Faltam dias para o mistério orçamental acabar e o cerco à volta do PS aperta. As dúvidas dentro do próprio partido sobre se a mensagem socialista a propósito do Orçamento do Estado está a passar com clareza multiplicam-se, do topo às bases. E, com André Ventura a anunciar que votará mesmo contra o documento, a pressão – que o partido tenta sacudir, agarrando-se às inconsistências e contradições do líder do Chega – está mais alta do que nunca.
Apesar dos variados e contraditórios anúncios que André Ventura tem vindo a fazer sobre o seu voto no Orçamento do Estado, a convicção de que estaria fora de jogo aumentou desde que veio acusar publicamente o primeiro-ministro de “mentir”. Já esta terça-feira, Ventura apareceu para confirmar que o voto do partido será mesmo contra, desta vez sem condições ou ressalvas associadas — o que parece confirmar que o PS está definitivamente sozinho na arena orçamental com o PSD.
No PS, a ordem é uma: a direção, consciente de que existe alguma confusão relativamente à evolução da sua posição quanto ao Orçamento, quer manter a ideia de que tem “o seu tempo para tomar uma decisão” e agarra-se às inconsistências de Ventura para sacudir a pressão que sente a pairar sobre si. “Mais novela à direita não é mau para o PS”, diz ao Observador um deputado. “Isto é para crer ou amanhã muda de opinião?”, ironiza um dirigente. “Continuo a achar que pode roer a corda”, acrescenta outro.
Mas, alegadas encenações à parte, o PS tem consciência de que publicamente aparece cada vez mais cercado. Até porque mesmo que a decisão – que Pedro Nuno Santos, como adiantou o Observador, irá propor à Comissão Política Nacional do PS na próxima segunda-feira – não seja resultado da posição do Chega, a consequência é inevitável: “Fica muito nítida a consequência do voto do PS”.
Ou seja, acreditando que o Chega está fora de jogo, se se seguir uma crise política, é provável que seja vista como “consequência direta” da decisão do PS – e esse não é um fator que esteja fora da equação. Há meses que os socialistas comentam que se sentiriam mais confortáveis se a viabilização fosse garantida pelo Chega e estivessem, portanto, livres para votar o Orçamento como entendessem, sem ameaças de crise política a pairar no ar. Essa zona de conforto parece ter desaparecido de vez.
Pedro Nuno tentou “voz única”, mas partido reagiu mal
Por isso mesmo, torna-se urgente afinar e solidificar cada vez mais a mensagem que o PS quer passar à volta deste Orçamento, e que teme que não esteja a ser clara. Durante o fim de semana, esse esforço foi evidente. E se a tentativa de Pedro Nuno Santos de clarificar o que o PS pensa sobre este Orçamento é bem vinda para o partido, a forma como tentou estender essa clarificação aos comentadores televisivos com cartão de militante — que aconselhou a “saírem do seu pedestal”, contactarem com os militantes de base e não fazerem “o jogo da direita” — esteve muito longe de agradar a todos.
“Foi um bocadinho além na questão interna”, admite um destacado dirigente socialista em declarações ao Observador sob a condição de anonimato. Um pedronunista vai ainda mais longe: o apelo para que o PS fale com uma “voz única” foi “um erro” e é mesmo uma expressão “inadmissível“.
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Para a corrente menos favorável a Pedro Nuno Santos, a crítica era óbvia: não demorou até que o ex-ministro José António Vieira da Silva viesse dizer-se “estupefacto” com a ideia de uma voz única, que disse não ser “própria de uma democracia”; o também ex-ministro Correia de Campos falou num “erro clamoroso” do secretário-geral; e nos Whatsapps de socialistas menos afetos ao pedronunismo (ou comentadores) comentou-se que o partido “reage mal” a estes apelos.
“O PS é um partido de homens e mulheres livres e também responsáveis”, sublinhava esta segunda-feira José Luís Carneiro, o adversário de Pedro Nuno Santos na corrida à liderança do PS, ao mesmo tempo que garantia não se sentir limitado nas suas declarações públicas após o aviso do líder. “Foi um momento menos feliz“, acrescentou Francisco Assis, ao Público.
Mas a preocupação do topo do partido é outra: a polémica à volta do recado de Pedro Nuno aos comentadores socialistas desvia as atenções da mensagem — uma mensagem que o partido tem tentado construir, por entre muitos avanços e recuos, e que quer agora passar para acabar com a ideia de que não sabe o que há de fazer quanto ao Orçamento do Estado. “A posição do PS não é clara“, admite um socialista destacado. “Quem não acompanha política não a percebe”.
“Instalou-se uma dúvida e uma incerteza na perceção pública — em contraste com a perceção clara de ganhos conseguidos pelo PS nas semanas anteriores”, nota um ex-governante socialista, frisando que o arrastamento da decisão pode ter as suas vantagens — condicionar o Governo numa eventual discussão na especialidade e evitar uma chuva de críticas durante o congresso do PSD, que acontece no próximo fim de semana.
Mas esta manobra também tem desvantagens claras, e que para muitos superam as primeiras: “Cria-se um tempo de aparente incerteza e divisão” dentro do partido. A divisão tem sido clara nas reuniões dos socialistas, seja de federações distritais ou da bancada de deputados. E estende-se não só à decisão que o partido deve tomar relativamente ao Orçamento, mas também à forma como deve tomá-la.
Na direção do partido, há quem peça que se acabe com especulações e que se respeite o processo de decisão do PS, sem “dramas“. E há quem explique o remoque de Pedro Nuno Santos, frisando que nesta fase de reuniões e audições “todas as opiniões são bem vindas”, mas, quando o assunto é discutido fora das fronteiras do Largo do Rato, o partido devia “fortalecer a posição do secretário-geral”, em vez de tentar “condicionar publicamente” a decisão que irá tomar.
“O líder deve ter o seu tempo, deve ter o seu método, deve ter o seu aprendizado. Querermos dar-lhe lições através do comentário ou de um raid mediático, não me parece ajuizado”, avisou o ex-dirigente Ascenso Simões, numa mensagem publicada no seu Facebook. Também aqui não se encontra um consenso no PS.
PS tenta “provar” distância do PSD
Graças a estas hesitações e discordâncias em várias frentes, houve suspiros de alívio ao ouvir o líder socialista a definir um guião anti-direita que também funciona em caso de viabilização do documento. “O discurso do Porto foi um bocadinho além no que toca à questão interna. No restante, zurzir o Governo ou o Orçamento é o que o PS deve fazer, independentemente da orientação de voto que será tomada”, defende um dirigente já citado.
Ou seja, o PS deve demarcar-se ao máximo do documento para que não restem confusões sobre se o Orçamento até é semelhante aos que foram desenhados nos últimos anos de governação socialista — uma ideia que muitos comentadores, mas até partidos como a Iniciativa Liberal, têm enfatizado — ou sobre se o PS vai abdicar da liderança da oposição mesmo que viabilize o documento.
Foi por isso que Pedro Nuno Santos se dedicou a ‘malhar’ na direita e no Orçamento durante o fim de semana, e os seus apoiantes gostaram — e lamentaram que o recado para os comentadores pudesse tirar ímpeto ao guião que o PS quer estabelecer. “Fez o melhor discurso que já fez enquanto líder da oposição”, comenta um dirigente, argumentando que o socialista costuma ser mais forte em discursos “doutrinários e ideológicos” e que está agora mais concentrado em mostrar o que o separa do PSD, dentro e fora do Orçamento — “coisa que o PS não tem conseguido fazer por causa deste processo”, admite a mesma fonte.
“Está a tentar provar que o Orçamento não é do PS, distanciando-se seja qual for o resultado. É preciso passar uma mensagem de oposição — ou fazendo a pedagogia do voto contra, ou mostrando que o PS vai viabilizar em prol da estabilidade política e não de nenhuma aproximação ao PSD”, ouve-se na direção socialista.
Existindo a consciência de que o PS está há meses enredado em negociações com os sociais democratas e que a narrativa sobre cada ganho ou perda relativamente a uma das suas linhas vermelhas — ou das outras prioridades que foi introduzindo entretanto — é difícil de acompanhar e assimilar, é importante explicar que se o PS decidir deixar passar o Orçamento o fará por uma questão de interesse nacional. A razão terá de ser longínqua e nunca poderá existir a sugestão de que o fez porque existiam alguns pontos em comum vertidos no documento.
Com a reunião da Comissão Política Nacional, órgão ao qual Pedro Nuno Santos levará a sua proposta de sentido de voto no OE, a ser marcada para segunda-feira, como o Observador apurou, o PS tenta consolidar o seu discurso à volta das insuficiências do Orçamento do Estado, para o que der e vier. E vai tentando virar as baterias para Luís Montenegro.
“Montenegro é que tem de explicar por que fechou o processo sem acordo do PS. Não precisa? Não quer? Tem outra fórmula para o aprovar? Tem a certeza de que o PS vai viabilizar? O primeiro-ministro deve saber, porque está confiante”, atira-se a partir do interior do PS. O jogo é de pressão. E a contagem decrescente para o fim das apostas orçamentais está prestes a começar.
Pedro Nuno com bancada dividida, mas círculo mais próximo do líder quer voto contra