Acompanhe aqui todos os desenvolvimentos dos incêndios em Portugal
Condições atípicas, uma “tempestade perfeita”, a situação mais preocupante das últimas duas décadas em vários distritos. É assim que os especialistas classificam a atual situação meteorológica que o país enfrenta, e que se reflete num risco extremo de incêndio (em muitas zonas, nunca antes visto) nesta segunda e terça-feiras. A combinação de temperaturas elevadas, baixa humidade, vento forte e falta de chuva propiciam as condições ideais para a ocorrência de fogos de grande dimensão, suscetíveis de causar elevados estragos e ameaçarem pessoas e bens. Foi isso mesmo que se viu durante o dia, com dezenas de incêndios a causarem pelo menos três mortos e mais de 20 feridos e a destruírem várias casas.
O índice FWI — de origem canadiana e que mede o perigo meteorológico de incêndio — está a ser utilizado para ilustrar a potencial gravidade da situação no território continental, particularmente nos distritos a norte do rio Tejo. Nalguns casos, como nos distritos de Aveiro, Braga e Viseu, o perigo nunca foi tão elevado como nesta segunda-feira. “Os valores do FWI são muito extremos, uma vez que, nalgumas regiões do país, chegam a atingir o primeiro lugar do ranking de um conjunto de mais de oito mil dias, desde 2001. Estão completamente fora do habitual, é uma situação extrema”, sublinha o climatologista Carlos da Câmara, no podcast História do Dia, da Rádio Observador, desta terça-feira. Têm sido precisamente estes os distritos mais afetados pelos incêndios esta segunda-feira, nomeadamente nas zonas de Albergaria-a-Velha, Oliveira de Azeméis e Sever do Vouga (em Aveiro), Vila Nova de Paiva e Nelas (em Viseu).
O Professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa explica que o índice FWI é uma forma mais “sofisticada” de prever o risco de incêndio. No fundo, trata-se da derivação de uma regra, utilizada há anos pelos corpos de bombeiros, explica, e que integra os mesmos quatro elementos: a regra dos três 30. “Se houver uma temperatura superior a 30 graus, uma humidade do ar inferior a 30%, uma velocidade do vento superior a 30 km/hora (e costumo acrescentar mais de 30 dias sem chuva), está o caldo entornado”, realça o especialista, salientando que, nestes casos, o fogo se pode propagar com uma facilidade muito superior.
Em vários distritos, perigo de incêndio bateu máximos históricos
De acordo com o índice FWI, esta segunda-feira foi o dia com maior perigo de incêndio desde 2001 em cinco distritos (Aveiro, Viseu, Braga, Vila Real e Santarém), com os valores a baterem máximos. “Se está no percentil 100, significa que o valor atual é maior do que 100% dos valores observados desde que há registo, desde 2001”, vinca o especialista em incêndios florestais Jorge Sande Silva. Há ainda vários distritos com valores muito perto do percentil 100: Bragança, Guarda, Porto, Leiria, Castelo Branco, Coimbra e Lisboa registam valores acima dos 99%. Na contagem por dia, esta segunda-feira foi o dia mais perigoso para a ocorrência de incêndios de que há registo (ou seja, dos últimos 23 anos) nos distritos de Aveiro e Viseu, o quinto pior em Braga e Santarém, o sétimo pior em Vila Real.
Os valores de perigo de incêndio são ainda mais elevados do que os registados a 15 de outubro de 2017, quando um conjunto de incêndios (que atingiram também as regiões norte e centro do país) provocaram 50 mortes. “Esse dia em 2017 foi um dia extraordinariamente mau em termos meteorológicos, porque tínhamos um vento ciclónico. E agora aparecerem aqui esta segunda-feira estes distritos com o valor mais elevado de sempre deixa-me surpreendido”, confessa o especialista.
Mas, para além das condições climáticas adversas, o que terá contribuído para a ocorrência de fogos de grande dimensão e severidade como os desta segunda-feira? Para o climatologista Carlos da Câmara, um dos fatores determinantes é a quantidade de vegetação existente, ‘pronta’ para arder.
Quantidade de vegetação potencia fogos de grandes dimensões
“Tivemos uma primavera bastante chuvosa, com temperaturas bastante amenas, e o mesmo aconteceu no início de junho/julho. Ou seja, temos vegetação não stressada e muita biomassa, porque ela se desenvolveu. Quando chegamos a setembro, o que acontece é que essa vegetação foi secando. Com condições meteorológicas extremas, isso propicia incêndios de grandes dimensões. É muito preocupante”, sublinha o professor universitário.
Já Jorge Sande Silva não encontra explicação para a secagem tão rápida da matéria florestal, uma vez que o final da primavera e o início do verão foram chuvosos. “Não tivemos um processo de secagem de combustíveis tão acentuado como em 2017, ou como em 2005, em que praticamente não choveu durante o ano inteiro. Nestes distritos, houve chuva em junho e julho. Encontro dificuldade em explicar como é que em pouco mais de um mês atingimos um nível de secagem dos combustíveis — que é isso que indica este FWI — tão elevado relativamente ao histórico”, admite o especialista da Escola Superior Agrária de Coimbra, considerando a situação “um bocadinho aterradora”.
Já sobre o facto de estes grandes incêndios surgirem a meio de setembro, quase no final do verão, Carlos da Câmara lembra o ano de 2017, em que os incêndios de Pedrógão, em junho, e os grandes incêndios de outubro ocorreram fora da época tradicionalmente considerada propícia à ocorrência de fogos de grandes dimensões.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre o período excecional que estamos a viver.
“A época em que ocorrem incêndios está a começar mais cedo e a acabar mais tarde”
O clima mudou, explica. “A época em que ocorrem incêndios está a começar mais cedo e a acabar mais tarde e os extremos meteorológicos estão a aumentar em número, extensão e intensidade. Tem a ver com as alterações climáticas. Mas há algo preocupante: esses extremos estão a ser ainda mais gravosos do que aquilo que os sistemas climáticos anteviam“, alerta o especialista.
Nuvem de fumo de grande dimensão na zona de Aveiro visível nas imagens de satélite da NASA
No entanto, e em termos de fatores propiciadores de grandes incêndios, a situação que o país enfrenta até esta terça-feira (com um alerta vermelho emitido para grande parte do território) não é exatamente igual à de 2017, defende Carlos da Câmara. “Em 2017, tivemos uma seca brutal antes, o que significa que a vegetação já estava stressada ainda antes de termos começado o verão”, diz o professor universitário. No incêndio de Pedrógão Grande, considerado o maior e mais mortífero da história do país (e que tirou a vida a 66 pessoas), ocorreu um fenómeno de downburst, o que gerou condições propícias à propagação das chamas, que avançaram descontroladamente.
Segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera, as condições que levaram ao incêndio de 2017, com as proporções que tomou, “foram o resultado da conjugação da dinâmica do próprio incêndio e dos efeitos da instabilidade atmosférica, gerando downburst, ou seja, vento de grande intensidade que se move verticalmente em direção ao solo, que após atingir o solo sopra de forma radial em todas as direções”.
Portugal está bem preparado, mas situações extremas complicam cenário, diz climatologista
No entanto, de há sete anos para cá, o país melhorou no que diz respeito ao combate e preparação dos meios, considera Carlos da Câmara. “Sempre que o país tem zonas razoavelmente bem delimitadas de perigo de incêndio, coloca os meios de sobreaviso. Este ano, os potenciais grandes incêndios que houve levaram com tudo em cima e foram dominados rapidamente”, lembra o especialista, que considera que Portugal se encontra bem preparado para combater incêndios em condições normais. Em situações extremas, como esta, a situação “torna-se muito complicada”, realça.
Uma situação extrema que levou, ainda no sábado, ao soar dos alarmes. A combinação de condições meteorológicas adversas prevista para o início da semana levou as autoridades a passar toda a região a norte do Tejo ao estado de alerta especial vermelho para incêndios florestais. O aviso, dirigido às populações e também com o objetivo de aumentar a prontidão dos meios, acabaria por se revelar um prenúncio para o que viria a acontecer esta segunda-feira. Dezenas de fogos lavraram durante o dia, alguns de grande dimensão e severidade. Causaram pelo menos três mortos e 20 feridos (três deles em estado grave), destruíram casas e grandes manchas florestais.
O início do dia, que se previa de risco extremo para a ocorrência de incêndios florestais, ficou marcado pela notícia da morte de um bombeiro que combatia o incêndio que deflagrou este domingo em Oliveira de Azeméis. O bombeiro, que pertencia à corporação de São Mamede de Infesta, ainda foi assistido por uma equipa do INEM mas acabou por morrer vítima de “doença súbita”.
A manhã veio agravar os incêndios que resistiram à baixa de temperaturas da última noite e assistiu ao deflagrar de muitos outros. Ainda não eram nove da manhã e já havia registo de várias habitações consumidas pelas chamas em Albergaria-a-Velha, num incêndio que teve início no concelho vizinho de Sever do Vouga. Afetado a norte e a sul, o distrito de Aveiro ardia. Por essa altura, a GNR já tinha interrompido a circulação automóvel em pelo menos três autoestradas, entre elas a principal via do país, A1.
Perante a gravidade da situação — com dezenas de incêndios a mobilizarem milhares de operacionais e muitos meios aéreos e terrestres, esgotando a capacidade de resposta — o governo decidiu acionar o mecanismo da União Europeia para reforço do dispositivo nacional com meios aéreos para ajudar no combate aos incêndios. França e Espanha responderam ao apelo, enviado quatro. Itália e Grécia também já ofereceram ajuda a Portugal.
Dois civis mortos e vários feridos. Estado de alerta prolongado
A meio da manhã, a situação agravava-se em Cabeceiras de Basto, no distrito de Braga, com pelo menos duas casas a serem consumidas pelas chamas. No entanto, a maior fonte de preocupação continuava a ser o distrito de Aveiro, com o incêndio de Albergaria-a-Velha a avançar de forma “errática” e com “incontáveis frentes de incêndio”. Em Oliveira de Azeméis, mais de 500 bombeiros combatiam as chamadas — sendo que quatro deles ficaram feridos com queimaduras. Para além das várias autoestradas e estradas nacionais cortadas, também a linha do norte esteve cortada nos dois sentidos, na zona de Cacia, deixando momentaneamente cortadas as duas principais ligações (rodo e ferroviária) entre Lisboa e Porto.
Ao início da tarde, e já depois de o primeiro-ministro ter cancelado a agenda desta segunda e terça-feiras, chegavam informações de quatro civis feridos em Albergaria-a-Velha. Pouco depois, fonte da proteção civil confirmava à Lusa que os incêndios naquele concelho e no concelho de Sever do Vouga tinham feito duas vítimas mortais: um cidadão brasileiro, de 28 anos, e funcionário de uma empresa de exploração florestal, que morreu carbonizado; e uma outra pessoa que terá sofrido um ataque cardíaco.
Para além dos incêndios em Aveiro e Braga, também levantaram preocupação os fogos que lavravam em Ceira (Coimbra), em Gondomor (no Porto) e em Mafra, mais a sul. Em Nelas, no distrito de Viseu, seis pessoas ficaram feridas, duas delas em estado grave.
Esta terça-feira, prevê-se que as condições meteorológicas extremas se mantenham. “Vai ser um dia complicadíssimo”, diz o climatologista Carlos da Câmara, sendo que, na quarta-feira, a situação “melhora”. No entanto, o especialista deixa um alerta: a longo prazo, as condições de seca serão prolongadas, o que vai aumentar a probabilidade de grandes incêndios como os que têm assolado o país nas últimas 24 horas.
O estado de alerta, que estava em vigor até ao final do dia de amanhã, foi prolongado até às 23h59 de quinta-feira, anunciou o primeiro-ministro, Luís Montenegro.