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Uma decisão que não desagradou particularmente a ninguém. Esta sexta-feira, o Tribunal Internacional da Justiça (TIJ) pronunciou-se pela primeira vez sobre o processo interposto pela África do Sul, que acusa Israel de levar a cabo um genocídio na Faixa de Gaza. Por agora, a instituição jurídica pertencente à Organização das Nações Unidas (ONU) sublinha que ainda é demasiado cedo para retirar “conclusões definitivas” — o conflito ainda nem sequer terminou. Mesmo assim, é certo que o TIJ vai investigar as acusações da prática de atos genocidas e aplicou medidas provisórias, ainda que não tenha sido ordenado um cessar-fogo.
A investigação e as medidas que o Tribunal Internacional da Justiça aplicou agradou ao Hamas, à Autoridade Palestiniana e à África do Sul. Os três realçam que se tratou de uma “vitória” judicial que servirá, esperam, para responsabilizar Israel pelos alegados crimes que lhe são imputados. Isto porque, com esta decisão, o TIJ não deu provimento ao pedido de Israel para que o caso fosse encerrado.
A reação israelita não tardou. Num comunicado, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu deixou duras críticas às acusações relativas à alegada prática de genocídio pela parte de Israel. “Não são apenas falsas, como também ultrajantes. Pessoas decentes devem rejeitá-las”, disparou o chefe do executivo, lembrando o Holocausto e também o que ocorre este sábado, em que se assinala o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto.
Benjamin Netanyahu devolveu as críticas de genocídio, acusando o Hamas de ser “uma organização genocida terrorista”. E esclareceu que a guerra que Israel começou na Faixa de Gaza é dirigida a “terroristas do Hamas” e não “contra civis palestinianos”, descartando-se, por conseguinte, um genocídio. “Vamos continuar a facilitar assistência humanitária e fazer de tudo para manter os civis fora disto, mesmo que o Hamas use civis como escudos humanos”, assegurou o primeiro-ministro de Israel.
O entendimento do tribunal é, não obstante, diferente, tendo dado provimento à maioria das queixas sul-africanas. Dezasseis dos 17 juízes da instituição jurídica (incluindo o magistrado israelita do coletivo) ordenaram que Israel permita que seja entregue assistência humanitária à Faixa de Gaza, que “evite e puna” a “incitação ao genocídio” e que previna as ações que possam ser consideradas genocídio.
Porque é que o Tribunal avançou com o processo de genocídio?
Após ter deliberado que dispunha de jurisdição para julgar o caso, e que vai avançar com uma investigação, o Tribunal Internacional de Justiça explicou os motivos pelos quais o fez, sempre com uma ressalva. “Nesta altura dos procedimentos, o Tribunal não é chamado a determinar definitivamente” as queixas da África do Sul sobre a prática de genocídio. A instituição jurídica apenas decidiu esta sexta-feira se era “plausível” ordenar medidas provisórias.
Estabelecendo o povo palestiniano como um grupo “nacional, étnico, racial e religioso” e “por conseguinte um grupo protegido pelo artigo II da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio”, os 17 juízes lembraram a “operação militar que está a ser conduzida por Israel após os ataques [do Hamas] de 7 de outubro de 2023”. Quase quatro meses volvidos, a ofensiva israelita causou “a destruição massiva de casas, o deslocamento forçado da vasta maioria da população e danos à infraestrutura civil”.
Além disso, no que concerne às acusações de genocídio, o TIJ recordou várias declarações polémicas — que podem significar a prática de incitação ao genocídio — de alguns dirigentes israelitas, principalmente no início da operação militar. Por exemplo, os 17 juízes indicaram que o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, disse que o país estava a lutar “contra animais humanos”. “Gaza não vai regressar ao que era antes. Não haverá Hamas. Vamos eliminar tudo. Se não demorar um dia, pode demorar uma semana, pode demorar semanas, mesmo meses, vamos chegar a todos os lados”, afirmou o chefe da diplomacia israelita em meados de outubro.
Esta retórica de desumanização dos palestinianos, juntamente com a operação militar, levou o Tribunal a entender que “pelo menos algumas” das queixas apresentadas pela África do Sul eram “plausíveis”, tomando-se por isso medidas provisórias. “O Tribunal considera que, pela sua natureza, pelo menos algumas das medidas provisórias pedidas pela África do Sul têm como objetivo preservar os direitos [dos palestinianos] e têm como base a convenção de genocídio”, argumentaram os juízes.
Assistência humanitária e incitação ao genocídio: os pontos em que o tribunal deu razão à África do Sul
A queixa sul-africana continha nove pontos e praticamente todos foram acolhidos pelo TIJ, que decretou medidas para esse efeito. Por exemplo, Pretória pediu que fossem tomadas “todas as medidas para prevenir o genocídio”; já quinze dos juízes (dois votaram contra) apelaram que Telavive “tomasse medidas ao seu alcance para prevenir todos os atos que podem” ser considerados genocídio.
Seguidamente, a África do Sul pedia que Israel garanta que não “comete qualquer ato que possa ser descrito” como “incitamento público para cometer genocídio, conspiração para cometer genocídio e cumplicidade em genocídio”. Por sua vez, o Tribunal ordenou que Israel tome “todas as medidas ao seu alcance para prevenir e castigar o incitamento público e direto para cometer genocídio”.
Pretória pedia também que Israel “desistisse e tomasse todos as medidas ao seu alcance” para permitir o “acesso a assistência humanitária, incluindo acesso a combustível, guarida, roupas, higiene e saneamento” à população de Gaza. Já o TIJ decretou que o Estado de Israel tome “medidas imediatas e eficazes para permitir que sejam providenciados os serviços básicos e assistência humanitária para sobreviver as condições de vida adversas que os palestinianos na Faixa de Gaza enfrentam”.
Adicionalmente, a África do Sul apelava a que Israel tomasse “medidas eficazes para prevenir a destruição e garantir a preservação de provas relacionadas com os alegados atos” de genocídio. Em sentido praticamente idêntico, o Tribunal Internacional de Justiça ordena que Telavive “tome medidas eficazes para prevenir a destruição e garantir a preservação das provas”.
Para assegurar que estes pontos estavam a ser cumpridos, a África do Sul pedia que fosse “submetido um relatório ao Tribunal” com todas medidas tomadas. Ora, o TIJ decretou que Israel apresentasse efetivamente um relatório, mas apenas num espaço de um mês.
O cessar-fogo e a linha ténue com a legítima defesa
Dois dos pontos da queixa sul-africana não foram admitidos pelo TIJ: um cessar-fogo e o fim de todas as operações militares por parte de Israel na Faixa de Gaza. A instituição jurídica não se pronunciou diretamente sobre o assunto, mas na introdução do caso lembrou: “O tribunal começa por recordar o contexto de caso antes de 7 de outubro. Hamas e outros grupos armados presentes na Faixa de Gaza levaram a cabo um ataque em Israel, matando mais de 1.200 pessoas, ferindo milhares e raptando 240 pessoas, muitas das quais continuam em cativeiro.”
Com esta indicação, o Tribunal Internacional de Justiça sugere que a operação militar israelita poderá ter ocorrido em legítima defesa. No comunicado emitido depois da decisão judicial, Benjamin Netanyahu enfatiza precisamente esse ponto. “Como todos os países, Israel tem o direito de se defender. A tentativa vil de negar a Israel este direito fundamental é discriminação cabal contra o Estado judeu e isso foi rejeitado”, frisou o primeiro-ministro de Israel.
Tendo em conta as críticas à atuação israelita, por que motivo o TIJ não pediu um cessar-fogo? De acordo com o que explicou Antonios Tzanakopoulos, professor de Direito Internacional Público em declarações à Sky News, isso significaria a abertura de um precedente de que todas as operações em Gaza levadas a cabo por Israel seriam uma violação do Direito Internacional, colocando em causa o princípio da legítima defesa, argumento que Telavive utiliza para o início da operação militar.
“Provavelmente, levará anos para o tribunal dizer que Israel deve parar a operação militar completamente”, especula Antonios Tzanakopoulos, acrescentando que isso será um “passo muito grande”.
No mesmo sentido, Kate Cronin-Furman, professora universitária especialista em atrocidades e direitos humanos, defendeu, ao New York Times, que “ninguém esperava que fosse ordenado um cessar-fogo”. “Eles fizeram algo muito próximo às medidas provisórias [do processo] da Gâmbia contra o Myanmar”, no qual o país africano acusava o asiático de genocídio contra a minoria Rohingya.