Ainda falta mais de um ano para as eleições presidenciais no Brasil, mas o país já respira um ambiente de pré-campanha. Ciente de que terá Lula da Silva pela frente, Jair Bolsonaro, há cerca de um mês, passou ao ataque e disse que havia um “ladrão candidato”, um rótulo que durante vários anos foi colado ao ex-Presidente brasileiro devido às suas condenações na justiça. No entanto, não só Lula da Silva está livre de condenações e com os direitos políticos recuperados, como está numa dinâmica de crescimento que lhe dá boas perspetivas para 2022, enquanto Bolsonaro se afunda nas sondagens, acossado pelos escândalos em que o seu governo está envolvido.
Esta semana, de resto, tem sido reveladora das fases em que Bolsonaro e Lula da Silva se encontram. Enquanto Bolsonaro viu as críticas sobre a sua gestão da pandemia se intensificarem, inclusive com um possível caso de corrupção na compra de vacinas, o histórico do Partido dos Trabalhadores teve a notícia de que o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmara a parcialidade do ex-juiz Sérgio Moro, tendo ainda o juiz Gilmar Mendes decretado que todos os processos contra Lula na Operação Lava Jato têm de voltar à estaca zero. Decisão que torna praticamente impossível que o ex-Presidente possa até à data das eleições ser julgado e eventualmente condenado, com confirmação em segunda instância.
Com o caminho aberto para avançar, reforçado com a decisão do Supremo, Lula da Silva continua a somar motivos para estar confiante, com as sondagens a confirmarem cada vez mais o cenário de otimismo que se vive entre as hostes do PT.
Esta sexta-feira, uma sondagem do IPEC, divulgada pelo jornal O Estado de S. Paulo, abre inclusive a porta a uma vitória logo na primeira volta: o ex-Presidente surge com 49% das intenções de voto, enquanto Bolsonaro não vai além dos 23%. Embora as últimas sondagens tendessem a mostrar Lula ligeiramente à frente, e com mais hipóteses de sair vencedor numa segunda volta, nunca a diferença tinha sido tão grande, o que pode indiciar uma mudança da perceção no eleitorado.
“O domínio da narrativa saiu das mãos do governo e foi para as mãos da oposição”, afirma ao Observador Cláudio Couto, professor de Ciência Política e coordenador do Programa de Mestrado Profissional em Gestão e Políticas Públicas na Fundação Getúlio Vargas, salientando que a sondagem do IPEC “evidencia um imenso desgaste de Bolsonaro”.
O escândalo da Covaxin
Um dos principais fatores desse desgaste tem a ver com gestão da pandemia, uma vez que o Presidente brasileiro foi desvalorizando o coronavírus ao longo do tempo — desde a descredibilização da vacina à desvalorização das medidas de distanciamento físico ou do uso de máscara —, algo que não é bem visto por grande parte da população, tendo o país registado, na semana passada, a marca dos 500 mil mortos devido à Covid-19 (o que coincidiu com grandes manifestações nas ruas contra o governo bolsonarista).
Além disso, os efeitos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga a conduta do Governo brasileiro na gestão da pandemia começam a fazer-se sentir, e uma autêntica bomba política promete aumentar ainda mais a pressão sobre Bolsonaro, naquele que já referido na imprensa brasileira como o “Covaxingate”.
Em causa, está a autorização para a compra de 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin, em fevereiro, num valor 1000% superior ao preço estabelecido pela Bharat Biotech seis meses antes: segundo o jornal Estado de S.Paulo, o governo brasileiro aprovou a compra ao valor de 15 dólares por dose, quando em agosto valor pedido pela farmacêutica seria de apenas 1,34 dólares.
Este negócio, feito pelo governo através de um intermediário, a empresa Precisa Medicamentos, e não diretamente com a farmacêutica, foi celebrado num prazo recorde de 97 dias, enquanto o contrato com a Pfizer levou 330 dias a ser acordado, de acordo com a revista Piauí. Acresce que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o órgão regulador, levantou várias vezes dúvidas sobre a qualidade e segurança da vacina, tendo autorizado a importação da Covaxin apenas em junho, quando o acordo estabelecido em fevereiro previa entregas a partir do mês seguinte.
“É uma história muito mal contada e que cria pelo menos a suspeita de que o governo não é tão lícito quanto gostaria de fazer acreditar”, refere ao Observador Carlos Melo, politólogo e professor no Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), em São Paulo. “Isso pode criar um caldo de cultura no entendimento de que o governo, além de todos os seus problemas em relação à eficiência e à competência, também seria um governo comprometido pela corrupção”, realça.
Se o caso por si só já deixava o governo em apuros, a situação ficou ainda mais complicada quando o deputado federal Luís Miranda, irmão do chefe da divisão de importação do Ministério da Saúde Luís Ricardo Miranda — que disse ter sido pressionado para aprovar a importação da vacina — garantiu ter alertado Jair Bolsonaro sobre um possível caso de corrupção na compra das vacinas da Covaxin. Bolsonaro tem tentado desvalorizar o caso, garantindo que não foi pago qualquer valor pelas vacinas, que ainda não foram entregues, mas também não explicou porque não foram logo investigadas as denúncias sobre suspeitas de corrupção no negócio.
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Os irmãos Miranda foram ouvidos esta sexta-feira na CPI e as consequências para o futuro de Bolsonaro são imprevisíveis, embora afetem a imagem de um governo que fez do combate à corrupção o seu mote — isto numa semana em que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, saiu do governo por envolvimento num caso de corrupção, relacionado com o favorecimento de madeireiros e por dificultar a fiscalização ambiental.
Lula aposta na moderação para ir à conquista do centro
Os escândalos em que o governo de Bolsonaro tem estado envolvido parecem explicar a queda na popularidade do Presidente, de quem, segundo a sondagem da IPEC, 49% dos brasileiros fazem uma avaliação má ou péssima do executivo, enquanto 24% (praticamente a mesma percentagem dos que dizem votar em Bolsonaro) fazem uma avaliação ótima ou boa.
Mas as más notícias para Bolsonaro nesta sondagem não se ficam por aqui: 62% dos brasileiros garantem que não votariam no atual Presidente em nenhuma circunstância. Por outro lado, apenas 36% rejeitam absolutamente o voto em Lula da Silva, sinal de que o ex-Presidente está a conseguir chegar a eleitores descontentes com Bolsonaro e, sobretudo, ao centro político, resultado de uma mudança de imagem que o petista tem feito nos últimos meses, apostando na moderação.
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“Lula tem feito um esforço muito grande para não parecer que a eleição está polarizada entre duas alternativas radicais. Tem procurado setores moderados e até conservadores e tem tentado costurar alianças com esses setores, ampliando o seu espectro da esquerda para o centro. Essa é a estratégia que deve perdurar até à eleição”, explica o politólogo Carlos Melo. “A estratégia de Lula é aparecer como um moderado capaz de recolocar o país nos eixos”, acrescenta.
O ex-Presidente brasileiro tem viajado pelo país para articular uma frente anti-Bolsonaro, procurando angariar apoios de candidatos do centro político, que não vislumbram no imediato nenhuma figura capaz de ombrear com os dois candidatos que, ao que tudo indica, vão disputar a presidência entre si. Para apelar ao centro, Lula beneficia não só do desgaste de Bolsonaro, como também de uma nova imagem após terem sido anuladas as suas condenações na Lava Jato.
“Muita gente que o via negativamente, começa a olhar para Lula de outra maneira, como alguém que foi vítima de uma injustiça judicial e que seria um Presidente com uma conduta mais responsável para o país do que a de Bolsonaro”, corrobora o politólogo Cláudio Couto. “As decisões da justiça contribuíram para essa mudança de perceção, e é por isso que Lula sobe, porque é potencialmente visto como um governante melhor que Bolsonaro”, acrescenta.
O ex-Presidente, no entanto, ainda levanta algumas reservas junto de parte do eleitorado que elegeu Bolsonaro em 2018 e ainda não está convencido com o petista. Daí que, oficialmente, Lula da Silva ainda não tenha anunciado a candidatura, apostando na continuação do desgaste de Bolsonaro.
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“Lula está a tentar manter-se nos bastidores exatamente para deixar que a insatisfação nas camadas centristas e nos arrependidos do bolsonarismo se consolide para, aí sim, apresentar-se como uma alternativa”, afirma ao Observador Mayra Goulart, professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), realçando que o histórico do PT está a tentar fazer “articulações para atrair diferentes segmentos da população para a sua órbita de influência”, apresentando-se como o “candidato oposto ao bolsonarismo”.
Bolsonaro aposta na “radicalização”
Perante um cenário cada vez mais desfavorável, Bolsonaro começa a ponderar estratégias para conseguir sobreviver politicamente, tendo ainda pela frente um possível “super impeachment” (que junte vários partidos políticos), que deverá ser apresentado nos próximos dias e no qual deverá ser acusado de 20 crimes — desde ameaças a membros do Congresso e do STF, até falhas e omissões no combate à pandemia, ou até à interferência na Polícia Federal para favorecer familiares, caso que levou à demissão de Sérgio Moro.
No entanto, com o apoio do “centrão” no Congresso, particularmente do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (a quem cabe a responsabilidade de abrir o impeachment), é pouco provável que processo avance, apesar de a situação só por si causar desgaste ao Presidente. Esse desgaste, como se tem verificado nas últimas semanas, tem levado à diminuição da popularidade de Bolsonaro, que por isso terá de definir uma estratégia para os próximos meses. Para a politóloga Mayra Goulart, esse caminho passará inevitavelmente pela radicalização e pela garantia do apoio daqueles cerca de 20% de eleitores que parecem fiéis ao Presidente.
“Bolsonaro está a apostar nos grupos mais fiéis e radicais da população, que estarão ao seu lado até ao fim, inclusive numa eventual escalada autoritária. É isso que estamos a ver, uma escalada reiterada na radicalização. Não há um esforço para atrair um eleitorado centrista”, sublinha a professora de Ciência Política da UFRJ e coordenadora do Laboratório de Partidos Eleições e Política Comparada (LAPPCOM).
Quanto aos meios para melhorar os índices de popularidade, Bolsonaro espera que, nos próximos meses, a campanha de vacinação acelere no Brasil e que, na sequência disso, a economia possa melhorar, dando um balão de oxigénio ao seu governo para os meses que se seguirão até às presidenciais. Resta, no entanto, saber se conseguirá convencer os brasileiros, tendo em conta o seu historial sobre as medidas de combate à pandemia.
“É uma estratégia controversa, porque o Presidente falou tão mal das vacinas e de outras estratégias de proteção, como o distanciamento social ou o uso de máscara, que parece pouco crível esse discurso de que será o responsável pela vacinação”, afirma o politólogo Carlos Melo, do Insper, notando que, com mais pessoas vacinadas, as manifestações contra Bolsonaro também poderão ganhar força. “Quanto mais pessoas estiverem vacinadas e se sentirem protegidas, mais as ruas podem aquecer.”
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Sérgio Moro ainda tem futuro político?
Enquanto Bolsonaro e Lula da Silva vão afinando a estratégia para os próximos meses, outros potenciais candidatos aguardam na sombra, à espera de um deslize dos dois favoritos e que lhes permita impulsionar as respetivas candidaturas. Na calha, como uma terceira via, estão Ciro Gomes, no centro-esquerda, e João Doria, no centro-direita, que, de acordo com a sondagem do IPEC, têm, respetivamente, 7% e 5% das intenções de voto.
Outro nome que tem sido apontado como possível candidato é o do ex-juiz Sérgio Moro, caído em desgraça sobretudo depois de uma passagem curta pelo governo Bolsonaro e de as suas sentenças contra Lula da Silva terem sido anuladas pelo Supremo. Prova de que a popularidade de Moro já viu melhores dias foi o cancelamento da sua participação no Encontro Virtual do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito do Brasil (Conpedi), após os professores terem protestado contra sua presença e ameaçarem boicotar o evento.
No entanto, Moro, que vive atualmente nos Estados Unidos, conforme escreve a Folha de São Paulo, ainda reúne apoios, nomeadamente entre alguns setores militares, da classe média e até do centro político, além de que nunca descartou a possibilidade de concorrer à presidência. Nas presidenciais de 2022, encontrará Lula pela frente o seu némesis e Bolsonaro o seu adversário que outrora foi o seu maior aliado e que tanto contribuiu para a sua vitória em 2018?
“Moro tem tentado ficar longe dos holofotes, porque as notícias têm sido muito más para ele, mas o problema é que sua imagem está muito desgastada. Não o vejo como um candidato viável, embora ele possa, eventualmente, querer ser candidato”, remata Cláudio Couto, politólogo da Fundação Getúlio Vargas.