A entrevista com João Galamba aconteceu pouco depois das três horas da tarde, no segundo e último dia das jornadas parlamentares do PS, em Bragança. No auditório do hotel que acolheu a deslocação brigantina dos socialistas, o deputado e porta-voz do partido falou sobre as “complexas negociações” que envolvem o Orçamento do Estado para 2018, não escondeu as diferenças de princípio entre PS, Bloco e PCP no que diz respeito à revisão dos escalões do IRS e comentou ainda o futuro político do PS: pedir ou não pedir a maioria absoluta, eis a questão.
Mas foi o crescente protagonismo de Mário Centeno — que há uns meses tinha sido colocado a prazo na sequência do caso das mensagens trocadas com António Domingues, ex-presidente da Caixa Geral de Depósitos –, que mais dimensão ganhou na entrevista de cerca de 20 minutos a João Galamba: o socialista reconhece o mérito do ministro das Finanças, mas lembra ao Observador que não há sucessos de um homem só. E sobre a possibilidade de Centeno rumar à presidência do Eurogrupo, as resistências são muitas: “Se for apenas para termos um português lá e isso nos deixar muito contentes e felizes, aí acho que não. Prefiro que esteja dedicado ao país”, diz o deputado socialista.
No último debate quinzenal, recusou que os resultados económicos fossem mérito exclusivo do ministro das Finanças. Existe algum mal-estar pelo excesso de protagonismo do “Ronaldo do Ecofin”?
Não. Há um enorme mérito de Mário Centeno em todos estes resultados, porque foi ele que esteve na primeira linha quando teve um embate duro na Europa e quando teve que defender as propostas e a estratégia do Governo, resistindo ao cerco internacional à estratégia seguida pelo Governo. Mas uma estratégia não é feita só de uma pessoa — a dificuldade de executar um Orçamento não é só do ministro das Finanças. Muitas vezes até é mais dos ministros que têm de corresponder às exigências feitas pelo ministro das Finanças. E foi isso que eu quis dizer: não foi de modo algum diminuir o mérito de Mário Centeno, é também associar um conjunto de outros ministros que não tiveram a vida fácil. Não há nenhum mal-estar.
Ainda assim, vê com bons olhos uma possível nomeação de Centeno para o Eurogrupo?
Depende. Os esforços e o tempo de Mário Centeno devem continuar a ser dedicados ao Ministério das Finanças. Ainda há muito por fazer e é um cargo que exige dedicação a tempo inteiro. No entanto, se a ida de Mário Centeno para o Eurogrupo for num contexto de transformações significativas do Eurogrupo das quais Mário Centeno possa ser protagonista, aí poderia rever a minha posição. Mas a minha prioridade seria sempre que Mário Centeno se mantivesse como ministro das Finanças.
E há condições para reformar o Eurogrupo?
Não sei. Mas se a ida de Mário Centeno puder representar uma alteração qualitativa naquilo que se debate sobre o funcionamento do Eurogrupo e sobre o futuro da União Europeia, acho que poderia ser positivo. Só nessas circunstâncias. Se for apenas para termos um português lá e isso nos deixar muito contentes e felizes, aí acho que não. Prefiro que esteja dedicado ao país.
O Governo parece hesitar em responder concretamente sobre o que vai fazer com a margem que advém da saída do Procedimento por Défice Excessivo (PDE). À esquerda, mas também no PS, há já quem pressione abertamente o Governo a ir mais longe. Podemos estar perante um braço de ferro entre um ministro das Finanças demasiado cauteloso e um partido que quer mais vida para além do défice?
Não. A primeira margem que ganhámos com a saída do PDE é podermos continuar a fazer exatamente o que estamos a fazer sem o cerco e o sufoco de que fomos alvo no primeiro ano. Essa é a primeira margem: credibilidade e resultados apresentados para contrariar quem, muitas vezes forma leviana e preconceituosa, exigia que o Governo mudasse de estratégia, corrigisse, regredisse ou revertesse as reversões.
E uma segunda margem…
A segunda margem decorre das regras. Agora que estamos no braço preventivo, as regras do Pacto de Estabilidade preveem uma total abertura sem condicionamento em relação à natureza das reformas estruturais. Por outras palavras: desde que haja reformas que tenham algum custo no curto prazo, mas que tenham benefícios no longo prazo para o PIB potencial e para as contas públicas, elas podem ter um tratamento diferente nas metas orçamentais. Pode haver uma flexibilidade até 0,5% do PIB, desde que o défice fique abaixo dos 3%. É essa a margem que objetivamente ganhámos. É uma margem para investimento e para reformas, não é uma margem para aumentar despesa corrente.
Isso materializa-se como?
O Governo tem um Plano Nacional de Reformas e muitas dessas reformas têm custos. O papel do Governo é perceber quais dessas reformas deve candidatar a esta regra de flexibilidade. Se isto é já possível em 2018 e em 2019, é algo que o Governo terá de ver com a Comissão Europeia. Em suma: o Governo terá agora de avaliar que reformas podem ter um custo elevado no curto prazo, e que por isso poderiam ser adiadas ou transformadas para acomodar as restrições orçamentais, e que agora podem ser aceleradas.
Mas perguntava muito concretamente: o PS está satisfeito com o plano estratégico traçado por Mário Centeno?
Sim…
… É que nestas jornadas parlamentares, Carlos César, líder parlamentar e presidente do PS, deixou um caderno de encargos ao Governo…
Carlos César não lançou desafio nenhum ao Governo. Ou melhor: desafiou o Governo a cumprir o seu próprio programa. O que estamos a dizer é que, nestas circunstâncias, com crescimento económico e com a saída do PDE, temos melhores condições para cumprir a estratégia que já está hoje em execução: recuperação de rendimentos e redução da carga fiscal. Não estou a dizer que podemos fazer mais do que estava previsto. Podemos é fazer aquilo que estava previsto mais facilmente.
Existe ainda a questão do investimento. Carlos César definiu como prioridade absoluta investir no SNS. Como é que se traduz isso na prática?
Ao contrário do que toda a gente tem dito, que o Governo cumpriu o seu programa e os acordos à esquerda sacrificando o SNS, os números não o confirmam: o número de profissionais no SNS entre o final de 2015 e 2017 passou de 126.212 para 132.645. Os médicos passaram de 26.701 para 29.382. E os enfermeiros passaram de 39.342 para 42.935. Foi o maior reforço de cursos humanos de sempre no SNS. Temos hoje mais médicos e enfermeiros do que tínhamos antes da entrada da troika.
Mas há ainda muitos desafios por resolver, nomeadamente a questão do pagamento das horas extra…
Há muitas questões por resolver, sem dúvida. O que não aceito é a ideia de que desinvestimos do SNS para cumprir outras promessas.
Este ano, o PS tem preparadas várias medidas de devolução de rendimentos aos portugueses ou de apoio às famílias num modelo faseado. Exemplos: aumento extraordinário das pensões (agosto), aumento do subsídio de refeição (agosto), fim progressivo da sobretaxa até ao final do ano, fim dos duodécimos do subsídio de Natal a dois tempos, os trabalhadores precários devem ser integrados até ao final de outubro… Pergunto: em ano de eleições autárquicas, o calendário é um pormenor?
Temos um calendário que precede as eleições autárquicas, que é um calendário que decorre do nosso próprio programa eleitoral. A integração dos precários, por exemplo, sempre foi uma prioridade do Governo. Não foi inventada este ano. O facto de coincidir com ano de autárquicas é isso mesmo: uma coincidência.
Mas ajuda…
Sim, mas se não fosse agora, seria em ano de legislativas. Seríamos alvo da mesma crítica.
O PS já tem alguma proposta fechada sobre a revisão dos escalões do IRS? Catarina Martins defendeu um alívio fiscal de 600 milhões de euros no IRS, o triplo do valor inscrito pelo Governo no Programa de Estabilidade… Parece-lhe exequível? Ou prefere a ideia do PCP, defendeu a criação dos dez escalões?
O que está no nosso programa é o reforço da progressividade e o aumento do rendimento das famílias de classe média. O que está inscrito no Programa de Estabilidade é uma verba de 200 milhões de euros. As negociações estão em curso, o importante é que haja uma redução significativa da carga fiscal e penso ser possível, como já foi possível no passado, encontrar um compromisso entre pretensões mais conservadoras do PS e mais maximalistas do Bloco e do PCP. Tenho a certeza que chegaremos a um compromisso razoável, que agrade a todas as partes.
Portanto, será a meio caminho?
Como sempre tem sido. Quando há partidos com posições distintas, o compromisso faz-se sempre a meio caminho.
Está fechada a hipótese de ser criado um novo patamar entre segundo e terceiro escalões?
O que é importante é garantir o reforço da progressividade e o aumento do rendimento das famílias.
A revisão dos escalões do IRS será a grande discussão em torno do Orçamento do Estado para 2018. No PCP, existe alguma resistência em discutir o OE2018 antes das eleições autárquicas, É leal fazer depender uma coisa da outra, quase indexar uma discussão do OE2018 a umas eleições?
Há matérias que são mais complexas e que não se prestam a ser debatidas em duas ou três semanas. É uma negociação que exige muito tempo. Os dossieres mais pesados devem ser começados a trabalhar muito antes do Orçamento. Obviamente que o Orçamento nunca poderá ficar fechado antes do debate na especialidade, mas é bom que os dossieres mais complexos e mais pesados sejam objeto de uma discussão prévia. E é isso que está a acontecer…
Mas o PCP não está a usar este braço de ferro no Orçamento como trunfo eleitoral?
Não vejo isso. Não podemos ignorar que há um processo de especialidade e aí vão ocorrer sempre negociações e sempre votações — foi isso que João Oliveira disse na sua entrevista [à SIC]. Outra coisa inteiramente distinta é que, em áreas mais complexas, como também é exemplo o descongelamento das carreiras, exista uma negociação longa. É um processo que não seria bem conduzido se fosse apenas objeto de discussões na especialidade. É importante tê-las agora. E é isso que está acontecer.
Por falar em autárquicas, sem Rui Moreira no Porto, o PS arrisca-se a ter uma vitória “poucochinha”?
Sem Rui Moreira no Porto, o PS passa a ter uma coisa que não tinha antes: uma candidatura própria.
Então está satisfeito com o desenrolar deste processo?
É conhecido que havia um projeto conjunto no qual o PS acreditava. Inviabilizado esse acordo, o PS vai sozinho e tem trunfos e argumentos suficientes para se valorizar com uma candidatura autónoma. Parece-me que uma parte significativa do trabalho que foi feito e que os portuenses valorizam está diretamente relacionada com a vereação socialista. Isso é um ativo eleitoral.
E o PS tem condições para ganhar no Porto?
Tem condições para ter um bom resultado. Veremos.
Olhando para as legislativas. O PS está à espera da maioria absoluta?
O PS está comprometido em cumprir o seu programa e fazer aquilo que os portugueses não viam há muito tempo: um partido comprometer-se com uma agenda e, de facto, executá-la e mostrar resultados. Estou seguro que se fizermos isto como estamos a fazer, teremos um excelente resultado nas legislativas.
Uma maioria absoluta, portanto?
Parece-me uma discussão pouco relevante, neste momento.
Ainda assim, deixe-me perguntar: o PCP, mas sobretudo Bloco, têm reclamado as conquistas da atual solução política como suas. Os partidos mais à esquerda vão dizendo que, sem eles, não era possível, pedindo mais peso eleitoral. Como é que o PS vai conseguir capitalizar em votos os seus próprios méritos?
Acho que os portugueses sabem valorizar a solução política que existe hoje e sabem que o Governo tem feito um bom trabalho e sabem que esse bom trabalho do Governo é, em parte, mérito da maioria que o apoia. Mas não serei eu a dar lições ao Bloco e ao PCP quanto ao mérito coletivo de resultados. Esses partidos saberão melhor do que eu que estes projetos quando são feitos, os méritos são de todos.
Marcelo Rebelo de Sousa veio sugerir que o crescimento do PIB e a saída do PDE era um mérito deste e do anterior Governo. Irrita-o esta posição salomónica do Presidente da República?
Não. Compreendo-a, porque o Presidente da República tem tido uma preocupação permanente de unir os portugueses. Mas, neste caso, recordo-me sempre que, quando assumimos funções, o que havia era um processo que poderia conduzir a sanções contra Portugal por incumprimento das obrigações em 2014 e em 2015. Nós conseguimos evitar isso e apresentar os resultados que o Governo anterior nunca apresentou. Os méritos são sempre de muitos, mas há uma coisa que sei: o que foi dito foi que com este Governo não era possível. E foi. Acho que isso basta.
Sobre a questão da reestruturação da dívida. O Governo já transmitiu à bancada do PS alguma conclusão sobre o relatório do grupo de trabalho?
Não.
E não tira ilações sobre isso? Fica a sensação de que a montanha pariu um rato…
O que sempre dissemos foi que a maioria das propostas daquele relatório depende da ação do próprio Executivo e será o poder Executivo a decidir quando e em que termos é que elas devem acontecer…
Um Executivo do PS…
Sim, mas o Governo é que é responsável por conduzir a política externa. O que dizemos é que há aqui um conjunto de medidas que seriam benéficas para Portugal e já agora para a Europa. O timing exato, o modo e em que termos o Governo coloca essa questão, isso é uma responsabilidade exclusiva do Governo.
Sim, mas o PS tem a competência de fiscalizar a ação do Governo…
Mas quem tem o poder de propor o que quer que seja aos seus parceiros europeus é o Governo, e, portanto, deixaremos o Governo a tratar com a autonomia que lhe é própria.
De acordo com uma notícia do Público, os eurodeputados portugueses — incluindo os do Bloco — não quiseram levar o relatório a Bruxelas. Ou seja se, não for para Bruxelas, e se o Governo não se vincula nem se compromete com o relatório, este documento serve para quê exatamente?
Este é um contributo para aquilo que nós entendemos ser a condução da nossa política externa, nomeadamente, nas negociações sobre o futuro da zona Euro e da União Europeia. A dívida é e continuará a ser um problema coletivo da União Europeia. Esta questão irá colocar-se no futuro e a única coisa que quisemos fazer foi dar munições ao Governo para que, quando essa discussão ocorrer, nos termos e nos timings em que ocorrer, o Governo possa ter mais elementos para participar nessa discussão.
Mas faltam resultados práticos.
Os resultados práticos acontecerão quando essa discussão ocorrer.
Seja como for, a saída do PDE coloca uma pressão adicional ao Estado. A dívida, não no imediato, é certo, terá de ser paga a um ritmo muito mais acelerado (um vigésimo do excedente dos 60%, como prevê o Pacto de Estabilidade e Crescimento. Esse é mais um argumento de peso para aqueles que defendem a renegociação?
Esse é um argumento de peso para continuar os bons resultados que temos hoje, de redução do défice e de aumento do crescimento, e também de dizer que, apesar de Portugal estar a fazer a parte que lhe compete, o problema da dívida subsiste e transcende Portugal. É por isso que sempre dissemos que esta é uma questão europeia e que deve ser tratada de forma multilateral. É uma reforma estrutural de que a Europa precisa, não só para ajudar os devedores, mas para ajudar os credores — desde que tenham a visão iluminada para perceber que este é um interesse de todos.
Uma última pergunta. Ascenso Simões, deputado do PS, dizia há dias, em entrevista à Sábado, que este José Sócrates ainda era o melhor primeiro-ministro — melhor do que António Costa, inclusive. Subscreve esta análise?
Não vou comentar.