Continua a dor de cabeça de André Ventura. A cerca de nove meses de umas eleições importantes para o partido (atendendo às expectativas que o próprio líder criou), continua sem existir um candidato óbvio às eleições. Pelo contrário. António Tânger Corrêa pode ter dado um passo em falso quando disse ter a “certeza” de que tinha o perfil certo para o cargo, o tipo de sugestões que não costuma agradar ao líder do Chega, e António Pinto Pereira, ex-dirigente do PSD, tem vindo a ganhar um protagonismo que deixa a porta escancarada para se poder tornar no cabeça de lista do partido às eleições europeias.
Há quatro meses o processo era aparentemente menos complicado aos olhos do presidente do Chega, que apontava setembro como o mês em que teria a escolha do candidato fechada. Agora, fonte do partido assegura ao Observador que só depois das eleições da Madeira, a 24 deste mês, haverá tempo para pensar nas europeias a fundo, ainda que não só o perfil como o nome do candidato já tenham sido debatidos ao longo dos últimos meses em vários fóruns dentro e fora do Chega — e as dúvidas são muitas. O processo só estará concluído mais perto do fim do ano e a última palavra será, como sempre, de André Ventura.
O Chega vai pela primeira vez a votos numas eleições europeias — em 2019 falhou a primeira tentativa e acabou integrado na coligação Basta que não elegeu qualquer eurodeputado, mesmo com Ventura a cabeça de lista — num cenário com várias incógnitas para o partido. Se, por um lado, numas eleições de voto tendencialmente mais livre o Chega pode beneficiar de uma possível penalização do PS, de um PSD que não tem sido capaz de se afirmar nas sondagens e da provável saída dos eurodeputados de CDS e PAN, o partido também receia uma forte mobilização de eleitores para partidos que vão a jogo com “pesos pesados”. E, neste sentido, a estratégia está alinhavada: com Ventura fora do boletim de voto é preciso um rosto forte que carregue o nome do Chega.
Fonte da direção do partido recorda dois dos nomes que têm sido apontados a cabeças de lista às europeias — João Cotrim Figueiredo pela IL e Catarina Martins pelo Bloco de Esquerda — para defender a necessidade de, “ainda por cima sem André Ventura como candidato”, o Chega “ir buscar alguém conhecido” para conseguir um bom resultado nas eleições, até porque o presidente do Chega estabeleceu como meta a conquista de 15% dos votos. A questão é quem.
No núcleo duro há muito que se discutem três cenários: a aposta num deputado em funções, pela visibilidade que tem no partido e a nível nacional; alguém que faça parte do partido e que tenha um perfil e currículo adequado ao cargo, ainda que possa não ser tão conhecido; ou alguém de fora do partido que seja mediático e com um perfil de tal forma adequado que convença partido e eleitores — e esta hipótese ganha força se essa pessoa decidir entrar no partido.
Todas as premissas que estão em cima da mesa têm riscos associados — no caso dos deputados o Chega admite que pode não ser positivo tirar alguém do Parlamento e enviá-lo para a Europa, mais ainda quando teria de ser um dos nomes mais conhecidos para criar impacto — e é exatamente por essa razão que não há um nome ultimado na cabeça de André Ventura (e que já houve até várias mudanças nas preferência).
Ainda assim, há um que tem vindo a ganhar muita força nos últimos tempos: António Pinto Pereira. Chegou a ser apontado como candidato do PSD e CDS à presidência da Câmara de Sintra nas autárquicas de 2021 (mas acabou substituído por Ricardo Batista Leite), é advogado (foi o rosto da defesa das vítimas no processo da Casa Pia), constitucionalista (ajudou a preparar a proposta de revisão constitucional do Chega quando ainda não tinha qualquer ligação ao partido) e comentador em programas de televisão, um perfil que parece encaixar como uma luva para um cabeça de lista do partido. Até pela dificuldade que o Chega tem em afirmar-se mediaticamente, em particular na televisão, quando não se trata da presença de André Ventura.
“Vou entregar a minha espada para combater por Portugal”
Fonte da direção do Chega ouvida pelo Observador reconhece que o protagonismo dado a Pinto Pereira nos últimos tempos pode ter como foco as eleições europeias, mais ainda quando o advogado resolveu juntar-se formalmente ao partido no final de agosto. Por outras palavras: se Pinto Pereira já tinha um perfil adequado para o desafio antes da filiação, torna-se um candidato perfeito no dia em que entra formalmente no Chega.
De resto, Pinto Pereira não poupou elogios ao partido de André Ventura quando decidiu anunciar publicamente a intenção de se juntar ao Chega. Reconhecendo ter uma “admiração incondicional” por Ventura, elogiou os dirigentes do partido, disse serem “os únicos que querem e conseguem mudar Portugal” e prometeu “entregar” a sua “espada” para “combater” pelo país.
Vou para o CHEGA!
É a minha primeira decisão depois deste aniversário.
Há um ano que tenho tido várias intervenções académicas a convite do CHEGA. Fiquei a conhecer melhor o Doutor André Ventura, por quem hoje tenho uma admiração incondicional, e gosto muito de todos os que… pic.twitter.com/t2aOHVPRzD
— António Pinto Pereira (@a_pinto_pereira) August 27, 2023
Num curto espaço de tempo, Pinto Pereira ganhou enorme destaque na vida do Chega. Foi um dos protagonistas da Academia de Verão da Juventude Chega — cujo tema era exatamente a Europa — e logo de seguida deu uma entrevista ao jornal do partido, o Folha Nacional, onde assumiu que não lhe agradou o que viu no PSD, garantindo que a filiação no Chega era mesmo uma “mudança de vida para melhor” — mesmo nunca tendo sido “tão ofendido e atacado” como agora.
A ascensão de Pinto Pereira começa a sentir-se paulatinamente. Ao contrário da intervenção de Tânger Corrêa, por exemplo, a intervenção de Pinto Pereira na Academia de Verão da Juventude Chega foi partilhada no canal de YouTube do partido (Chega TV), onde apenas foram publicados os vídeos de André Ventura, de Rita Matias, líder da juventude e responsável máxima pelo evento, e dos dois membros da direção com pelouros nas relações internacionais, Ricardo Regalla e Diogo Pacheco Amorim. Ou seja, à exceção dos dirigentes com altas responsabilidades nos temas em causa, apenas Pinto Pereira teve lugar de destaque — e já conta com quase tantas visualizações como André Ventura.
Cinco eurodeputados para o Chega
Pinto Pereira, que admitiu ter chegado a “desconfiar” do Chega, tem-se desdobrado na defesa do partido e de André Ventura, bem como em fazer política ao estilo do seu novo líder. Perante o público da Academia de Verão do Chega, Pinto Pereira sublinhou que quando os jovens começam a votar percebem que “a política é uma vergonha, que os políticos só querem encher os bolsos e viver à conta do Estado e dos impostos do povo”.
E atirou a tudo e a todos, a começar pelo partido em que militou: “Rui Rio foi o pior líder político de que há memória”; “Passos Coelho foi um político sério, mas distante e frio que nunca conquistou o coração dos portugueses e estrangulou os bolsos dos portugueses” e “o PSD é um partido sedento do poder para um dia poder distribuir outra vez cargos pelos amigos”, tendo “um líder [Luís Montenegro] que não combate, que não está no terreno e que não aparece”.
Ainda antes de começar a aula intitulada “União Europeia: significado, contradições e futuro”, Pinto Pereira aproveitou o tempo para dizer que “António Costa não serve notoriamente para Portugal”, que é “pouco nobre e que não quer saber de Portugal”. “É o campeão da distribuição de cargos públicos pelos amigos”, acusou o advogado, acrescentando que foi o “político bem-falante que levou o país à bancarrota, que negou o futuro em Portugal e que fez com que as gerações mais novas estejam a emigrar com uma intensidade nunca vista e com [que] as pessoas [estejam] a viver numa situação de dificuldade económica”, foi repetindo.
Como um dos oradores da academia que tinha como tema “Quo Vadis Europa?” (“Para onde vais, Europa?”, em português), Pinto Pereira deu uma longa aula sobre a União Europeia e sobre os desafios que enfrenta, porém também fez contas às possibilidades do Chega nas eleições europeias: “Não será difícil chegar a bons resultados.”
Segundo o putativo cabeça de lista do partido às europeias, PS e PSD “podem sofrer um voto de protesto nas europeias e perder facilmente um deputado cada um”; “o PCP pode perder no mínimo um”; e “CDS e PAN não é credível que elejam um único deputado”. Ou seja, dizia Pinto Pereira, o Chega podem, “sem grande dificuldade”, a eleger “pelo menos cinco eurodeputados, que é quase tanto como o PSD conseguiu nas últimas eleições” — uma ambição considerável para um partido que tem apontado para a eleição de dois eurodeputados e que continua a sonhar com o terceiro.
O candidato a candidato argumentava também que as eleições na Europa eram um prova de fogo para o Chega por acreditar que um bom resultado permitiria uma credibilização e uma institucionalização do partido a nível nacional. Pinto Pereira explicou que o partido pode ter um “resultado muito expressivo” e que este é importante para “mostrar no país que é uma força política credível para governar o país com André Ventura”.
O “eterno candidato” passou para segundo plano?
António Tânger Corrêa há muito que é visto como o putativo candidato do Chega às eleições europeias. A vida política marcada pelo peso no CDS e a carreira diplomática do vice-presidente de Ventura coloca-o no topo dos mais óbvios candidatos do Chega a umas eleições como as europeias — é o “eterno candidato”, resume um alto dirigente nacional.
E as respostas foram sendo confirmadas nas entrelinhas por vários membros do partido sempre que a pergunta surgia. Questionada sobre o nome de Tânger Corrêa na última convenção do Chega, Rita Matias dizia numa entrevista ao Observador que “há muitos perfis, no Parlamento e nas estruturas do partido, com uma grande craveira e um grande passado na área de representação de Portugal ao nível de embaixadas”, assumindo que Tânger poderia ser [uma opção]”. O deputado Bruno Nunes, também numa entrevista ao Observador, notava que, entre “muitas pessoas com currículo europeu” do partido, Tanger Corrêa era “o primeiro vice-presidente do partido, um homem de confiança do André Ventura desde o primeiro dia, embaixador, com currículo”.
Parecia um fato à medida que só faltava anunciar. Mas o óbvio tornou-se um cenário atirado para segundo plano, desde logo devido à entrevista que António Tânger Corrêa deu ao programa Vichyssoise, no Observador, onde não só dizia estar “obviamente disponível” para ser o cabeça de lista do Chega às europeias como assumia ter o perfil certo, acrescentado até que já tinha feito coisas “mais difíceis”.
“Já fiz várias campanhas, fui diretor de promoção de campanha da Aliança Democrática (AD), fui diretor no CDS de imagem e comunicação, é claro que era mais novo, mas também estava menos maduro do que estou agora. Uma coisa talvez compense a outra. Se tenho o perfil? Tenho, com certeza. Fiz coisas muito mais difíceis durante a minha carreira do que ser deputado europeu”, assegurava.
O Observador sabe que o posicionamento demasiado voluntarioso de António Tânger Corrêa não caiu bem no seio de alguns dirigentes, principalmente pelo facto de no Chega haver uma regra de ouro: André Ventura escolhe os candidatos às eleições — sempre foi assim e ninguém o contesta. O líder do Chega apresenta e discute as opções com a direção, mas a última palavra pertence-lhe.
Tânger Corrêa não se anunciou como candidato, mas disse com todas as letras que tem o perfil certo para o desafio — uma sugestão de que seria o candidato ideal. Mais do que isso, também a forma como se distanciou das palavras de Diogo Pacheco Amorim (“A nossa cor de origem é branca e a nossa raça é a raça caucasiana”) não agradou ao núcleo duro de Ventura.
“Obviamente que uma pessoa que vive no estrangeiro uma vida inteira tem uma perceção das coisas diferente daquela que nunca saiu de um determinado sítio”. “Eu convivi com colegas, amigos, com seres humanos das mais diversas origens. Nunca fiz qualquer distinção desse sentido. Em casa fui educado a não o fazer, porque era profundamente errado, e continuo sem o fazer”, acrescentou nessa entrevista — palavras que não agradaram aos mais próximos de um dos homens fortes de Ventura.
Um membro da direção assegura ao Observador que, por si só, a entrevista não tira Tânger Corrêa da corrida ao lugar, mas reconhece que André Ventura pode não estar totalmente confortável com a escolha para o cargo em causa e que essa convicção crescente pode ter deixado mais espaço para a afirmação de Pinto Pereira.
Deputados, um cenário cheio de incógnitas
Um dos cenários que se mantém em cima da mesa é a aposta num dos deputados do Chega em funções para a Europa. Um elemento do núcleo duro de Ventura explica que esta hipótese só faria sentido se fosse uma aposta para o primeiro lugar na lista. “Não se tiraria um deputado do Parlamento para ser número dois”, sublinha a mesmo fonte, tendo em conta que uma estratégia destas apenas aconteceria com um nome suficientemente forte para fazer a diferença na campanha — em que Ventura não vai abdicar de ter um lugar de destaque.
Um dos nomes que salta à vista é o de Rita Matias: deputada, jovem, mulher, responsável pela Juventude Chega e uma das figuras mais bem sucedidas dentro do partido. Se muitos consideram que seria uma aposta certeira para a Europa, é praticamente consensual que seria uma “grande baixa” na Assembleia da República. E apesar de a próxima na lista por Lisboa à Assembleia da República ser também uma mulher, Sofia Dinis, saída de Rita Matias deixaria um vazio difícil de preencher. Não é um cenário totalmente fechado, mas será pouco provável que Ventura envie um forte ativo para Bruxelas.
Segundo membro da direção do Chega, aposta no deputado que tem a pasta dos Assuntos Europeus, Bruno Nunes, também não será uma solução totalmente afastada. Porém, a relação custo-benefício dessa escolha pode não convencer. Se Rita Matias permitiria que o Chega fosse pela primeira vez a eleições de âmbito nacional com uma cabeça de lista mulher — o que pode pesar na decisão de Ventura —, a saída de Bruno Nunes acabaria apenas por deixar a bancada mais fraca quando o partido pode apostar noutro candidato.
Confiança e lealdade são palavras de ordem para André Ventura, que já as usou na construção da bancada e têm um peso ainda maior quando tem um núcleo duro dividido e uma oposição que procura ganhar espaço novamente (mas que falhou nas distritais do Porto). O líder do Chega é o detentor da última palavra relativamente à equipa com que se quer estrear na Europa e, entre cenários e riscos, outra das hipóteses, já usada no passado por outros partidos políticos, é a possibilidade de Ventura usar Bruxelas como exílio dourado para alguém que não queira por perto — algo que só faria sentido para acalmar lutas internas ou travar aproximações ao poder (se as sentir na pele).