Se o provérbio diz que “uma maré alta levanta todos os barcos”, o lendário investidor Warren Buffett notou que “é quando a maré desce que se descobre quem é que estava a nadar sem calções“. Porém, a rapidez com que os bancos centrais subiram as taxas de juro nos últimos meses criou o risco de até mesmo quem tem calções vestidos possa ficar sem eles, sobretudo se não estiverem muito bem apertados. O colapso do Silicon Valley Bank foi a maior falência bancária nos EUA desde 2008 e não faltou quem, de imediato, vaticinasse uma repetição da última crise financeira global. A comparação faz sentido? As diferenças são muitas mas o desconforto entre os especialistas é palpável.

As comparações com a crise de 2008 começaram bem antes de ser revelado que o antigo administrador-financeiro do Lehman Brothers estava, agora, a trabalhar como executivo de topo no Silicon Valley Bank (SVB) – uma coincidência que rapidamente se tornou num meme nas redes sociais e injetou algum alívio cómico num caso que as autoridades norte-americanas trataram como tudo menos uma piada: ao ponto de criarem o precedente de cobrir todos os depósitos do banco (não apenas os depósitos até 250 mil dólares).

Essa decisão, potencialmente histórica pelo precedente que criou, foi tomada ainda na noite de domingo, até tendo em conta que 97% dos depositantes do SVB tinham mais do que os tais 250 mil dólares no banco – ou seja, se apenas os “depósitos garantidos” fossem protegidos, como ditam as regras, a aniquilação seria quase total.

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A queda de um segundo pequeno banco – o Signature – e o perigo de que outros se seguissem (como o First Republic Bank, que antes da abertura da bolsa já via as ações derraparem mais de 60%) levaram o Presidente Joe Biden a fazer uma comunicação ao país, logo às 9 da manhã, a garantir que o sistema financeiro e os depósitos estavam “seguros”.

Joe Biden garante: “Todos os americanos podem estar confiantes de que os depósitos estarão lá se e quando precisarem deles”

Com essa garantia, as bolsas de valores acabaram por erguer-se das fortes perdas iniciais – não só graças à intervenção de Biden mas, também, porque se gerou nos mercados a ideia de que, com esta turbulência, nem pensar em voltar a acelerar a subida dos juros (como o líder da Reserva Federal, Jerome Powell, tinha admitido poucos dias antes, derrubando as bolsas).

O perigo de ser “o banco das startups

Aquele que nos últimos anos se tinha afirmado nos EUA como “o banco das startups” acabou por não resistir a uma corrida aos depósitos que se agravou com a rapidez “viral” que normalmente se associa ao mundo das tecnologias. Os seus clientes – cuja esmagadora maioria eram particulares e empresas ligados ao setor tecnológico – são, por norma, mais reativos e conectados do que os clientes de um banco comum.

“O que revelou ser uma dos maiores riscos para o nosso negócio é que trabalhávamos para um grupo muito restrito de investidores que exibem comportamentos de rebanho…“, comentou um antigo executivo do banco, ao Financial Times. Olhando para trás, aquele banco tinha tudo para um dia sofrer uma corrida aos depósitos imparável, acrescentou a mesma fonte.

Quando Peter Thiel, investidor que é uma das vozes mais influentes do ecossistema empreendedor dos EUA, aconselhou as empresas a tirarem o dinheiro do banco, o colapso do SVB tornou-se ainda mais inevitável. Mais de 40 mil milhões de dólares (cerca de um quarto do que estava depositado no banco) foram para outras paragens, numa questão de horas.

Silicon Valley Bank. Como se desenhou o maior colapso de um banco desde a crise financeira de 2008

Nenhum banco conseguiria aguentar tal pressão, no limite“, afirma Filipe Garcia, economista do IMF – Informação de Mercados Financeiros. Uma “corrida ao banco” é, por definição, uma ameaça porque o sistema financeiro mundial assenta numa prática em que os depósitos que os bancos recebem são, em grande parte, investidos em ativos de prazo mais longo e menor liquidez (como créditos a outros clientes ou investimentos em títulos como dívida pública).

O SVB foi vítima dessa discrepância. “Este era um banco que estava bem capitalizado, não podemos dizer que houve ali um ‘buraco’ ou uma fraude”, diz Filipe Garcia, economista do IMF – Informação de Mercados Financeiros – porém, “parece evidente que a gestão fez asneira, devia ter sido mais prudente” porque tinha investimentos de muito longo prazo (mais rentáveis mas mais ilíquidos) e não terá acautelado esse risco, designadamente comprando suficientes contratos de proteção do risco de taxa de juro que são comuns nos mercados financeiros.

O colapso não se deu porque aquele banco tivesse investido em ativos exóticos ou danosos, sublinha Filipe Garcia. Aqui, o balanço do banco estava concentrado na suposta segurança da dívida pública norte-americana (e, também, títulos de dívida privada, como dívida hipotecária) mas esses títulos foram comprados a preços elevados porque foi esse o efeito da política monetária nos últimos anos: ao comprar doses grandes de títulos de dívida pública, a Reserva Federal fez subir os preços desses títulos (comprimindo os juros implícitos).

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Quando o banco central inverte a política, como fez em finais de 2021 altura em que começou a aumentar agressivamente as taxas, quem investiu nesses títulos fica perante uma perda – uma perda que pode ser apenas potencial mas que se torna real e efetiva quando o banco se vê confrontado com a necessidade de liquidar aqueles investimentos. Se os títulos fossem mantidos até à maturidade, até ao momento em que o Tesouro os reembolsaria na íntegra, isso não levaria a uma perda. Mas uma venda antecipada, a preços de mercado mais baixos, gera um prejuízo. E foi isso que aconteceu com o SVB.

Seria “errado assumir que o SVB pode ser um Lehman de 2023”

É por isto que Pedro Assunção, CIO [chief investment officer] da consultora de investimento Første em Lisboa, tem dúvidas sobre se se pode dizer que “o SVB possa ser o ‘canário na mina’ [sinal] de problemas mais graves no setor financeiro”.

“O SVB tem algumas características particulares que o tornaram mais propenso a este problema, nomeadamente porque tinha uma carteira de obrigações muito grande face ao total de ativos e tinha uma carteira de depositantes relativamente concentrada (startups de tecnologia) que reagiu de forma muito concertada ao levantar os depósitos”, nota o especialista, acrescentando que, “ao necessitar de liquidez, o SVB foi forçado a assumir uma perda na venda de parte da carteira de obrigações que consumiu mais de 10% dos seus capitais próprios” e “para colmatar esta perda tentou uma operação de aumento de capital que falhou e o deixou ainda mais fragilizado”.

Assim, “é difícil tirar conclusões para o sistema bancário em geral partindo deste caso particular“, nota Pedro Assunção. “Os grandes bancos americanos e europeus são muito mais diversificados do que o SVB, geograficamente, em carteiras de ativos e em base de depositantes e, portanto, o risco de uma corrida aos depósitos é muito reduzido”, diz o especialista, considerando, pois, que “seria errado assumir que o SVB pode ser um Lehman Brothers de 2023″: “O SVB não desempenha um papel fundamental no sistema financeiro global como em 2008 o Lehman tinha com uma posição enorme no mercado de derivados, sobretudo de crédito, e sendo contraparte de bancos em todo o mundo”, assinala.

Por esta razão, “dificilmente a queda do SVB terá consequências mais amplas” e “depois da queda significativa do setor bancário americano ontem e do sector bancário europeu esta segunda-feira, não nos parece que o choque se propague muito mais”. “Mas convém lembrar”, diz Pedro Assunção, que “o maior risco no setor bancário está em bancos com uma discrepância grande entre a duration [maturidade] dos seus ativos e passivos, sobretudo num momento como o atual em que a subida de taxas de juro desvaloriza os ativos e torna mais fácil a concorrência para a captação de depósitos”.

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Risco? “Não devemos desvalorizá-lo”

“O colapso do Silicon Valley Bank não é, de modo algum, um acontecimento irrelevante – e não devemos desvalorizá-lo“, avisaram os analistas da suíça Mirabaud, em nota difundida na manhã de segunda-feira. Outra gestora de ativos, a AllianzGI, avisou que “não devemos ser complacentes” em relação aos riscos que estão em causa – embora se salientem as especificidades do SVB. A generalidade dos analistas manifesta uma relativa tranquilidade, até pela forma como as autoridades norte-americanas atuaram, mas o desconforto é palpável.

O melhor indicador desse desconforto é a queda de mais de 6% das ações bancárias europeias, sobretudo levando para mínimos históricos ações de bancos vistos como mais vulneráveis como o Credit Suisse.

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O perigo geral é a tal discrepância de “duration” da qual o SVB se protegeu terrivelmente: um risco que preocupará até os outros bancos, aqueles que tenham os calções mais bem apertados nesta baixa-mar. A agência DBRS Morningstar debruçou-se, também numa nota de análise, sobre o “maior escrutínio relativamente às perdas não-realizadas” – a perda potencial que está no balanço da generalidade dos bancos mas que só se torna um problema caso os bancos tenham de vender os títulos de forma rápida.

Esse “maior escrutínio” é inevitável. Porém, “na nossa opinião, os bancos no nosso universo de cobertura têm liquidez suficiente e financiamento estável e capital para navegar esta turbulência de mercado”, confia a DBRS, notando que os bancos (pelo menos os maiores, acompanhados de perto pela agência de rating) “serão capazes de absorver as perdas potenciais através dos resultados e das almofadas de capital“.