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“Tem certos dias
em que eu penso em minha gente
e sinto assim
todo o meu peito se apertar
porque parece
que acontece de repente
feito um desejo de eu viver
sem me notar”
Assim ouvia Pedro Lamares nos auscultadores. A ver pela primeira vez os subúrbios do Rio de Janeiro, através da janela da carrinha de produção, o ator português sobrepunha naquele momento as duas experiências do eu poético da letra da canção “Gente Humilde”, de Chico Buarque – a experiência imaginária e a experiência real estavam a fundir-se numa só. E isso – em 2006 – foi muito poderoso para o também diseur de poesia, que se encontrava a viver no Brasil para integrar o elenco de uma telenovela. “E e aí me dá/ como uma inveja dessa gente/ que vai em frente/ sem nem ter com quem contar”. E Lamares chorou, chorou copiosamente – “é gente humilde/ que vontade de chorar” –, enquanto ouvia este quinto tema do álbum de 1970 intitulado Chico Buarque de Hollanda — Nº 4.
Após quatro anos, Chico Buarque recebe esta segunda-feira, 24 de abril, o Prémio Camões. É-lhe entregue pelo presidente brasileiro Lula da Silva. O prémio, atribuído à sua obra literária, não foi assinado por Jair Bolsonaro, recusa que Chico considerou na altura como uma dupla premiação. E é o reconhecimento de uma obra ímpar em volta da língua portuguesa e da transformação que o autor consegue a partir e com base nessa mesma língua. Nessa obra, e apesar de trabalho mais do que reconhecido enquanto romancista, é a poesia que tudo manda. É nos versos que tudo começa e acaba e com eles, transformados em canções, que se transformou num dos mais brilhantes artífices da palavra em português. É por ela que recebe agora este prémio.
As obsessões, o desejo e a verdade em cada mentira: este é o samba na literatura de Chico Buarque
De forma espontânea, Pedro Lamares começa a declamar de cor e na íntegra a letra de “Gente Humilde” no meio de uma resposta que está a dar ao Observador a propósito da qualidade poética das letras das canções do Chico. “Lembro-me de me emocionar com essa humanidade e com essa capacidade particularmente comovente de o Chico olhar o outro”, conta. Lamares já tinha tido esta experiência antes, a fazer Interrail de comboio pela Europa. “Lembro-me de estar a passar por subúrbios, a sair de cidades grandes, de ouvir essa canção e de me comover imenso. Depois, no Rio de Janeiro, teve um significado muito especial.”
[“Gente Humilde”, Chico Buarque com Toquinho em 1970:]
Pedro Lamares ouve o cancioneiro brasileiro desde criança, e o contacto com o país não o pôs a olhar de forma diferente para as canções. Pelo contrário, foram as canções que lhe permitiram olhar de uma forma diferente para o Brasil. Já ia contaminado. “Ouvia o cancioneiro brasileiro havia muitos anos – o Chico, o Caetano [Veloso], a [Maria] Bethânia, nomeadamente a Bethânia a cantar Chico, Ney Matogrosso, nomeadamente Ney a cantar Chico, Mônica Salmaso, nomeadamente Mônica Salmaso a cantar Chico”, enumera Pedro Lamares, que no espectáculo com o músico e cantor Rui David, “Como Se Desenha uma Casa”, declama “Cálice”, de Chico Buarque, misturada com “Inquietação”, de José Mário Branco. A sua avó paterna, “a avó Zé”, era grande fã de Ney Matogrosso, tinha até cassetes em VHS com concertos seus. “’Gente Humilde’ conheci inicialmente pela voz da Bethânia”, conta Lamares. Lembro-me inclusive de ler uma entrevista do Chico em que dizia que, quando escrevia, a voz interior que ouvia era a da Bethânia, era a voz ideal para interpretar as suas canções – não a dele.”
O diseur de poesia portuense deixa clara a diferença entre letrista e poeta: a letra do letrista não sobrevive sem ser cantada. “Tiras a música do ‘Let It Be’, dos Beatles – “when I find myself in times of trouble, Mother Mary comes to me/ Speaking words of wisdom, let it be”, ou seja, “quando me encontro atrapalhado, a Mãe Maria vem ter comigo e diz-me palavras de sabedoria, deixa andar” –, e não te sobrou um poema”, explica Lamares. “Uma coisa muito diferente disso é quando tens uma sustentação poética, literária, a servir uma canção ou que é servida por uma canção.”
Destilar o temperamento poético no “formato implacável da canção”
Chico é um poeta. “Se a poesia já tem em si uma proposta de condensação, de aparares tudo aquilo que é excessivo, explicativo, narrativo – é uma espécie de concentração ao átomo, só lá tens o que é absolutamente nuclear –, na letra de uma canção ainda se aplica mais. É ainda mais concentrado. E há uma dificuldade acrescida. Na poesia, pelo menos a partir do século XX, começa a haver o verso livre. Já não tens de obedecer a cânones estruturais. Na canção, tens de fazer aquilo bater em métricas, para que a acentuação da voz, por exemplo, calhe dentro e não fora das sílabas tónicas.”
O poeta e tradutor Vasco Gato, autor de Fera Oculta (ed. Douda Correria), concorda com Pedro Lamares. “Chico Buarque realiza supremamente a aspiração – dos poetas que a têm, claro – de destilar o temperamento poético no formato implacável da letra de canção”, comenta Gato. “Digo implacável porque na letra de canção o meio é mesmo a mensagem. Isto ao contrário do poema, pois há poemas que resultam, por assim dizer, na sua forma escrita, abdicando da sua eficácia em voz alta. Ora, a letra de canção vive justamente dessa eficácia.”
A nível temático, Chico Buarque tem algo de extraordinário para Pedro Lamares, a alteridade. “Ele alteriza-se, sai de si. Ele não escreve só a partir da sua perspetiva, escreve frequentemente em personagem. Escreve na perspetiva do povo, na perspetiva da mulher, na perspetiva do animal. O [Leonard] Cohen, por exemplo, não tem isso. Tudo o que o Cohen escreve é ele a falar.” Leonard Cohen é outro dos cantautores preferidos de Pedro Lamares. “Chico Buarque fundiu a coloquialidade e a elegância, a meditação e a graça, em instantâneos que nos trazem a experiência palpitante da vida pessoal e comunitária”, acrescenta Vasco Gato à questão.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre Chico Buarque.
“Não é por acaso que Leonard Cohen é o ex libris [do poeta cantor], Leonard Cohen é um escritor. Antes de ser cantor, era um poeta e um romancista publicado”, contextualiza Pedro Lamares. Ele próprio a ter-se estreado na escrita de poemas no final do ano passado com a edição de um pequeno livro intitulado Cinco Canções do Avesso e um Poema de Amor (ed. Nova Mymosa), Lamares acredita ser essa a razão por que, ao contrário de Bob Dylan, os nomes do Cohen e de Chico não terão sido colocados como hipóteses para receberem também eles o Nobel da Literatura: têm obra publicada para lá das letras de canções.
Dentro da poesia, espaço para a história de um povo
Chico Buarque foi a primeira referência em termos de música popular brasileira para Francisca Camelo. E não foi pelos livros, mas pelas canções, que a poeta portuense se apaixonou por Chico. Começou a ouvi-lo por osmose, os pais também ouviam em casa cancioneiro português, como Sérgio Godinho e José Afonso. Aos 18 anos, já lhe conhecia a discografia completa. “Foi a primeira vez que tive contacto real com a cultura brasileira que fosse para além das telenovelas”, conta a autora de livros como O Quarto Rosa (ed. Exclamação) ou A Importância do Pequeno-Almoço (ed.Fresca).
“Com o Chico, percebi que, dentro de canções de amor, dentro de canções populares, havia espaço para contar a história de um povo. Uma história que nem sempre foi suave.” A qualidade das letras das canções do músico carioca foi responsável por que a poeta se aproximasse da literatura brasileira. “Hoje, sou absolutamente apaixonada por literatura brasileira, em particular por poesia contemporânea. Não sei se alguma vez teria chegado a essa ala da cultura latino-americana se não fosse através do Chico.”
Um espelho da cultura brasileira, as letras de Chico Buarque refletem também um posicionamento político, uma crítica social. No tema “Geni e o Zepelim”, composto por Buarque para a peça de teatro da sua autoria A Ópera do Malandro (estreada no Teatro Ginástico, no Rio de Janeiro, em 1978), Geni é uma mulher caída em desgraça, é apedrejada pelo povo. A dada altura, chega à cidade um zepelim, do qual sai o comandante, que ameaça destruir a povoação. Propõe a Geni terem sexo mas ela recusa. O povo coage Geni a ceder, promete-lhe mundos e fundos, ela aceita, tem sexo – apesar do asco – com o militar tirano e, no fim, acaba de novo apedrejada pelo povo.
[“Geni e o Zepelim”, ao vivo:]
“Não sou partidário da ideia de que um artista deva necessariamente posicionar-se política e socialmente. Nem acho que a obra, nos casos em que se posiciona, deva ser apreciada ou descartada com base nisso”, defende Vasco Gato. “A sua oposição à ditadura militar no Brasil – que resultaria num auto-exílio [em Itália] – não é plasmada nas letras de um modo panfletário. As letras impregnam-se de conteúdo político e social porque são sondagens de um tempo vivido.”
Em “Construção” (do álbum de nome homónimo, de 1971), um operário coloca um ponto final a tudo o que construiu. Atira-se do alto de um edifício. “O Chico vai desconstruindo, tanto na letra como na música, no arranjo, aquilo vai ficando desconfortável. Aquela desconstrução é próxima da perfeição. Vai juntando o início de umas frases com o final das outras e todas elas se ressignificam”, descreve Pedro Lamares. “A vida vai-se desfazendo, vai-se deslaçando da realidade e da narrativa linear. É feito com um brilhantismo… é Chico Buarque.”
[“Construção”:]
Francisca Camelo serve-se do mesmo exemplo. “Não podemos fugir a uma canção como ‘Construção’. A letra é belíssima, muito simples no seu vocabulário e, ainda assim, é complexa o suficiente ao ponto de ser difícil memorizá-la”, diz. “As voltas que são dadas a essa música, a forma como ele brinca com os duplos significados… Isso é também claro em músicas como ‘Cálice’, ‘Apesar de Você’, ‘Tanto Mar’. O Chico esteve exilado, ele tinha de saber dizer tudo sendo o menos atacado possível. A ironia da poesia dele é maravilhosa.”
“Para ser tão bom, só pode ser Chico Buarque”
As décadas passam e o artista tem sido coerente na sua defesa por uma ideia de democracia. No mais recente Que Tal um Samba?, lançado em 2022, a canção de título homónimo mantém a ironia de que fala Francisca Camelo. Mantém o arrojo, mantém a inconformidade: “um samba pra alegrar o dia, pra zerar o jogo/ coração pegando fogo e cabeça fria”. “O tempo passa mas, com ‘Que Tal um Samba?’, consigo perceber hoje, com clareza: primeiro, toda a história que vem de trás e, segundo, perceber que ele continua a conseguir falar de forma atual, já não falando dessa ditadura mas de outras. Alguém que diz “desconjurar a ignorância, que tal?”, “desmantelar a força bruta”, num contexto em que [Jair] Bolsonaro ainda estava no poder, faz-nos perceber que o Chico continua comovente, continua atual.”
[“Que Tal um Samba”:]
E continua doce, também. “Há uma altura em que o Chico canta: ‘depois de tanta derrota/ depois de tanta demência/ e uma dor filha da puta, que tal?’. É uma música duríssima”, confessa Camelo. “Ouves esta música e um pedaço do teu coração é arrancado. E tu não és brasileira, tu não estás lá mas sentes isto com uma veracidade muito grande.”
Para Pedro Lamares, o brilhantismo e a capacidade de se colocar em diversos outros são tão grandes que a obra do Chico podia ser da autoria de várias pessoas. Co-apresentador do programa de literatura da RTP2 “Nada Será Como Dante”, juntamente com a poeta Filipa Leal, os dois dedicaram um programa inteiro à obra escrita do músico carioca, em 2015, quando o formato ainda se chamava “Literatura Aqui”. Pedro Lamares tem inclusive uma história para contar relativa à extensão e diversidade da obra de Chico.
“Antes de ir viver para o Brasil em 2006 para fazer a telenovela, recebi o ator que ia contracenar mais comigo, que ia fazer de meu melhor amigo. É neto da atriz Tônia Carrero, chama-se Miguel Thiré”, conta Lamares. “Ele veio ficar uns dias a minha casa. Uma noite, estávamos a trocar cromos, a mostrar coisas que o outro não conhecesse. Eu pus uma música do Chico, cantada por outra pessoa, não sei se não era a Mônica Salmaso.” Miguel Thiré não conhecia a canção. “Disse-lhe para tentar adivinhar e ele me deu-me uma resposta muito engraçada: ‘para ser tão bom e eu não conhecer, só pode ser Chico Buarque. Com este nível de qualidade, há muito poucos. E ser possível eu não conhecer, só o Chico.'” Chico Buarque escreveu letras de canções para si próprio, para outros músicos, escreveu para teatro, escreveu bandas sonoras, escreveu romances, foi ator – em teatro, em cinema.
Sérgio Godinho é para Pedro Lamares um dos que se equiparam a Chico Buarque. Os dois músicos são amigos de longa data e já trabalharam várias vezes juntos. “Tens temas do Sérgio em que tiras a canção e ficas com o poema. Lá está, o Sérgio também escreve para a infância, o Sérgio também escreve para teatro, há essa mesma linha. São escritores, não são só meros cantautores.”
Uma vez, na casa do cartoonista Luís Afonso, Pedro Lamares falava com Sérgio Godinho sobre o disco Escritor de Canções (coletânea de músicas tocadas ao vivo, lançada em 1990). “Eu estava a elogiar o disco e o Sérgio, com alguma surpresa, perguntou-me porque é que eu gostava tanto do disco. E eu perguntei-lhe: ‘por que não haveria de gostar?’ Ao que ele me respondeu: ‘oh pá, porque é uma roupagem muito simples, de três instrumentos, as canções são todas covers‘.” Tratou-se de um espectáculo encenado por Ricardo Pais para o Instituto Franco-Português. “’Pois eu sei, eu gosto muito da roupagem’, disse-lhe eu. ‘E tens lá um dos meus temas preferidos, que não costumas cantar’. Como também não costuma cantar, por exemplo, ‘As Horas Extraordinárias’, de que gosto muito.” E continua a história: “’E tens lá uma das tuas canções que tem para mim uma das letras mais surpreendentes e mais especiais’. Ele perguntou: ‘qual é?’ E eu respondi: ‘É a Um Tempo que Passou.’ Ele riu e disse: ‘a letra é do Chico.’ Eu comecei também a rir-me, para minha vergonha, e soltei: ‘oh Sérgio, desculpa a gafe, mas, se é do Chico, também não faz mal, não é?’.”