“Se precisavam de um mártir, ele está aqui.” Nem os mais próximos imaginavam aquilo que Carlos Ramalho se preparava para anunciar. Quando o presidente do Sindicato Democrático dos Enfermeiros Portugueses (Sindepor) anunciou que ia começar uma greve de fome, por tempo indeterminado, os colegas sentiram-se a bater de frente contra um muro. “Ficámos atónitos”, recorda ao Observador um dos dirigentes, José Coutinho. Soube quando toda a gente soube, nem um segundo antes. “Foi uma decisão limite que ele tomou de forma isolada, sem consultar ninguém, porque ele não estava à espera que o Governo agisse desta forma”, conta.
Antes de se instalar em frente ao Palácio de Belém, ao meio dia desta quarta-feira, Carlos Ramalho comeu uma última refeição. Eram 11h15 quando entrou num restaurante nas proximidades da residência oficial do Presidente da República. Pediu lulas recheadas. Depois, saiu, falou aos jornalistas e sentou-se num banco no Jardim Afonso de Albuquerque, do outro lado da estrada. É lá que vai permanecer durante todo o tempo que estiver em greve de fome, sem saber ao certo o que isso significa em horas, dias ou meses. Levou um sobretudo e uma mala de mão. E a força anímica. “Vou resistir até onde puder, a minha capacidade mental está inteiramente ao dispor desta luta”, dizia ao Observador minutos antes de chegar ao jardim.
Carlos Ramalho veio sem preparação. Luísa Ximenes — enfermeira-chefe que diz nem sequer conhecer o colega em protesto — prepara-se para montar toda uma operação de logística. Discorda desta forma de protesto mas vai pedir aos filhos tendas e colchões e vai organizar “um grupo de apoio psicológico, de assistência e vigilância médica” para o presidente do Sindepor. “Ele fez isto sem perguntar absolutamente nada a ninguém. Acho que se está a sacrificar de uma forma que eu desaconselharia. O enfermeiro Carlos está completamente sozinho e está disposto a dormir na relva. É evidente que ele não pode estar sozinho, porque é perigoso”. Mas o sindicalista não está sozinho. Assim que a sua decisão foi anunciada, houve enfermeiros que se mobilizaram para estar junto dele em Belém e outros decidiram sair dos serviços e ficar à porta dos hospitais e centros de saúde, manifestando assim o seu apoio.
O parecer da Procuradoria-geral da República sobre a greve cirúrgica, considerando-a ilegal e admitindo que começariam a ser contabilizadas as ausências do serviço, foi a gota de água. “O Carlos sentiu que os colegas podiam ser coagidos com faltas injustificadas” e decidiu que tinha de tomar uma posição. Afinal, foi para estar ao lado dos enfermeiros que rompeu com o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses e decidiu criar, em 2017, o seu próprio sindicato.
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A derrota na Ordem e o corte com o maior sindicato
Há muito que Carlos Ramalho andava insatisfeito. Era dirigente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP), mas não se revia na forma como o maior sindicato destes profissionais defendia a enfermagem e os enfermeiros nem na forma como lidava com as questões laborais. “Ele costumava dizer: ‘Temos de fazer alguma coisa, as coisas, como estão, não podem continuar’, e queria ficar ligado a essa mudança na nossa profissão”, conta José Coutinho.
O Sindepor começava a ganhar força na cabeça do enfermeiro em 2016 e o sindicato acabaria por nascer como o resultado de uma promessa que fez a si próprio: ia criar um sindicato que representasse de facto os seus colegas. Até lá chegar, fez o caminho das pedras.
“Na altura, foi alvo de chacota, diziam-lhe que não era assim que as coisas se faziam, que era preciso ter representatividade da classe para avançar com um novo sindicato”, recorda Gorete Pimentel, presidente da delegação norte do Sindepor. Essa resistência, garante, só lhe deu mais força.
O enfermeiro, com uma carreira no serviço de Psiquiatria do hospital de Évora, já tinha conhecido a derrota. Foi em 2015, quando integrou uma lista encabeçada por Ulisses Rolim — colega de serviço — para as eleições para a Ordem dos Enfermeiros. Nesse confronto, Ana Rita Cavaco levou a melhor. Mas, desta vez, estava decidido a alcançar o objetivo, não ia falhar.
Os amigos e os colegas de trabalho ajudaram. Ao Observador, definem-no como um “homem de ideias muito fortes”, com uma “personalidade muito vincada” e, ao mesmo, uma pessoa “muito afável”, de “trato muito fácil”. Sobretudo, “alguém com uma honestidade incrível e com uma palavra inabalável, que se prejudica a si mesmo quando se compromete, porque vai até ao fim”.
Esses amigos juntaram-se ao enfermeiro quando Carlos Ramalho decidiu que o sindicato ia mesmo avançar. Começaram a reunir contributos e fundaram a nova organização sindical. Foi assim mesmo, com os amigos que conseguiu reunir à volta do seu projeto, que começou a fazer este percurso. Hoje, garantem que contam com mais de 6000 enfermeiros associados e dizem rivalizar com o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses na representação destes profissionais de saúde. Depois de estarem formalizados como sindicato, juntaram-se à União Geral dos Trabalhadores (UGT).
O secretário-geral do Sindicato dos Trabalhadores da Administração Pública começou, por essa altura, a cruzar-se com mais frequência com o enfermeiro que virou líder sindical. “É um homem puro, que defende convictamente aquilo em que acredita, mas que foi castigado, que está cansado”, diz José Abraão. “É um voluntarioso”, resume o dirigente sindical.
Depois de criar o seu sindicato, a missão não ficou mais fácil. “Sofreu muitas pressões, recebeu muitos emails ofensivos, mensagens de toda a ordem, foi diariamente sujeito a tudo isto”, conta José Coutinho. “Mas manteve-se sempre firme, e quis sempre continuar a trabalhar, não queria deixar de prestar cuidados” aos doentes do serviço de psiquiatria do Hospital de Évora.
Continuou a trabalhar e passou a liderar o Sindepor, até que, no final do ano passado, a contestação dos enfermeiros atingiu um nível sem precedentes. A maioria dos sindicatos não viu com bons olhos a forma como, de forma espontânea, alguns enfermeiros se organizaram para reunir apoios entre os colegas de profissão para financiar uma greve setorial. Carlos Ramalho apressou-se a dar apoio aos promotores de crowdfunding. Os advogados do sindicato estavam ali para o que fosse preciso.
O braço de ferro que levou à greve de fome
Passaram-se semanas. A tensão foi subindo de tom. Em novembro, o Ministério da Saúde mudou de liderança, mas isso não resolveu o confronto de posições, nem sequer diminuiu as tensões entre Governo e enfermeiros. “O que os enfermeiros estão a sentir nos seus locais de trabalho são mais dificuldades em exercer a sua função — prestar cuidados com qualidade e segurança que os utentes merecem”, dizia Ramalho em Belém, ao final da manhã desta quarta-feira. “O Serviço Nacional de Saúde não tem capacidade de resposta e os governantes não nos respeitam”, e esse é um ponto central para a decisão que tomou.
Depois da primeira greve aos blocos operatórios, nas redes sociais, os enfermeiros discutiam que passos dar a seguir : mais uma greve cirúrgica? Outra forma de luta? Mas qual? Há várias semanas que se falava numa greve de fome. Havia até quem sugerisse uma greve de fome coletiva. Assim, não havia forma de serem travados — era uma decisão de cada um e nenhuma lei poderia impedi-los. E, se assim fosse, chegaria o dia em que, simplesmente, não haveria enfermeiros para se apresentarem nos serviços. A ideia não passou de conversas. “Mas aquilo ficou-lhe na cabeça”, diz Gorete Pimentel.
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A greve cirúrgica foi “um momento particularmente difícil” para todos os dirigentes do Sindepor. “Fomos todos aprendendo com a greve, não tínhamos noção de projeção mediática e da pressão a que estaríamos sujeitos”, conta José Coutinho. As exigências aumentaram exponencialmente para Carlos Ramalho. O enfermeiro tinha reuniões em Lisboa, depois no norte, somava quilómetros e quilómetros de estrada e horas e mais horas em reuniões. “Isso prejudicou imenso a sua vida pessoal.”
Mesmo assim, não parou. Pensou, analisou, mediu tudo e, no final, decidiu — esta terça-feira, anunciou a sua decisão. Os mais próximos sabiam da “teimosia” do enfermeiro de Évora, mas não imaginavam que desse esse passo. Quando o anúncio foi feito, sabiam que ia levar a luta até ao fim. “É uma decisão que eu sabia que eta extrema, que já há muito tempo que andava na minha cabeça, e não a queria tomar porque estas decisões não se podem tomar de ânimo leve, mas é claro que os últimos acontecimentos me precipitarem um bocadinho, porque cada vez é maior a injustiça”, disse ao Observador mesmo antes de iniciar o protesto.
Depois do anúncio, os contactos multiplicaram-se. Durante horas, dezenas de mensagens caíram no telemóvel de Carlos Ramalho. Colegas de trabalho, dirigentes sindicais, família e amigos tentavam dissuadi-lo dessa radical de protesto. “Ele não é uma pessoa com uma saúde muito estável”, alerta uma colega do sindicato. A juntar à tensão das últimas semanas, com uma paralisação sem precedentes em marcha, uma greve de fome. “Ele não vai aguentar”, teme a mesma colega.
O anúncio de Carlos Ramalho já tinha horas quando Gorete Pimentel recebeu uma chamada de uma colega do Sindepor. “Três horas depois de o ouvir fazer o anúncio, ela ainda não tinha conseguido parar de chorar”, conta ao Observador a dirigente do sindicato.
“Estou disposto a tudo, não vou desistir, não estou preocupado com a minha posição pessoal”, garante. “Estou determinado a lutar por aquilo em que acredito, pelo princípios mais básicos de democracia num Estado de Direito e que há algum tempo que estão comprometidos.” Apresenta-se como o líder que quer deixar o exemplo. “Convicto de que, enquanto líder de um sindicato, tinha que dar algum sinal, dar o exemplo aos meus colegas enfermeiros que estão desesperados, que não sabem como lutar”, diz. Ele encontrou a sua forma. “Estou convicto que esta pode ser a maneira de demonstrar que estamos muitos descontentes e que alguma coisa tem de mudar.”