(Esta reportagem foi publicada pela primeira vez a 18 de dezembro de 2021, depois da detenção de João Rendeiro. É republicada agora depois da notícia da morte do antigo banqueiro na prisão sul-africana onde aguardava a decisão do processo de extradição.)
O ecrã gigante na sala do gerente do Forest Manor é o primeiro sinal de que não estamos numa guest house como as outras. 14 pequenos retângulos transmitem, a todo o instante, as imagens recolhidas pelas câmaras de vigilância espalhadas por toda a mansão onde João Rendeiro passou os últimos dias de liberdade. Mas a segurança apertada não fica por aqui — ainda que a porta da sua suite, onde o Observador esteve um dia, não lhe permitisse muita privacidade.
Um muro bege, de mais de dois metros de altura, separa o mundo exterior daquele espaço com sete quartos — entre eles, o quarto onde o antigo banqueiro tentou esconder-se e ficar a salvo das autoridades. Por cima do muro, uma cerca eletrificada reforça a linha de defesa. Para entrar, é preciso premir o botão do intercomunicador e esperar que, lá dentro, o gerente confirme os dados da reserva para pernoitar ali. Só depois o pesado portão começa a correr para a esquerda.
João Rendeiro saiu de Portugal num voo que partiu de Lisboa a 14 de setembro. Primeiro destino: Londres. Depois, o Qatar. A seguir, África do Sul. Em concreto, Joanesburgo, a maior cidade do país. Era mais um entre quase um milhão de habitantes. E, já próximo de um destino que não imaginava que pudesse ser seu o último em liberdade, Durban, no extremo este da África do Sul.
No tempo que passou no luxuoso Forest Manor Guest House, o ex-banqueiro usou sempre o nome próprio. “João”. É assim que os empregados o conhecem por ali — mesmo que o seu rosto aparecesse com insistência nas televisões e jornais portugueses, a 12 mil quilómetros de Lisboa, o antigo homem forte do Banco Privado Português parecia não antever que pudesse ser detetado pelas autoridades sul-africanas. Estava demasiado longe. Mas mantinha alguns cuidados. Para telefonar a amigos ou à mulher — em prisão domiciliária em Portugal —, usava complexos sistemas de encriptação de comunicações. O que não foi suficiente.
Na manhã do último sábado, 11 de dezembro, por volta das 5 horas da manhã, os elementos dos South African Polica Services — os SAPS, polícia do país — entraram pela mansão do exclusivo bairro de La Lucia. Para chegar ao quarto de Rendeiro, passaram a sala do gerente, a primeira à direita, e subiram a escada em caracol que conduz ao primeiro andar; já no piso superior, seguiram, percorreram os quatro metros até chegar à porta branca com a placa “Forest Mahogany”.
Nem teriam precisado de bater à porta para aceder ao quarto, um contrassenso naquele forte à prova de intrusos. Apesar dos botões de “segurança” instalados no interior e que deveriam permitir um desbloqueio rápido da porta, a verdade é que o quarto não pode ser trancado a partir do interior. Não há chave, não há sistema de defesa para entrar no esconderijo mais restrito do antigo banqueiro português, que acabou por ver recusado o pedido de libertação com caução. Rendeiro iria esperar que as autoridades judiciais sul-africanas avaliassem o pedido de extradição de Portugal na prisão de Westville, um complexo prisional a menos de 30 quilómetros de distância dali, sub-dimensionada para os milhares de presos que cumprem ali pena. Um complexo onde se repetem as notícias de esfaqueamentos (entre reclusos e contra guardas prisionais), onde a corrupção é a regra básica para a sobrevivência diária e onde as mais básicas condições básicas de higiene e o acesso a cuidados de saúde simplesmente não existem.
Escondido num bairro de luxo de Durban
16 de dezembro, feriado nacional, é o dia que os sul-africanos escolheram para celebrar a reconciliação pós-apartheid entre afrikaners e os grupos que lutaram pelo fim do regime. A data é assinalada todos os anos desde 1995. No dia em que o Observador pernoitou no esconderijo de Rendeiro, havia festa na guest house de La Lucia. Não havia música mas os convidados — família e amigos de uma das funcionárias do espaço — iam chegando, serviam-se das entradas, frutas e do enorme bolo com chantilly preparado pelas cozinheiras da casa, indiferentes ao episódio ocorrido pouquíssimos dias antes.
“Portuguese banker? Never saw him” [Banqueiro português? Nunca o vi por aqui], atira uma das empregadas da mansão quando lhe perguntamos sobre João Rendeiro e a sua passagem pelo Forest Manor. “Devia estar de férias porque nem sei bem de quem fala”, ainda acrescenta antes de voltar a refugiar-se na cozinha. É um não-assunto por ali. Ou um assunto tabu. “Sobre essas questões, só o meu gerente é que pode esclarecê-lo”, diz Lorraine, a responsável pela gestão do espaço quando o gerente não está. “Fazia as refeições aqui?”, “Houve algum amigo que aparecesse por cá?”, “Que hábitos tinha no tempo em que esteve hospedado?.” E as palavras saem-lhe uma e outra vez, sempre a mesma resposta a cada nova investida. “Tem de parar de fazer-me essas perguntas”, remata, por fim.
Nem sempre os funcionários da guest house são tão contidos na conversa sobre Rendeiro. Paulo e Helena vivem em Pretoria. Por estes dias, estão instalados no Forest Manor, para uns dias de férias. “Uma das senhoras do hotel ficou surpreendida quando disse que tinha raízes em Portugal. Perguntou-me se já tinha ouvido falar da história do banqueiro português que foi preso aqui. ‘Eu não quero saber nada disso!’, respondi-lhe logo”, conta a mulher em português ao Observador, sentada onde todos os dias é servido o pequeno-almoço. Pão torrado — branco e escuro —, ovos mexidos, bacon, chás, café acabado de fazer. Nada de muito extravagante, uma seleção até algo austera. Nada que combine com aquela vista, de que João Rendeiro pode ter desfrutado todas as manhãs, com a piscina ao fundo e, do lado esquerdo, junto à parede, um aquário de três metros de comprimento onde três gigantes peixes de água doce dividem o espaço. O som das três quedas de água só é interrompido pelo do corta-relvas que um funcionário madrugador teima em operar, na mansão ao lado.
Paula não conhece a história de Rendeiro. “Roubou milhões de euros? Oh meu Deus, que história!” As funcionárias retraem-se perante a insistência no tema e não voltam a aparecer mais por ali. Mas não é só entre o staff que o tema esbarra no silêncio. O porta-voz nacional da polícia sul-africana também se recusa a dar detalhes sobre a operação que ditou o fim de uma fuga às autoridades portuguesas que se arrastou durante quase três meses. “Não posso dar-lhe detalhes sobre a operação. Não é a primeira vez que a África do Sul é usada como refúgio por pessoas que tentam escapar à Justiça dos respetivos países e, certamente, não será a última. Se lhe dissesse como decorreu a detenção estaria a dar pistas a outros que, no futuro, fizessem o mesmo”, diz ao Observador o brigadeiro Vish Naidoo.
Certo é que os últimos dias de Rendeiro foram passados dentro daquele pequeno forte, escondido num bairro que fica a meia centena de metros da linha de costa, onde o continente africano toca o oceano índico. A polícia chegou à mansão, deteve Rendeiro e conduziu-o à esquadra de Durban North, a menos de 10 minutos de distância dali. Depois de sair do quarto, o banqueiro desceu a escada em caracol até ao piso térreo, já não passou pela sala de estar nem pela zona do bar. Foi direto à porta e saiu: 20 passos, pouco mais que isso, desde a porta do quarto até ao carro em que foi levado para a esquadra. Alguns elementos da SAPS ficaram para trás a passar uma revista minuciosa no quarto. Não ficou nada para trás.
“Apenas para emergências”
No final de novembro, o antigo banqueiro, que foi condenado a cinco anos e oito meses de prisão por falsidade informática e falsificação de documento — e com outros processos próximos de esgotar as hipóteses de recurso em tribunal —, deu uma entrevista à CNN. Nessa entrevista, Rendeiro contou que fazia uma vida relativamente “normal”, que ia à praia, ao ginásio, que até já tinha falado português no local onde se encontrava e que fazia gastos entre os três e os cinco mil euros por mês.
Essa entrevista foi concedida à estação de notícias na sala em frente ao quarto que ocupava na Forest Manor Guest House. Um espaço com cerca de 20 metros quadrados, uma modesta biblioteca na parede à esquerda e pontuada por algumas peças de figuras africanas em cima da mesa de vidro. De frente para a porta de entrada da sala, um quadro de cerca de dois metros com a fotografia de uma mulher tribal recebe quem ali entra. Para a entrevista, Rendeiro fechou as cortinas da janela à direita, pousou o portátil sobre a mesa de vidro e falou pela primeira vez em público desde o início da sua fuga.
Na noite em que foi detido, essa sala foi a primeira imagem com que se deparou ao sair, pela última vez, do quarto que reservou naquela mansão. Um quarto batizado de “Forest Mahogany” — uma árvore típica daquela região africana. A árvore que via sempre que passava pela janela do quarto de banho. A outra janela, frente à cama e com vista para o pátio e para a piscina da casa, devolvia-lhe também a imagem do muro bege, das câmaras de videovigilância (uma delas, apontada diretamente para o seu quarto) e do arame eletrificado a toda a volta do edifício.
Na primeira gaveta da mesa de cabeceira, do lado direito da cama king size, dois detalhes incontornáveis: uma bíblia de capa grossa de um azul claro, com ligeiros sinais de uso, e um comando remoto com um botão vermelho e uma placa agarrada onde se lê a indicação “emergency only” [apenas para emergências].
Outro detalhe. Aos olhos de todos, João Rendeiro esteve desaparecido desde meados de setembro e só voltou a ser visto no final de novembro, antes de ser finalmente detido no último sábado. Mas as notícias sobre o ex-banqueiro não paravam de surgir e o rosto esteve, de uma forma constante, presente nos jornais. E nas televisões. Muitas vezes na RTP. No quarto da Forest Manor, bastava que o antigo presidente do BPP premisse os botões 4-3-5 do comando da televisão para que no ecrã surgissem as iniciais da estação pública de televisão portuguesa: RTP.
Esse privilégio terminou na madrugada do dia 11 de dezembro.