de 20 quilómetros de terreno, nas zonas de incêndio. Fizeram-no com todo o material às costas, debaixo de temperaturas muito altas e taxas de humidade do ar a que um português não está habituado.
Nos fogos que mataram 11 pessoas e destruíram quase mil casas, em sete regiões do país, o Chile teve também ajuda portuguesa no comando. Enviado pelo Mecanismo de Proteção Civil da União Europeia, um elemento das Equipas de Análise e Uso de Fogo, da FEB, teve como função ajudar as autoridades chilenas a avaliar o comportamento do incêndio e definir melhor uma estratégia de combate. Essa é, aliás, uma das características mais sublinhadas por quem conhece bem o trabalho da FEB: o conhecimento profundo do comportamento do fogo e uma visão integrada de como o controlar e extinguir. Nessas estratégias, pode estar incluído, por exemplo, o uso de fogo tático — conhecido como contra fogo, uma medida de aplicação delicada, usada para travar o avanço das chamas em determinados locais.
No regresso, além de terem sido recebidos pelo Presidente da República, no Palácio de Belém, os Canarinhos foram também homenageados pelo Governo, no dia da Proteção Civil.
Missão no Haiti
A presença no Haiti, em 2010, também faz parte da história mais marcante da Força Especial de Bombeiros. A 12 de janeiro daquele ano, um abalo de magnitude 7,0 na escala de Richter fez mais de 200 mil mortos e um número indeterminado (e gigantesco) de feridos. Como parte da ajuda internacional que começou a ser enviada para o país, os elementos da FEB foram integrados numa missão portuguesa que juntava elementos do INEM, do Instituto de Medicina Legal e da Assistência Médica Internacional (AMI), com a missão de montarem um acampamento com capacidade de resposta médica para os desalojados. No total, foram mais de um milhão as pessoas que ficaram sem casa.
O acampamento foi montado em Delmas, nos arredores de Port-au-Prince, em duas semanas. 65 tendas receberam mais de 600 pessoas (entre as quais, 20 crianças), numa estrutura que incluía dois depósitos de água potável, redes elétricas e de saneamento, um posto de assistência médica e um infantário. Além desse apoio direto, foi dada ajuda indireta a cerca de mil outras pessoas, sobretudo em termos médicos e logísticos, no exterior do acampamento.
A viagem, ainda assim, não foi imune à polémica — a Associação de Proteção Civil criticou a escolha da FEB para avançar para o terreno. Defendeu que era uma “missão de fachada” porque os canarinhos não estavam “equipados ou preparados” para intervir em situações de catástrofe e que teria sido melhor enviar o Grupo de Intervenção, Proteção e Socorro, da GNR, que tem valências semelhantes às da FEB. A crítica foi muito mal recebida pela Autoridade Nacional de Proteção Civil, que saiu em defesa da FEB e assegurou a experiência e o profissionalismo de todos os envolvidos na operação. Todos receberam um louvor da Comissão Nacional de Proteção Civil, no regresso, pela “forma extraordinariamente competente de atuação de cada um dos integrantes da equipa”.
50 elementos oferecidos para ajudar a Grécia
A decisão do Governo português, de disponibilizar 50 elementos da FEB para a Grécia, responde ao pedido de ajuda internacional feito pelas autoridades gregas, depois do crescimento descontrolado dos incêndios no país que, a meio desta terça-feira, já tinham feito mais de 70 mortos. A força exata que virá a ser enviada ainda não está totalmente definida, mas, à partida, será um módulo terrestre, composto apenas por meios humanos, sem veículos de transporte ou apoio. Só quando a Grécia responder ao pedido português, e se o aceitar, será possível fazer o desenho final da equipa e pô-la a caminho, provavelmente a bordo de um C-130 (o que também ainda não está definido).
No terreno, os Canarinhos terão duas missões: juntar mãos especializadas no combate em locais mais isolados, mas também render os operacionais que estão no terreno, sem parar, desde que os fogos começaram, e que estarão, naturalmente, exaustos. Foi isso que também foi feito na Madeira, em 2012, pela equipa que voou de Lisboa, com 25 bombeiros voluntários, 25 elementos do GIPS da GNR e 25 da FEB.