“É isto mesmo”, diria horas depois. Corria um dia algures em abril de 1970 e André Jordan, há pouco tempo de volta a Portugal, depois de uma longa temporada no Brasil, quase não visitou a Quinta dos Descabeçados, propriedade agrícola perdida numa zona de águas pantanosas no Algarve. Afinal, o motorista responsável por levá-lo a conhecer esta área junto à Ria Formosa estava atrasado e o então jovem promotor esteve quase a desistir. Valeu-lhe, talvez, o ressoar das palavras do arquiteto João Caetano, que o contactou garantindo-lhe que o Algarve encerrava em si grande potencial para turismo. Nessa época, aquele que é hoje território de veraneio internacional, era pobre e rústico, ignorado pelas elites portuguesas, que preferiam as águas de Marbelha, Cannes ou St. Tropez. “A maioria dos portugueses abastados que conheci nunca tinha sequer posto os pés no Algarve”, recordaria mais tarde o empresário.
Uma tendência que viria a mudar radicalmente. Isto porque, depois de percorrer várias parcelas de terreno, desiludindo-se com cada uma delas, encantou-se em Almancil: “Já era hora do almoço. Depois de conduzir por caminhos de terra e de se perder, eu estava pronto para dar o dia por terminado, mas o agente estava determinado em continuar. De repente, surgiu uma paisagem deslumbrante, além de um pinhal. Percebi que era especial”, afirmou o empresário, numa entrevista publicada no livro que marcou o 50.º aniversário da Quinta do Lago, em 2022.
Era aquilo mesmo. Foi nesta colina, enquanto apontava para a Ria Formosa, proferindo a frase de descoberta, que visualizou pela primeira vez o resort de golf de baixa densidade que viria a transformar-se na Quinta do Lago. Naquele momento, aquele que até hoje é conhecido como o “pai do turismo” em Portugal, não sabia ainda que na casa em ruínas à sua beira nasceria, para a época, o mais sofisticado e gourmet restaurante do Algarve. “Não havia bons restaurantes no distrito”, disse Jordan, citado pela mesma publicação, referindo apenas o Pousada da Cegonha, em Vilamoura, um na praia de Quarteira, O Poço, em Almancil.
Projetado para ser “algo espantoso”, o restaurante Casa Velha, o primeiro projeto gastronómico da Quinta do Lago (hoje contabilizam-se 15), foi oficialmente inaugurado em novembro de 1974, altura de grande turbulência política provocada pela revolução de Abril. Quase 50 anos depois, vividos vários altos e baixos, acaba de sofrer a maior e mais profunda alteração de conceito desde o seu nascimento, arrancando o capítulo na sua história, em que dá oficialmente as mãos aos sabores portuguesa (mas já lá vamos). Pioneira no campeonato do fine dining algarvio, neste meio século de vida contou com a presença de ilustres figuras, tanto da realeza internacional, como de celebridades e políticos do mundo — desde Henri, Conde de Paris, ao fotógrafo Patrick Anson, aos reis de Espanha Juan Carlos e Sofia, aos príncipes do Mónaco, Rainier e Grace Kelly.
Mas o que acontece na Quinta do Lago, fica na Quinta do Lago. Este é, aliás, um dos motivos que tornam o super empreendimento turístico tão atrativo para quem procura umas férias confortáveis e relaxadas, nota Sean Moriarty, há sete anos CEO do super empreendimento turístico que, ainda nas mãos de Jordan, mudou o Algarve para sempre. “Acho que a beleza da Quinta do Lago é essa: não haver historias muito detalhadas sobre ninguém, mas saber que toda a gente passa aqui grandes momentos”, diz ao Observador. O empresário é, em parte, um dos grandes responsáveis pela mudança de direção que a Quinta do Lago assumiu à data da sua entrada: mantendo sempre os princípios fundamentais do seu fundador, é atualmente um refúgio mais orientado para o bem-estar e para o lazer.
Talvez porque o público que visita a Quinta do Lago tem vindo a mudar ao longo dos anos. Hoje, nota, já não são apenas “os jogadores de golfe ricos e reformados” que passam por Almancil, mas sim “as famílias de todos os dias”, mais numerosas e que incluem duas ou três gerações, sem esquecer os grupos de amigos que procuram “um ambiente descontraído”. O perfil de quem compra em Portugal está mais jovem, fixando-se na casa dos 40 e 50 anos, comparativamente aos 85% na casa dos 60 e 70 há seis anos”. E é na procura desta atmosfera mais arejada, de praia, piscina e chinelo no pé, aliada à crescente popularidade do território e produtos portugueses, que surge também a vontade das experiências gastronómicas locais.
Sai o fine dining, entra o fun dining. Sai o caviar, entram os peixinhos da horta. A nova Casa Velha
“Acho que a comida portuguesa se tornou mais conhecida em vários países — e é mais do que umas boas sardinhas — e as pessoas querem experimentar”, justifica o CEO. Foi precisamente a pensar nisso que o Casa Velha esteve três meses fechada durante 2023, reabrindo em junho de cara e menu lavados. O fundamental? Cai o fine dining, entra o relaxed dining. Sai a gastronomia que transporta para o imaginário da Riviera Francesa, entram as reinterpretações dos clássicos do receituário português. Uma despedida, pois, dos menus de degustação com seis passos, “ao estilo Michelin”, às entradas com foie gras de pato, carne de caranguejo, ou caviar. Agora, brilham os peixinhos da horta (8€), a tiborna de lula (14€), os croquetes de arroz de pato (16€), o supremo frango de churrasco (16€), o bitoque de vitela à portuguesa (20€), o polvo à lagareiro (18€) ou o xérem de camarão picante (20€).
A nova carta, que responde a esta vontade de um turismo com um registo mais informal (já que o fine dining tem-se demonstrado, neste contexto, um “turnoff“, considera o executivo), foi pensada por várias mentes. Do grupo responsável pelo processo criativo gastronómico, fizeram parte João Botelho, o chef do Casa Velha que regressou para estar aos comandos do restaurante neste seu novo capítulo, depois de já ter ocupado aqui a posição de sous chef há mais de dez anos; Gareth Billington, natural do Reino Unido, com 30 anos de experiência no setor e chef executivo da Quinta do Lago; e ainda Nuno Mendes, consagrado chef responsável pela Cozinha das Flores, no Porto, sediado no Reino Unido, que foi aqui uma espécie de consultor, recebendo a equipa da Casa Velha no seu Lisboeta, em Londres, e visitando a Quinta do Lago para ajudar a montar este que “é um restaurante português com classe”, descreve Sean Moriarty.
A primeira vez que o executivo visitou o Casa Velha, recorda, sentiu que aquele não era o local ideal para fazer um jantar com os seus amigos. A qualidade era “incrível”, o serviço era “fantástico, mas o cenário faria um match mais harmonioso com um “jantar em casal, talvez”. O aspeto era o que mantinha desde 2015, altura em que o então fine dining — que, na sua versão original, tinha sido projetado por Fernando Torres, arquiteto especialista na história da arquitetura algarvia, e decorado por Pedro Leitão, a quem foi pedido um ambiente “rústico, mas elegante” —sofreu uma grande remodelação e mudou de sítio.
Não foi, ainda assim, para muito longe, apenas ligeiramente para a esquerda, para o edifício onde nos anos 70 ficava uma discoteca, que primeiro foi o Poney, depois o Pátio. Tornou-se mais “sofisticado”, com “cadeiras de grande conforto”, talheres e copos muito luxuosos, embora simples, mantendo, em termos gastronómicos, “o mesmo caminho da culinária francesa sofisticada” iniciado por Jordan.
Atualmente, está no mesmo sítio, mantém a mesma esplanada no agradável pátio, mas deixou cair a rigidez. Na busca por um sinal, basta observar as toalhas, que antes eram brancas e agora exibem orgulhosamente os bordados portugueses. A cutelaria também é nacional, juntamente com a nova oferta de cervejas e café artesanal. A carta de vinhos também reforçou a presença portuguesa, destacando-se entre as novas referências o Alvarinho Soalheiro, do Douro, o Lacrau ou Três Bagas, do Alentejo, ou a Herdade Grande, da Herdade do Esporão.
“Venho de uma grande família de irlandeses. Há várias parecenças entre o lifestyle da Irlanda e de Portugal, exceto o tempo, claro”, diz o CEO, referindo-se ao tipo de convivência com a família e amigos nas duas culturas.
O Casa Velha, para sempre incontornável referência nas experiências gostronómicas gourmet a sul, precursora do estilo Michelin no Algarve, outrora a mais sofisticada mesa desta região, está agora mais próxima desta convivência familiar e de partilha que unem Portugal à Irlanda. Agora, as pessoas podem “escolher quantos pratos quiserem” e “dividir e provar de tudo”. No novo capítulo do berço da Quinta do Lago, quer-se a confusão à mesa, no melhor dos sentidos.