O conselho de administração do Banco Montepio, liderado por Carlos Tavares, mandou fazer nos últimos meses uma auditoria interna à origem dos créditos ruinosos concedidos à Casa da Sorte, apurou o Observador — empréstimos nebulosos que foram concedidos (e ampliados) no tempo em que Tomás Correia era também o líder do banco e que causaram perdas potenciais de várias dezenas de milhões de euros à caixa económica. A relação entre os dois “gelou” nas últimas semanas, sobretudo depois da última reunião do conselho geral da mutualista e numa altura em que ambos têm de chegar a acordo sobre um novo líder para o banco, depois de Pedro Alves ter deixado de ser hipótese, como o Observador noticiou em primeira mão na quarta-feira.
Ainda segundo as informações recolhidas pelo Observador, a auditoria interna à Casa da Sorte não será caso único. Há outras situações polémicas — potencialmente as relacionadas com os empréstimos a José Guilherme e ao negócio dos cruzeiros do empresário Rui Alegre — que estão na calha para mais análises aprofundadas por parte da atual administração.
Tomás Correia soube das iniciativas desta administração e – segundo qualificou outra fonte conhecedora do processo – subtilmente fez saber que ficou incomodado por se estar a vasculhar o passado da instituição. Um escrutínio que também já tinha sido feito – designadamente no mesmo dossiê da Casa da Sorte – por José Félix Morgado, que presidiu ao Montepio entre 2015 e 2017. Félix Morgado saiu antes do fim do mandato, incompatibilizado com o (ainda) líder da associação mutualista.
A relação entre Tomás Correia e Carlos Tavares gelou
O Observador apurou que a relação entre Carlos Tavares e Tomás Correia gelou, sobretudo desde que, na reunião do último Conselho Geral — onde (só no final) Tomás Correia viria a pedir escusa das funções de presidente –, o líder da mutualista criticou duramente o presidente do banco (após este sair da sala, onde tinha estado para uma apresentação) ao mesmo tempo que elogiou Dulce Mota, a presidente-executiva interina com quem Carlos Tavares se incompatibilizou.
[Esta semana a Rádio Observador está a fazer uma série — “Zoom” — sobre o estado da associação mutualista Montepio Geral, do Banco Montepio]
Questionada pelo Observador sobre o atual estado das relações entre o presidente do conselho de administração e o presidente da acionista, fonte oficial do Banco Montepio disse que “não tem comentários a fazer” sobre essa matéria. Já a Associação Mutualista Montepio Geral garantiu, também após ser contactada, que “as relações entre o chairman do Banco Montepio e o presidente da Associação Mutualista Montepio inscrevem-se num quadro de profissionalismo e respeito, em consonância com os princípios das instituições envolvidas“.
O que se passou na reunião do Montepio. A última “facada” de Tomás Correia foi para Carlos Tavares
Foi, também, questionada a Associação Mutualista sobre se tem conhecimento da auditoria interna à Casa da Sorte (e de possíveis outras). A resposta foi que qualquer informação sobre esta matéria “terá que ser solicitada junto do Banco Montepio”. Ora, o Banco Montepio indicou que “não pode, nem deve, fazer comentários sobre estas matérias“.
Auditoria para apurar eventuais responsabilidades individuais
Mas a informação recolhida pelo Observador é que esta auditoria (e outras que venham a acontecer) foi feita com o intuito de apurar eventuais responsabilidades individuais, além de o próprio banco estar em melhores condições para se defender e tomar as melhores decisões na gestão de cada uma das matérias, não só o polémico caso da Casa da Sorte como de outros.
A auditoria lançada por Carlos Tavares vai, até, mais atrás no tempo do que a feita por José Félix Morgado ao mesmo tema da Casa da Sorte, uma das mais antigas empresas nacionais de lotarias e outros jogos, com sede na baixa lisboeta mas que tem mais de 20 lojas de norte a sul do país.
Estes são créditos que foram concedidos pela Caixa Económica Montepio Geral (hoje conhecida como Banco Montepio), ao abrigo de uma exposição que começou em 2009 — era Tomás Correia presidente do banco — mas viria a ser ampliada com o financiamento para ressarcir outros bancos, incluindo o banco Efisa. O pico máximo da exposição do Montepio ao grupo Casa da Sorte atingiu os 36 milhões de euros, mas houve créditos (bem menores) também no EuroBic, no Novo Banco e no BCP.
No total, a Casa da Sorte chegou a dever mais de 50 milhões à banca, sendo uma empresa que, em teoria, não tem especial necessidade de se “alavancar”, ou seja, contrair dívida para fazer grandes investimentos ou comprar outras empresas (a Casa da Sorte apenas recebe dinheiro, apostas, das pessoas e entrega esse dinheiro à Santa Casa — não precisa de investir).
E trata-se de uma empresa cujos lucros operacionais (EBITDA) oscilavam em torno de 500 mil euros por ano e, no final de 2016, apresentou um prejuízo de mais de cinco milhões — um valor que contrasta com os resultados alcançados em 2015, quando apresentou um lucro na ordem dos 80 mil euros. Ou seja, mesmo levando em conta os lucros positivos de 2015 — de 80 mil euros — a empresa precisaria de mais de 600 anos para pagar a dívida acumulada.
Era José Félix Morgado o presidente-executivo do Montepio na altura em que a Casa da Sorte passou para os braços de um administrador judicial, incluindo, na altura, com dívidas de quase quatro milhões de euros ao Estado português, segundo notícias da época. Além do Montepio Geral, havia outros bancos na lista de credores da Casa da Sorte, como o BIC (atual EuroBic), que tem a receber 4,6 milhões de euros, o Novo Banco (perto de 1,2 milhões de euros), e o BCP (mais de 500 mil euros).
Alguns meses antes, no início de 2017, foi notícia (no Jornal de Notícias) que a Casa da Sorte era visada em dois processos em tribunal com vista à penhora por dívidas de valor superior a 51 milhões de euros ao Montepio Geral. O crédito já lhe teria, nessa altura, sido cortado pelo Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Montepio tenta recuperar créditos de mais de 51 milhões de euros à Casa da Sorte
O conselho de administração de Félix Morgado (gestor que, contactado pelo Observador, não quis fazer comentários) entregou no Banco de Portugal, na altura, um dossiê com toda a informação disponível sobre o tema da Casa da Sorte, ao mesmo tempo que tentava recuperar ou vender os créditos. Chegou a haver um processo de venda dos créditos que acabou por ser cancelado. Como foi noticiado na altura, pelo Jornal Económico, José Félix Morgado quis que o Banco de Portugal analisasse o processo de recuperação do crédito malparado à Casa da Sorte, para ver se havia matéria relevante para avançar com uma queixa-crime contra um dos candidatos à compra desses créditos: Pedro Laureano (acionista minoritário da Casa da Sorte).
Noutros casos polémicos, que podem vir a ser escrutinados, estão as ligações ao construtor José Guilherme, o empresário que deu a “liberalidade” de 14 milhões de euros a Ricardo Salgado, e o caso do financiamentos (de 148 milhões de euros) a um ruinoso negócio de cruzeiros do empresário Rui Alegre, tendo como garantia apenas 40% desse valor — cerca de 58,3 milhões. Segundo uma investigação da SIC, o dinheiro terá sido atribuído através de 14 sociedades de Alegre, sendo certo que uma parte dos fundos em questão terá sido utilizada para amortizar empréstimos de outras instituições de crédito e até para pagar o salário e dois carros para o empresário.
Negócio ruinoso. Montepio emprestou 148,3 milhões contra garantias de apenas 40% desse valor
Até pela necessidade de encontrar um novo CEO, a relação entre Carlos Tavares e Tomás Correia é uma matéria que irá marcar as últimas semanas da presidência da associação mutualista — Tomás Correia pediu escusa com efeitos a 15 de dezembro. Essa foi uma escusa pedida na reunião do Conselho Geral da mutualista que, como revelou o Observador, contou com um momento insólito quando Tomás Correia teceu enormes elogios a Dulce Mota (que está no cargo de forma interina) e, na ausência de Carlos Tavares, criticou duramente o presidente do conselho de administração.
Além de discordâncias sobre a orientação e resultados do Banco Montepio, Tomás Correia foi ríspido ao censurar Carlos Tavares, por não ter dado espaço e autonomia a Dulce Mota, uma administradora que veio do ActivoBank. Dulce Mota tornou-se chief executive officer interina, “à experiência”. Mas a “experiência” não correu bem.
Tomás Correia, presidente da mutualista, nunca foi um incondicional da escolha do antigo homem forte da CMVM para o Banco Montepio, em 2017. Mas quando caiu a hipótese Mota Pinto para a liderança do banco, Tomás Correia aceitou Carlos Tavares também porque sabia que isso ajudaria a tranquilizar o Banco de Portugal. Mas os problemas entre ambos rapidamente surgiram, culminando com a criação do BEM, o Banco de Empresas Montepio. Foi algo que Tomás Correia considerou uma afronta, secundado por Dulce Mota. Desde então a relação entre ambos nunca mais foi harmoniosa.