Índice
Índice
O Bairro 18 de Maio, na Outurela, em Carnaxide, logo às portas de Lisboa, é mal afamado.
Ana Têmpera chegou em novembro de 2012. Foi uma das primeiras raparigas que para cá vieram morar vindas dos lares da Fundação “O Século”, onde cresceram, ocupando um de dois apartamentos de autonomia que a Câmara Municipal de Oeiras disponibilizou à Fundação.
Ana sai sempre cedo para a faculdade. Está por estes dias a frequentar um Mestrado, depois de se ter licenciado recentemente em Publicidade e Marketing. Foi a primeira das raparigas (e rapazes, diga-se) institucionalizados nos lares de “O Século” a consegui-lo.
Regressa sempre a casa, na Outurela, quando a noite já se pôs, mas diz que ninguém lhe perguntou, nunca, de onde vem e para onde vai, e que se sente, hoje como no primeiro dia, mais uma moradora daquele bairro social.
Ana chegou à Fundação “O Século” em meados de 2001. Tinha sete anos. E veio acompanhada de duas das três irmãs, todas mais velhas. Nunca foi adotada. Viveu lá até aos 18 anos, altura em que ingressou em Direito, um curso que era o desejado, mas que não foi o desejável, e deixou-o logo para trás. Não foi fácil a saída do lar.
“Eu sempre disse que quereria viver no lar até aos 30 anos [risos], que não me queria ir embora de lá, que aquilo era a minha casa e que não me imaginava a viver sozinha, a sair de lá. Quando fiz 18 anos, começou a falar-se nisso, na abertura dos apartamentos de autonomia, e a verdade é que, na altura, eu sentia-me cada vez menos integrada no lar, tinha acabado de entrar na faculdade, as raparigas eram muito mais novas do que eu, e foi aí que percebi que era tempo de fazer a transição, embora me custasse fazê-lo. Foi das decisões que mais me custou tomar na vida”, recorda.
A Fundação “O Século” tem dois lares de acolhimento, todos em S. Pedro do Estoril. Há a “Casa das Conchas”, que se destina ao acolhimento de 25 crianças e adolescentes em risco, de ambos os sexos, com idades compreendidas entre os 6 os 18 anos — privilegiando, quando assim é possível, a reintegração destes nas famílias. E há a “Casa do Mar”, destinada ao acolhimento de 12 adolescentes do sexo feminino, com idades compreendidas entre os 12 e os 18 anos. Adolescentes que necessitam de ser afastadas das suas famílias, por serem vítimas de maus tratos ou de outras situações de perigo.
Excluídas as hipóteses de adoção e de reintegração na família biológica, o que o lar privilegia é a elaboração um projecto de vida pessoal e profissional, autonomizar as adolescentes, promovendo assim a sua uma integração social.
Os apartamentos de autonomia são o derradeira etapa da autonomização. É numa dessas “Casas da Ponte” que Ana vive.
[jwplatform aU3Rp7qR]
Leonor Lucena é assistente social na Fundação “O Século” e a responsável técnica pelos apartamentos, as “Casas da Ponte”.
Porquê esse nome? “Ao longo dos anos de trabalho nestes lares, começámos a pensar que era importante haver um sítio que pudesse fazer a ‘ponte’ entre os lares e a vida autónoma dos jovens. Ou seja, um sítio onde eles pudessem treinar melhor as competências de autonomia, competências que no lar são difíceis de treinar, pois é um contexto de instituição, um lar que é grande, com muitos jovens e em que estes nunca, ou quase nunca, fazem sozinhos uma só coisa. O nome, ‘Casas da Ponte’, vem precisamente daí: casas que são uma ponte entre o lar e a vida autónoma. Nós sentíamos um fosso, um grande fosso, quando estes jovens saíam autonomamente, do lar, para a vida deles.”
A Fundação “O Século” recebeu os apartamentos há três anos. “Não fomos logo, logo para lá. Ainda precisámos de os equipar, com mobiliário, com electrodomésticos, de os decorar, e em novembro desse ano vieram as primeiras jovens. As segundas vieram logo depois, em maio. Os apartamentos foram realmente importantes. Elas tinham dificuldades em muitas, muitas coisas, no que diz respeito à autonomia”, explica Leonor.
Ana, por sua vez, recorda que na “Casa do Mar” faziam tudo pelas raparigas. Ou quase tudo.
“Nós tínhamos uma tarefa, diária, o que não é nada se se comprar com aquilo que temos, hoje, de fazer no apartamento. Aqui, tudo o que é cozinhar, tudo o que é limpar, tudo o que são despesas, é responsabilidade nossa. O maior desafio, curiosamente — pelo menos para mim foi-o –, é avisar as duas colegas de casa sobre o que é que vou fazer, onde é que ando, e isso, confesso, ainda me faz confusão. É claro que somos autónomas, que cada uma sabe o que faz da sua vida, não tenho que dizer com quem vou, mas tenho de avisá-las se durmo ou não durmo em casa, para que durmam, elas, descansadas; tenho de avisá-las se trago ou não trago amigos e amigas cá a casa. E isso foi um desafio, pois acreditava que ao vir para cá, a autonomia seria total, e não é.”
Quando a adoção não é opção e o retorno à família também não
Em dezembro de 2014, de acordo com os dados do Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, existiam 429 crianças e adolescentes em situação de adotabilidade.
O número de candidatos que se predispunham a adotar, mas ainda em lista de espera, era quatro vezes superior: 1805. Até aos seis anos de idade, o número de pretensões era cerca de 24 vezes superior ao número de crianças disponíveis para adoção. Mas a verdade é que são menos, bem menos, os que querem adotar uma criança dos sete aos 12 (349 candidatos para 217 crianças) . E menos ainda (22 para 34) os que o querem fazê-lo com adolescentes dos 13 aos 15 — a idade até à qual se pode ser adotado em Portugal.
Ana Têmpera chegou à Fundação com sete anos, em situação de adotabilidade, mas tal nunca veio a acontecer. A razão é só uma: não estava só.
Em 2014, só 20 por cento dos candidatos a adotantes estavam predispostos a adoptar irmãos. Os números são diferentes de 2001 até hoje, mas a tendência não se alterou.
“Apesar de eu só ter sete anos na altura, e de ainda ter idade para ser adotada, nunca fui, uma vez que vivia com as minhas irmãs, e não fazia sentido adotarem só uma de nós e não as restantes. Mais a mais, eu tenho muitos, muitos irmãos. O mais velho com 63 anos, e eu sou a mais nova, com 22. A minha irmã do meio, que vivia comigo no lar, tem 26 e a outra, que também vivia lá, 30 anos. Nunca perdi o contacto com eles. E ainda que nos adotassem às três, que surgisse uma família, na ‘Casa do Mar’ a adoção não era, aparentemente, uma opção. Nunca foi. E nós sabíamos disso. A idade legal para se entrar lá é a partir dos 12 anos — excepcionalmente, eu entrei mais nova –, e essa era, na altura, recordo-me, a idade máxima para se ser adotado. Ninguém é adotado com 12 anos. Nunca conheci quem tivesse sido adotado lá com essa idade. Como é um lar de acolhimento, nós sabemos que, ou se é reintegrado na família, ou vivemos lá até atingir a maioridade. Eu sempre soube que ia lá viver até aos 18 anos”, lembra Ana.
Leonor Lucena explica que “sem excepção, todos os jovens, mais novos ou mais velhos, que ali entram, sabem, à partida, que não vão ser adotados”, que o que lhes vai suceder é que “vão trabalhar, connosco, no sentido de se autonomizarem”.
Muitas vezes, em alternativa, o que ainda pode vir a suceder é a reintegração destes na família biológica, “e é por isso que nós trabalhamos, também, com as famílias, é por isso que queremos manter um contacto com elas, pois, independentemente de regressarem ou não para ela, as famílias são importantes, são uma figura de ligação à vida fora do lar e são uma figura de apoio para nós, lar, e para os jovens que cá vivem. O nosso objectivo é o de autonomização dos jovens. Ou se autonomizam ou retornam às famílias biológicas. Não há, habitualmente, e salvo raríssimas excepções, uma terceira opção”, explica Leonor.
“Casas da Ponte”. Quem são (e como têm de ser) estas meninas-mulheres?
A vida no lar, crescer no lar, apesar de se saber que poderá ser longa a permanência, é perfeitamente normal. Tão normal quanto é possível ser.
“Igual, igual, não é, pois vivem no lar. Mas, de resto, vão à escola da comunidade, escolhem o que querem estudar, que curso querem, pratica desporto quem quer praticar desporto, faz actividades culturais quem quer fazê-las, vão ao teatro, vão ao cinema, saem à noite — com horários de regresso ao lar que variam consoante a sua idade e a sua responsabilidade. São crianças e adolescentes que têm os seus amigos, dentro e fora do lar, crianças e adolescentes que procuramos que tenham uma vida tão normal e feliz quanto nos for possível dar-lhes. O lar não é, nem deve nunca ser — não é saudável que o seja –, uma estrutura fechada ao exterior”, diz Leonor Lucena.
Ana recorda-se do dia em que chegou ao lar, há 15 anos. Por ter consigo as irmãs, teve a integração facilitada, mas fez dela uma criança “birrenta”, como a própria hoje se descreve.
“Vivi sempre com elas. Antes, vivi durante um ano num centro de acolhimento temporário — supostamente, e por lei, como é um centro de urgência, só lá ia ficar duas noites; fiquei um ano… –, mas sempre com elas. A minha integração foi muito mais fácil por causa disso. Mas também é verdade que os próprios monitores, que criam ligações muito fortes connosco, que são quase como nossos pais, foram importantes na minha integração. Claro que foi uma infância e uma adolescência diferente, diferente da das minhas amigas e dos meus amigos, que voltavam para casa, para os pais. No fim da escola eu regressava ao lar. Mas tive uma infância e uma adolescência felizes, sim.”
As irmãs acabaram por sair. Ana continuou por lá.
E continuou com o mesmo objectivo do começo. “Quando fui para o lar estava no 1.º ano. E sempre fui muito boa aluna. Um dos meus sonhos sempre foi o de entrar na faculdade, não sei porquê, mas tinha esse ‘bichinho’ de entrar na universidade em mim, desde pequenina. Um sonho que era também o de todas as pessoas que me ajudaram no lar, que me criaram lá. Então, não fiz mais do que investir nesse sonho. Não olhei para o lar como, ‘sou uma pobrezinha, que tenho que viver aqui!’, mas antes como, ‘o lar está a dar-me uma oportunidade para estudar e eu vou ter que aproveitá-la!'”
Ana é um caso de sucesso nos estudos e na vida, autónoma, fora do lar. Mas nem sempre é assim.
“É verdade que muitas das raparigas que chegam ao lar, chegam muitas vezes numa fase da sua vida em que pouco ou nada fazem para mudá-la, talvez por serem mais velhas, raparigas muito revoltadas, que não aceitam o passado que tiveram, a vida que têm, e vão para o lar a pensar no dia em que vão sair. Eu, como fui para o lar em pequenina, adequei-me ao que o lar tinha para me dar, às regras, mas sempre vi o lar como uma coisa boa. Não tenho do que me queixar”, recorda Ana.
As raparigas que, saídas dos lares da Fundação, vão viver para as “Casas da Ponte”, têm que ter características particulares. Desde logo, a idade. E, mais importante, a postura. Não de hoje, mas de sempre.
“Todas as jovens que vêm para os apartamentos de autonomia têm que ser, logo à partida, maiores de idade. Vão viver sozinhas, sem nenhum adulto aqui, e têm que ter mais de 18 anos. Depois, têm que ter características muito próprias: têm que ser jovens que, logo no lar, demonstrem responsabilidade, maturidade e, sobretudo, que queiram vir – isto tem que ser importante para elas, ninguém pode estar cá a contragosto, só porque sim, pois isso vai prejudicar o ambiente que se vive na casa. Por fim, são jovens que têm um projecto de vida totalmente definido, sabem o que querem fazer, umas estudar, em cursos específicos, profissionais ou superiores, outras trabalhar, ou tentar procurar um emprego. E são-no, portanto, jovens que querem investir no futuro”, explica Leonor Lucena, a responsável técnica pelos apartamentos de autonomia.
Nas “Casas da Ponte” da Outurela só vivem raparigas. A mais velha tem 24 anos. “É verdade que ultrapassou a idade máxima para viver nos apartamentos de autonomia, mas, excepcionalmente, a Elvira vai continuar connosco, pois está desempregada e vamos apoiá-la até se empregar”, explica Leonor. As restantes têm entre 18 e 23 anos. Uma delas, Cátia, trabalha na cozinha da Fundação e é “uma cozinheira de mão-cheia”. As restantes, estudam.
Ana Têmpera vai começar o Mestrado em Comunicação e Marketing, duas estão a licenciar-se, uma em Design, outra em Educação, e há mais uma rapariga no 12.º ano, no curso profissional de Teatro.
“Como tenho a hipótese de continuar a estudar, quero terminar o meu Mestrado, quero trabalhar no entretanto, ganhar o meu dinheiro e continuar a viver mais um tempinho no apartamento. Não muito tempo mais, uma vez que sei que vou fazer 23 anos. Mas vou viver lá até à transição para a minha casinha, para o meu espaço, que não precisa de ser grande, nem precisa de ter grande coisa. É esse o meu objectivo. Depois, se Deus quiser e Portugal me deixar, vou trabalhar na minha área”, assume Ana como ambição.
As raparigas têm uma renda mensal a pagar à Fundação “O Século” e cada uma é responsável por pagar a sua parte. As despesas, no início, não estavam incluídas na renda, mas negociou-se, pediu-se à Fundação que as incluíssem, aumentou-se ligeiramente a renda e lá se incluíram.
“A única despesa que nós temos que pagar, fora a renda, é a Internet e a TV, que é paga entre todas. Normalmente, e como cá em casa nenhuma de nós está a trabalhar, não tem um ordenado fixo, o tribunal apoia as raparigas até aos 21 anos — às vezes, excepcionalmente, até depois disso –, dando-lhes um suporte de autonomia de vida, um valor fixo todos os meses. E é através desse dinheiro que nós pagamos a renda, as despesas e geri-mo-lo o melhor que sabemos”, explica Ana.
A Fundação “O Século”, e concretamente Leonor, o que faz é ser uma figura de acompanhamento. Às vezes distante. Propositadamente distante.
“Nós o que fazemos é ajudá-las a aprender a gerir esse dinheiro. Elas têm as despesas normais que cada um de nós tem, despesas com alimentação, com os transportes, com a faculdade, a roupa, o telemóvel e, em casa, têm que pagar a água, a luz, o gás e a electricidade. O nosso objectivo é que elas saibam, enquanto vivem nas ‘Casas da Ponte’, gerir o orçamento. Para isso, eu reúno-me com elas, uma vez por mês, às vezes quinzenalmente, e falamos sobre estratégias para gerir, também para conseguir poupar. Mas isso é só uma sugestão e são elas, sozinhas, quem gere o próprio dinheiro. Se me importava de as ajudar em tudo? Não, claro que não. Mas às vezes obrigo-me a não fazê-lo para que elas saibam o quanto custa ser autónoma, E custa-me, sim”, explica.
E os apartamentos de autonomia para rapazes? “O nosso objectivo é, no curto prazo, ter também apartamentos de autonomia para eles, claro. A Câmara Municipal de Cascais cedeu-nos, há pouco tempo, um apartamento ali na zona da Parede. O que falta fazer? Faltam-nos as obras de requalificação, mobilá-lo e trazer os rapazes. Acreditamos que pode vir a acontecer no próximo ano.”
Fugir à guerra em criança e fazer-se homem no lar
[jwplatform eV4uA5Lb]
Que idade é que tens? “No B.I.?”, pergunta, a gracejar, para depois dizer, “aí tenho 25 anos.”
A história de Malan Saña não é diferente da de muito dos rapazes e raparigas guineenses — meninos, alguns bebés de colo — fugidos da guerra que assolou o país em 1998, e que vieram de lá, como conta Malan, “com uma mão à a frente outra atrás”.
“Foi a minha mãe, que vivia em Portugal, que me foi lá buscar. Quando vim, ainda vivi uma temporada longa com ela, mas quando ela foi trabalhar para a Suíça, e como eu ainda não tinha os documentos comigo, perdeu-se tudo lá em Bissau, teve que me deixar em casa do meu pai. Ele, como não tinha condições para me criar, pôs-me num lar em Mafra, num mosteiro. Aquilo era mesmo um mosteiro. Ainda lá vivi um ano, com outros rapazes da Guiné, mas aquilo fechou. No entretanto não tinha para onde ir, até que uma professora de lá conversou com o meu pai, falou-lhe da Fundação ‘O Século’ e tal.”
No mesmo dia em que foi visitar a “Casa das Conchas”, ficou lá.
Volta e meia regressava a casa, “pelo Natal e pouco mais”, para visitar a família. Entretanto, passaram-se nove anos. Entrou com 12 anos, deixou o lar aos 21.
“No início, confesso, foi-me difícil a adaptação. Logo eu, que sempre me habituei a ter o meu espaço, que não gostava que ninguém me chateasse a cabeça, tinhas as minhas coisas, não tinha que as dividir com mais ninguém, podia fazer o que bem quisesse – dentro das regras que a minha mãe impunha, claro [risos] –, e depois, quando ali cheguei…”, Malan hesita, morde o lábio inferior, respira, desvia olhar para a janela de onde se vê o mar, respira mais uma vez, que os dias da chegada ao lar não foram dias fáceis, e retoma o fio à meada: “É verdade que conhecia muitos dos rapazes, vieram comigo lá de Mafra, tornámos-nos amigos, mas nem sempre foi fácil, cada um tem a sua personalidade. Eu penso que sou maior do que aquele, aquele pensa que é maior do que eu, somos miúdos, é claro que há divergências. Mas, pouco a pouco, com a ajuda dos monitores, que são como se nossos pais fossem, lá encontrei o meu espaço.”
Apesar de tudo, apesar das diferenças da vida em casa — e Malan, ao contrário de Ana, chegou já adolescente à Fundação –, diz que teve uma vida normal. E repete a palavra vezes e vezes sem conta: normal.
“Sim. Viver num lar é como viver numa casa normal, onde há dias felizes e há dias que nem tanto. Há-de haver quem julgue que nós não vivíamos em liberdade. Mas, sim, vivíamos. Só que dentro das regras. Que são as mesmas que se impõem em casa, às crianças, pelos pais. A diferença é que aqui não são os nossos pais que nos impõem as regras de higiene, de arrumação, de estudo, de quando é hora de brincar e de ser sério, mas são os monitores a fazê-lo. Em tudo o mais, foi uma vida normal a que tive no lar. Eu fiz karaté, capoeira e kickboxing nos tempos-livres, sempre fui bom aluno na escola, sempre passei, ano após ano, sempre com positivas, e estudei até ao 12.º ano, num curso profissional de Técnico de Animação Sociocultural. Tudo normal.”
Hoje trabalha numa hamburgueria de Lisboa. “É tudo ‘gourmet’, mas é de chineses”, graceja.
Antes tinha sido animador “numa ilha aventura, daquelas onde os miúdos fazem as festas de anos e tal”, mas o primeiro “emprego” que teve, até foi na Fundação. “Eles têm as colónias de férias para as crianças durante a época balnear. Eu, numa das colónias, fiquei num grupo, como dizer?, problemático, onde só se fazia ‘porcaria’ todo o santo dia, uma verdadeira dor de cabeça para os monitores. Um desses monitores, que até foi meu professor de capoeira, certo dia chamou-me à parte e disse-me: ‘olha, vais agora tu tomar conta deles, para saberes, no fim do dia, o que nos custa dar-vos umas férias e como vocês nos retribuem!’ Ao fim de um turno, aquilo correu-me tão bem, que tomei-lhe o gosto e voltei a ser convidado, ano após ano, até hoje, a trabalhar nas colónias de férias. Foi lá que aprendi o valor do trabalho. E isso foi-me essencial para ser, hoje, melhor trabalhador no que quer que faça. Foi ‘O Século’ que fez de mim o que sou hoje. Vivi parte da minha infância e toda a minha adolescência na ‘Casa das Conchas’. Devo-lhes tudo o que sou”, lembra.
Malan sabia que o dia da sua saída chegaria. Não saiu quando fez 18 anos, saiu pouco depois, com 21.
“Eu é que quis sair. E quis sair porque chegou uma altura em que me sentia, como explicar?, saturado, muito saturado, não da ‘Casa das Conchas’, mas das regras, que são as mesmas tanto para as crianças, como para mim, o mais velho de todos lá. Chegou uma altura em que os monitores se sentaram comigo e me perguntaram: ‘Como é?, o que é que queres fazer?’, e eu respondi-lhes que não me adaptava mais ali, que não queria ser um problema para ninguém, e concordámos que ia chegar uma data em que iria sair. Mas que até essa data chegar íamos trabalhar para que eu aprendesse a viver fora dali.”
Saiu. E sentiu a falta do que menos pensava vir a sentir: do ruído. E de quem o fazia.
“Senti-me como se estivesse a deixar para trás a minha família. E estava mesmo a deixá-la para trás. A ‘Casa das Conchas” era e é a minha casa, são a minha família, o meu porto-seguro, onde tinha sempre alguém com quem falar, de dia e de noite, e, hoje, quando chego a casa, quando não há paciência, não falo com ninguém, não há barulho. Eu sinto falta é do barulho, de me sentar à mesa com eles, de comer, de brincar, de falar, de estar. Tão somente de estar lá.”
Quando saiu, falou-se-lhe dos apartamentos de autonomia para os rapazes, “mas era só trinta-e-um de boca”. Foi viver, durante dois meses, “mais coisa menos coisa”, na casa dos tios, a tentar adaptar-se “à vida lá em casa”. Mas não foi fácil. A vida que imaginou, libertina, desregrada, não o era. De todo.
“Eu dizia, vou sair!, e eles perguntavam-me, vais onde?, vais com quem?, e quando é que voltas? — e tudo aquilo fez-me confusão. Eu vinha de um sítio onde me controlavam tudo e mais alguma coisa, o que queria era ser autónomo, e fui para uma casa onde é igual?! Então, espera aí…, pensei eu.”
Malan conhecia, dos seus trabalhos de verão, nas colónias, “um senhor que trabalhava na Segurança Social”. Este perguntou-lhe como ia a sua vida, sabia que Malan tinha deixado a ‘Casa das Conchas’, e Malan contou-lhe que não se estava a adaptar à casa dos tios. “E ele apoiou-me, conseguiu arranjar-me um quarto num apartamento de autonomia. Explicou-me que seria só por um ano, mas que se eu trabalhasse durante esse ano, conseguiria amealhar dinheiro e, quando saísse, saía com mais bagagem.”
No lar “Casa das Conchas”, por tanto que os educassem, confessa Malan, “não aprendemos lá num ano o que aprendemos nos apartamentos de autonomia num dia”. E explica: “No lar, se quisesses tomar um banho de três horas, tomavas. Hoje, se tomasse um banho de três horas, para além de me cair a pele [risos], no final do mês chegava-me uma conta, upa, upa! Lá, no apartamento, tinha um valor para gerir, e se o soubesse gerir, ao final do mês ainda conseguia deixar um dinheirinho de parte. Se não, se gastasse tudo, penava…”
“Bootcamp de Autonomia”. Ou sim, ou sopas para quem quer sair do lar
Diana Estevão é psicóloga clínica na Fundação “O Século”. E é uma das responsáveis pelo primeiro “Bootcamp de Autonomia” que a Fundação organizou.
Mas o que é isso de “Bootcamp”? “É um projecto, da Fundação, que mais não quer do que promover as competências pessoais e sociais dos jovens que, a partir dos 17 anos, estão na recta final para deixar o lar, que começam a desejar sair, mas que precisam das ferramentas para a saída, para que se façam autónomos. E o ‘Bootcamp’ tanto serve para os que os vão seguir para os apartamentos de autonomia, como para os que não.”
No “Bootcamp” trabalham-se os jovens em quatro áreas: na área da saúde e do bem-estar, com “workshops” de nutrição e de culinária; nas áreas do trabalho, com a elaboração de um currículo e a preparação, por exemplo, de uma entrevista de emprego; mas também nas áreas das finanças e da casa, onde os ensinam a gerir um orçamento, a poupar. “Tudo isto ao longo de vários meses e com vários workshops”, conta Diana Estevão.
No final de setembro, durante três dias, de sexta-feira a domingo, foi-lhes proposto que vivessem completamente em autonomia. Que pusessem em prática os conhecimentos que adquiriram.
“Os resultados foram, acredito eu, muito positivos. E nós gostaríamos muito que o projecto continuasse daqui em diante. Este ano o ‘Bootcamp’ foi financiado pelo movimento “Mais para Todos”, da SIC Esperança e do Lidl. Não sabemos como é que vai ser no próximo ano. Mas a verdade é que há mais instituições do concelho, outros lares de acolhimento, que querem inscrever os seus jovens no nosso ‘Bootcamp’. Gostaríamos muito, mesmo muito, de fazer esse intercâmbio, entre jovens que estão nesta fase, de ter um pé dentro e um pé fora”, explica.
Malan não passou pelas apartamentos de autonomia da Fundação “O Século” — que ainda não existiam, na altura, para rapazes, e que, a existir, só existirão em 2016. E também não fez nenhuma formação intensiva de autonomia. O que aprendeu, aprendeu-o na “Casa das Conchas” e, depois, num apartamento de autonomia do Estado.
Também ele, que hoje vive com os dois pés fora do lar, volta e meia regressa.
“Hoje, quando saí de casa dos meus tios [para onde regressou depois de viver durante um ano no apartamento], quando me perguntaram onde ia, respondi que ia voltar para casa. E perguntaram-me, admirados, ‘para casa?!’. Sim, respondi eu, para casa, para a ‘Casa das Conchas’, que é a minha casa. E volto cá muitas vezes. Às vezes, há momentos na minha vida em que estou desesperado, com a cabeça feita em água, e volto. As pessoas aqui conhecem-me desde que me conheço como homem. Chego aqui, homem feito, senhor do meu nariz, e são capazes de me dar colo. Sento-me, falo, rio, fico na boa e vou-me embora. É sempre bom voltar a casa”, explica.
— Olha, o gabiru! — apregoa Malan, carinhoso, enquanto esfrega a mão na cabeça de um rapaz de palmo e meio, ruço, com um par de luvas azuladas que são maiores do que os pequenitos braços.
O “gabiru” por lá andava, a dar uma ajudinha no refeitório, mais gazeteiro do que outra coisa.
Malan, de volta a casa, cumprimentava quem lhe surgisse por diante: abraçava-se às raparigas e, com isso, causava, entre elas, uma ciumeira que só visto, se se abraçasse mais a uma do que a outra; aos rapazes, se lhe contassem os monitores que se andavam a comportar mal, repreendia-os, rosto sério, sobrolho franzido; e quase lacrimejava, trincando o lábio inferior entre os dentes e sorrindo, quando via as monitoras que o educaram, e a quem trata, carinhosamente, por “mamã”.
“É verdade que se sente muito neles esse desejo de sair, mas assim que saem, arranjam todos os pretextos e mais alguns para cá voltar. Nem que seja para vir lavar a roupa, comer, fazer o que quer que seja, como um documento no computador — algo que eles faziam perfeitamente lá fora, em casa –, e manter a relação viva. Na verdade, se virmos com atenção, eles não são tão diferentes assim dos outros jovens, com quem há sempre aquela ambivalência, quero e não quero, vou e não vou, regresso e não regresso, quero sair de casa da mãe, da avó, mas sabe-me tão bem ir a casa, nem que seja uma vez por mês, comer aquele prato preferido, não é? Com eles, no lar, não é diferente. Os projectos acabam, os ciclos recomeçam, mas os laços não se quebram. Nunca. A porta, na Fundação ‘O Século’, estará sempre aberta para eles. Todos”, lembra Diana Estevão.