789kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

A austríaca Ilona Wilding, proprietária da clínica de Olhão, foi detida com Luísa Teixeira, uma antropóloga que alegadamente "angariava clientes". Alexandra Lazuk, russa, também está indiciada mas abandonou Portugal
i

A austríaca Ilona Wilding, proprietária da clínica de Olhão, foi detida com Luísa Teixeira, uma antropóloga que alegadamente "angariava clientes". Alexandra Lazuk, russa, também está indiciada mas abandonou Portugal

A austríaca Ilona Wilding, proprietária da clínica de Olhão, foi detida com Luísa Teixeira, uma antropóloga que alegadamente "angariava clientes". Alexandra Lazuk, russa, também está indiciada mas abandonou Portugal

Como as burlonas do cancro prometiam a cura com lavagens e "bolinhas" num armazém em Olhão

Duas mulheres foram detidas no Algarve por se fazerem passar por médicas. Prometiam cura para o cancro. Os tratamentos podiam custar 6 mil euros. Dois doentes morreram: um deles era o pai de Olga.

    Índice

    Índice

Luísa Teixeira não era uma desconhecida. Por muito que nunca tivessem sido amigas, tinham andado na mesma escola, ao mesmo tempo, e o pai dela até era cliente habitual da oficina de que o pai de Olga Castro era proprietário há décadas na zona industrial de Alijó, vila transmontana onde toda a gente se conhece. De vez em quando, Luísa, que estava a morar no Algarve, passava por lá e falava da mãe, diagnosticada com um cancro na cabeça. Tinha abandonado os tratamentos no IPO do Porto, para passar a ser seguida numa clínica em Olhão, a mesma onde ela própria tinha sido curada também de um problema oncológico — isto depois de os médicos lhe darem apenas uns quantos meses de vida.

“Disse-nos que tinha tido cancro nas cordas vocais ou na tiróide, já não me recordo bem. Disse-nos que lhe tinham dado pouco tempo de vida e que essas doutoras a tinham curado. E contou que, quando a mãe ficou doente, a proibiu de fazer radioterapia e começou a levá-la para o Algarve. E realmente a mulher andava melhor”, conta Olga Castro ao Observador, à distância de pouco mais de quatro anos.

Eram os últimos meses de 2018. Lino dos Santos Castro, o pai de Olga, então com 60 anos, estava doente, com cancro nos intestinos e no fígado. Apesar de já ter sido submetido a uma cirurgia bem sucedida, continuava a fazer quimioterapia, no IPO do Porto, e o prognóstico era bastante reservado. Em desespero, Olga, filha única, não pensava noutra coisa se não em curar o pai.

“Disse-nos que tinha tido cancro nas cordas vocais ou na tiróide, já não me recordo bem. Disse-nos que lhe tinham dado pouco tempo de vida e que essas doutoras a tinham curado. E contou que, quando a mãe ficou doente, a proibiu de fazer radioterapia e começou a levá-la para o Algarve. E realmente a mulher andava melhor”
Olga Castro, filha de paciente da clínica

Na internet descobriu que na Alemanha havia um tratamento inovador, à base de injeções, já nem sabe bem de quê, e estava a tentar perceber como poderia levá-lo até lá. “Mas depois apareceu esta conversa com a Luísa e foi aí que recorremos ao Algarve. Porque elas curavam o cancro, tinham curado o cancro. E nós fomos”, explica. “Quando as pessoas estão com problemas de saúde correm tudo e vão à procura de tudo e mais alguma coisa. E foi o que aconteceu connosco. Fomos em busca da esperança ao Algarve, a Olhão.”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ao telefone com o Observador, exatamente uma semana depois de se ter tornada pública a detenção, por suspeitas da prática de “crimes de burla qualificada, usurpação de funções e ofensa à integridade física agravada por resultado morte, entre outros ilícitos”, de Luísa Teixeira (e também de Ilona Wilding), a “doutora” que tratou o pai em janeiro de 2019, Olga Castro olha para trás e reconhece que os sinais de alerta estavam todos lá.

Detidas duas falsas médicas que enganavam doentes com cancro com terapias alternativas

De acordo com a Polícia Judiciária (PJ), Luísa Teixeira, agora com 39 anos, e Ilona Wilding, cidadã austríaca de 66, com residência em Portugal há pelo menos duas décadas, fazendo-se passar por médicas, “vinham propondo e administrando a pessoas residentes por todo o país tratamento médico eficaz, prometendo a cura para um leque alargado de doenças comuns e graves, inclusive do foro oncológico”.

Esse tratamento, acrescenta a PJ, seria feito com recurso a “práticas de medicina alternativa”, a pacientes de todo o país e de todas as idades — recém-nascidos incluídos. Mais do que isso: para além de pessoas, as pretensas médicas tratavam também animais, com os mesmos medicamentos manipulados no espaço da clínica, a funcionar no primeiro andar de um armazém, numa zona industrial de Olhão.

Pelo menos dois pacientes, ambos doentes oncológicos, acabaram por morrer, pouco tempo depois de serem submetidos aos tratamentos, concluiu a investigação do Ministério Público (MP).

Um deles foi Lino dos Santos Castro, o pai de Olga, falecido a 18 de novembro de 2019, aos 60 anos. A outra foi uma mulher, diagnosticada com um cancro no sistema linfático em dezembro de 2018, no IPO do Porto, que terá recorrido à clínica também por intermédio de Luísa Teixeira, pode ler-se no despacho de acusação, a que o Observador teve acesso.

Apesar de os especialistas em oncologia terem determinado que o problema de que sofria era de “cura clinicamente impossível”, a mulher terá recebido a promessa, apenas um mês mais tarde, de que “em agosto de 2019 estaria plenamente curada e poderia ir à praia”.

Para isso, bastaria não só seguir o “plano de tratamento” proposto por Ilona Wilding e Alexandra Viktorovna Lazuk, cidadã russa, agora com 55 anos, que na altura tinha residência no Algarve e era uma das outras “doutoras” da clínica. Como também recusar os tratamentos da medicina convencional — de acordo com a acusação do MP, a mulher terá sido “desaconselhada de forma explícita” a submeter-se às sessões de quimioterapia que entretanto lhe tinham sido marcadas no IPO do Porto.

Ilona Wilding, Alexandra Lazuk e Luísa Teixeira estão fortemente indiciadas da prática de crimes de burla qualificada, usurpação de funções e ofensa à integridade física agravada

Por insistência da família, e depois de alegadamente perceber que o tratamento prescrito por Ilona Wilding “estava a ser em vão”, a mulher acabou por fazer duas sessões de quimioterapia. Não teve tempo para mais: no dia 12 de fevereiro de 2019, cerca de um mês depois de ter chegado pela primeira vez à clínica de Olhão, onde esteve em tratamento durante cinco dias, morreu.

Contactado pelo Observador, o irmão, que a acompanhou ao Algarve e reside também em Alijó, recusou prestar quaisquer declarações sobre o assunto.

Duas “falsas médicas” e uma antropóloga que “angariava pacientes”

De Alijó a Olhão são mais de seis horas de distância, 660 quilómetros. Quando chegaram à porta da clínica, na zona industrial de Bela-Mandil, num primeiro andar sobre uma empresa de venda de equipamentos hoteleiros e ao lado de um armazém de revenda de têxteis, Olga Castro, então grávida de quatro meses, e o marido estranharam o sítio.

Sem nome na fachada, a clínica tornava-se visível por força dos dois cartazes afixados no edifício. O primeiro, com um olho desenhado, entre as formulações “Clínica Médica” e “Clínica Homeopata” anunciava a “cura” de “ALMA e CORPO”, por esta ordem e assim, em letras maiúsculas. O outro, mais acima, era um pouco mais detalhado: “Prevent Age – Anti Aging; Alegria, Energia, Força; A Clínica da Nova Mediçina [sic, com a letra c com cedilha] e da Nova Homeopatia; Protegemos a sua Saúde e Curamos Crianças, Adultos, Animais”.

“É triste as pessoas aproveitarem-se, mas nós também tivemos culpa. Imagine que chegam perto de si e lhe dizem: 'Eu tive este problema oncológico, andei no Porto, a fazer tratamentos, deram-me três meses de vida, e curei-me’. É muito fácil pensar 'Então, se tu te curaste, se elas virem o meu pai se calhar também o curam'"
Olga Castro, filha de um paciente da clínica que morreu

“O meu marido olhou para mim, eu olhei para ele: ‘Mas o que é isto?’. Mas é o que lhe digo, na altura não víamos nada. Tudo o que eu queria era que o meu pai tivesse mais dois, três anos de vida, o que fosse”, tenta racionalizar agora. “É triste as pessoas aproveitarem-se, mas nós também tivemos culpa. Imagine que chegam perto de si e lhe dizem: ‘Eu tive este problema oncológico, andei no Porto, a fazer tratamentos, deram-me três meses de vida, e curei-me. No Algarve, com estas médicas, de curas alternativas, que são certificadas’. É muito fácil pensar ‘Então, se tu te curaste, se elas virem o meu pai se calhar também o curam’.”

Na verdade, aponta o Ministério Público, Ilona Wilding — que no Facebook, na página que entretanto encerrou, dizia ser “psicóloga clínica” e especialista em “vários métodos terapêuticos não convencionais” —, e Alexandra Lazuk, que se apresentava aos pacientes de bata branca e, num dos sites com dados da clínica encontrados pelo Observador, era descrita como “oftalmologista e homeopata”, não detêm “qualquer cédula da área das terapias não convencionais”.

Também não estão registadas na Ordem dos Médicos Portugueses, nem na Ordem dos Psicólogos Portugueses. Aliás, apurou o Observador junto desta última, na quarta-feira, dia 1 de março, quando Ilona Wilding e Luísa Teixeira foram detidas, em Olhão, esteve presente um representante do organismo “para confirmar que as suspeitas não se encontram de qualquer forma legitimadas ao exercício da Psicologia Clínica”.

Luísa Teixeira, que de acordo com o MP colaboraria com as duas pretensas médicas “na angariação de clientes”, é antropóloga, mestre em Arqueologia e, no âmbito do doutoramento que estará a preparar, na Universidade Autónoma de Lisboa, é investigadora do CICH, o Centro de Investigação em Ciências Históricas daquela instituição.

Em fevereiro deste ano, a académica, que é também autora de vários livros sobre arqueologia e antropologia e também de ficção, foi mesmo notícia em vários jornais algarvios, graças à “descoberta inédita de santuário menírico com mais de 5.000 anos em São Brás de Alportel”. “Até ao momento, no referido concelho não havia sido identificado qualquer monumento megalítico”, congratulou-se na altura Luísa Teixeira, em comunicado enviado para as redações.

“O caso da Luísa é surreal, estamos a falar de uma pessoa com uma formação académica fora do comum que foi autora de uma das últimas grandes descobertas aqui no Algarve no que diz respeito à antropologia. Pessoas destas de repente verem-se detidas e terem de dormir duas noites nos calabouços da GNR de São Brás de Alportel… não foi uma experiência muito agradável”
André Caetano, advogado das duas arguidas

Contactadas pelo Observador, por intermédio do advogado que as representa, Ilona Wilding e Luísa Teixeira, que foram constituídas arguidas e libertadas 48 horas depois de terem sido detidas, com termo de identidade e residência, proibidas de contactar com pessoas relacionadas com o inquérito e obrigadas a apresentar-se periodicamente na polícia da área de residência, não quiseram prestar declarações. “Estão muito, muito perturbadas pelo impacto público que isto teve, acham que a imagem delas foi altamente afetada”, explica André Caetano.

Para além de garantir que Ilona Wilding nunca se apresentou como “médica” — “Ela é licenciada, refere que tem uma licenciatura em medicina alternativa, e era tratada por doutora como eu sou e a senhora jornalista também é, não porque se auto intitulasse médica, isso nunca” —, o advogado garante ainda que Luísa Teixeira não terá nada a ver com o caso e acusa PJ e MP de estarem a fazer “pesca à rede”, a partir das denúncias de familiares de antigos pacientes.

“O caso da Luísa é surreal, estamos a falar de uma pessoa com uma formação académica fora do comum que foi autora de uma das últimas grandes descobertas aqui no Algarve no que diz respeito à antropologia. Pessoas destas de repente verem-se detidas e terem de dormir duas noites nos calabouços da GNR de São Brás de Alportel… não foi uma experiência muito agradável.”

Já questionado sobre se Ilona Wilding está ou não certificada como terapeuta de medicina alternativa em Portugal, o advogado não é, ainda assim, conclusivo: “Ela diz que sim. Eu sou um mero advogado, agora tenho de apurar se as qualificações dela são reconhecidas em Portugal ou se foram tiradas em Portugal”.

Cédulas profissionais inválidas e uma clínica com vários nomes mas sem licença para funcionar

Num dos diretórios de empresas em que Ilona Wilding e Alexandra Lazuk estão registadas, na mesma clínica na zona industrial de Olhão que vai assumindo nomes diferentes, conforme o site visitado — como “Wilding-Astra”, “Grupo SEP – Clínica Lazuk”, “Lacadémie” ou “O Terceiro Olho” —, mas que, de acordo com o MP, não está autorizada por qualquer entidade da saúde a funcionar como tal, há referências às respetivas licenças profissionais.

Ainda antes de uma enumeração dos problemas de saúde em que são “especialistas”, e que vão da depressão aos ataques de pânico, passando por problemas de pele, da menopausa e dos olhos, “crianças com hiperatividade”, autismo e “falta de energia e vontade”, surgem as credenciais. Lazuk, “médica e homeopata”, é detentora da licença número “483/10 de CFFMNC”. Wilding, “médica de Medicina Alternativa e Psicoterapia”, tem a cédula “524/11”, da mesma entidade.

“É uma conduta absolutamente reprovável e que não pode, nem deve ser associada aos profissionais da classe, que fazem questão de se manterem como uma classe à parte da medicina convencional”
José Carvalho Neto, presidente do Conselho Federativo – Federação de Medicinas Não Convencionais

Contactado pelo Observador, José Carvalho Neto, especialista em homeopatia e naturopatia e presidente do CFFMNC, o Conselho Federativo – Federação de Medicinas Não Convencionais, começou por dizer que os nomes das duas mulheres não faziam parte da lista de associados da instituição e remeteu a questão para a lista da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), a entidade que desde setembro de 2013 é responsável pela atribuição de cédulas aos profissionais das Terapêuticas Não Convencionais.

“É uma conduta absolutamente reprovável e que não pode, nem deve ser associada aos profissionais da classe, que fazem questão de se manterem como uma classe à parte da medicina convencional”, realçou ainda, a partir das notícias publicadas no início de março sobre a atuação das alegadas “falsas médicas” do Algarve.

Depois, já na posse da informação relativa aos números das pretensas licenças profissionais de Ilona Wilding e Alexandra Lazuk, José Carvalho Neto recorreu aos arquivos da CFFMNC e percebeu que, afinal, antes de ser eleito presidente da federação, tanto a austríaca como a russa foram propostas como associadas, pela APNA, Associação Portuguesa de Naturopatia — Lazuk a 15 de março de 2010 e Wilding a 20 de março de 2011. Contactada pelo Observador, no sentido de perceber se têm efetivamente registo das profissionais, que formação possuem e em que áreas atuam, a APNA não respondeu às questões enviadas até à publicação deste artigo.

De acordo com o atual presidente, as cédulas emitidas pelo CFFMNC só são válidas por um ano e mediante o pagamento de um selo — situação que nunca chegou a concretizar-se, pelo que os números de licença apresentados não podem ser considerados válidos. Mais: mesmo que esses pagamentos tivessem alguma vez sido assegurados, desde que o licenciamento e fiscalização dos profissionais da área das medicinas alternativas passou para a ACSS, há já 10 anos, o CFFMNC deixou de ter essa competência. Ou seja, as licenças já não seriam válidas há pelo menos uma década.

“Aqui há dois problemas: a senhora ter-se identificado como médica sem ser médica — porque nós não somos médicos, ponto final parágrafo —, e não ter licença para exercer na área das TNC [Terapias Não Convencionais]. Mas se a senhora trabalhar em homeopatia ninguém lhe pode pegar por isso — só por se fazer passar por médica. Se ela se afirmar como homeopata ninguém lhe pode tocar porque não há legislação”
Fernando Neves, presidente da Associação de Medicina Natural e Bioterapêutica

Uma vez que também não constam da listagem da ACSS, depreende-se que Ilona Wilding e Alexandra Lazuk, que, de resto, terá abandonado Portugal antes do início da pandemia, não estão acreditadas para trabalhar na área das medicinas alternativas — exceção feita à homeopatia, “que ainda não tem regulamentação completa” e, por isso, permanece numa zona cinzenta, explica ao Observador Fernando Neves, presidente da Associação de Medicina Natural e Bioterapêutica (AMENA).

“Aqui há dois problemas: a senhora ter-se identificado como médica sem ser médica — porque nós não somos médicos, ponto final parágrafo —, e não ter licença para exercer na área das TNC [Terapias Não Convencionais]. Mas se a senhora trabalhar em homeopatia ninguém lhe pode pegar por isso — só por se fazer passar por médica. Se ela se afirmar como homeopata ninguém lhe pode tocar porque não há legislação”, explica Fernando Neves, ele próprio homeopata. “Em 2011, a AMENA ganhou uma ação contra o Estado que o obrigava a integrar a homeopatia nas TNC. Já passaram estes anos todos e não fizeram nada. Estão à espera de quê? Depois populam pessoas destas…”

Seis mil euros em tratamentos e medicação — pagos em dinheiro e sem fatura

Outro sinal de alarme, que nem assim fez com que Olga Castro decidisse não entregar o pai aos cuidados de Ilona Wilding e de Alexandra Lazuk, foi o facto de as “doutoras” não terem permitido que entrasse na clínica, para acompanhar o paciente.

“Fazia uma lavagem, acho que lhe davam o nome de 'limpeza interior'. Punham-lhe os pés numa bacia de água, transparente, que depois ficava vermelha — diziam-lhe que eram as impurezas a sair”. Depois fazia ainda um tratamento numa máquina que era ligada a um computador, onde aparecia o corpo humano e uns pontinhos vermelhos e verdes. Era como um jogo, 'agora, com o comando, vou tirar este pontinho vermelho e vou por verde'. Elas diziam que ao tirarem aquilo através de raios ultravioletas lhe tiravam o mal dele”
Olga Castro, filha de paciente da clínica

Tudo o que sabe sobre o tratamento a que foi sujeito, em três manhãs consecutivas de janeiro de 2019, foi-lhe transmitido por ele. “Estivemos três dias num hotel, em frente à marina de Portimão. Deixávamo-lo de manhã na clínica, ele passava lá umas horas, e perto do almoço, quando estava despachado, íamos buscá-lo”, recorda Olga, que depois da morte do pai, a quem era muito apegada, entrou numa forte depressão.

“Fazia uma lavagem, acho que lhe davam o nome de ‘limpeza interior’. Punham-lhe os pés numa bacia de água, transparente, que depois ficava vermelha — devia ser algum produto que lá punham, não faço ideia, mas diziam-lhe que eram as impurezas a sair”, descreve. “Depois fazia ainda um tratamento numa máquina que era ligada a um computador, onde aparecia o corpo humano e uns pontinhos vermelhos e verdes. Era como um jogo, ‘agora, com o comando, vou tirar este pontinho vermelho e vou por verde’. Elas diziam que ao tirarem aquilo através de raios ultravioletas lhe tiravam o mal dele.”

Apesar de lhe terem “recomendado” que parasse de fazer quimioterapia, Lino dos Santos Castro nunca abandonou os tratamentos no IPO do Porto. “Fui sempre contra isso, disse-lhe sempre que uma coisa não invalidava a outra. Mas elas queriam que o meu pai abandonasse a quimioterapia, isso foi sempre uma questão que impuseram às pessoas, aconteceu também com o meu vizinho do lado”, revela Olga Castro, que nos últimos tempos percebeu que, em Alijó, são várias as pessoas, familiares de doentes com cancro, com experiências idênticas à sua, na clínica de Olhão.

Era nesta clínica, na zona industrial de Bela-Mandil, em Olhão, que as agora arguidas tratavam adultos, crianças e animais

Em determinada altura, durante o ano de 2019, recorda, as “falsas médicas” chegaram mesmo a instalar-se na Quinta da Seixeda, um hotel em Alijó onde durante alguns dias deram consultas e renovaram os stocks de medicação dos pacientes.

O pai de Olga, que depois dos tratamentos, “coincidência ou não”, diz a filha, até ficou a sentir-se melhor, foi um dos que marcaram hora na ocasião — a “medicação”, que na primeira consulta lhe tinha custado “mais de 700 euros” estava a acabar. “No total, devemos ter gastado uns 6 mil euros. A medicação era tal e qual a da irmã do meu vizinho: um roll on para a língua, que era caríssimo e vinha da Áustria, ou lá o que era; uns comprimidos muito pequeninos, do tamanho da ponta de uma agulha; e no fim umas cápsulas. Eram elas que preparavam os medicamentos, lá na clínica”, revela Olga Castro.

Todos os pagamentos foram feitos em dinheiro, a partir de contas discriminadas mas feitas à mão. Nunca lhe foi passado qualquer tipo de fatura ou recibo. Com a paciente que morreu em fevereiro de 2019 aconteceu exatamente o mesmo, só mudou o valor cobrado: 4.250 euros por cinco dias de tratamento.

De acordo com o Ministério Público, nenhuma das substâncias ou tratamentos receitados aos dois pacientes estão registados nas bases de dados do Infarmed, nem como medicamentos nem como dispositivos médicos. Segundo comunicado da PJ, durante as buscas, feitas não apenas no espaço da clínica, mas também “noutro local, no norte do país”, e na residência da austríaca — onde a portuguesa terá igualmente morada —, foi apreendido “um importante acervo probatório e diversas substâncias presumivelmente perigosas para a saúde”.

“Não tivemos acesso às queixas, mas pelo que nos foi dado a perceber alguns queixosos acham que lhes foram administradas substâncias que se calhar não deveriam ter sido administradas. Mas isso só o resultado toxicológico e uma perícia forense é que podem determinar”
André Caetano, advogado das duas arguidas

Presentes a juiz na semana passada, nem Ilona Wilding nem Luísa Teixeira responderam a qualquer questão sobre o assunto. “Por estratégia de defesa, sobre os factos remeteram-se ao silêncio”, explica o advogado que as representa. “Segundo a senhora Ilona, teria de estar ali horas a fio a explicar que substâncias eram, tinha quase de ministrar uma formação de medicina alternativa”, diz André Caetano. “Não tivemos acesso às queixas, mas pelo que nos foi dado a perceber, alguns queixosos acham que lhes foram administradas substâncias que se calhar não deveriam ter sido administradas. Mas isso só o resultado toxicológico e uma perícia forense é que podem determinar.”

Um dos componentes apreendidos terá sido o que está na base do roll on que foi receitado ao pai de Olga Castro, o NADH, sigla de “nicotinamida adenina dinucleótido hidreto”. Trata-se de “um composto natural que se encontra em todas as células vivas de plantas, animais e humanos e que intervém em mais de 1.000 processos metabólicos do organismo humano, sendo, portanto, vital para a saúde”, explica o site da Ergivit, empresa portuguesa que produz e revende “suplementos alimentares saudáveis”.

Numa pesquisa no YouTube é fácil encontrar vídeos da própria Alexandra Lasuk, em formato televendas e em russo, a promover suplementos à base de NADH — que são também vendidos em farmácias e parafarmácias em Portugal, como suplementos naturais para o sistema imunitário. Uma caixa com 60 cápsulas pode custar cerca de 70 euros.

“A Ilona tem uma componente humana muito grande que faz muita falta nos médicos tradicionais”

Ana Domingos tem 47 anos e diz que é paciente de Ilona Wilding há pelo menos 12. Não apenas ela, mas também o marido, a enteada, os três filhos — incluindo a bebé, de apenas 5 meses —, e até o cão, são seguidos e já foram medicados inúmeras vezes com as “bolinhas” receitadas e preparadas pela austríaca.

"É um granulado, a que nós chamamos ‘bolinhas’. Chego lá, digo quais são os sintomas — se é para defesa do sistema imunitário, ou porque algum de nós comeu alguma coisa que não devia —, e depois ela faz o granulado como ela sabe fazer. Durante a gravidez fui lá e a minha bebé já tomou bolinhas para as cólicas. Tive um parto muito difícil, uma depressão pós-parto complicada, e nessa altura ela também me deu uma grande ajuda"
Ana Domingos, paciente da clínica

“Eu e os meus filhos não temos um sistema imunitário muito forte — porque temos síndrome do cólon irritável e foro alérgico — e, regra geral, os medicamentos que nos dão fazem-nos mais mal do que bem. Foi por isso que decidi experimentar os tratamentos da Ilona. É um granulado, a que nós chamamos ‘bolinhas’, ela diz que são frequências. Chego lá, digo quais são os sintomas — se é para defesa do sistema imunitário, ou porque algum de nós comeu alguma coisa que não devia — e depois ela faz o granulado como ela sabe fazer”, explica a paciente de Silves, no Algarve. “Durante a gravidez fui lá e a minha bebé já tomou bolinhas para as cólicas. Tive um parto muito difícil, uma depressão pós-parto complicada, e nessa altura ela também me deu uma grande ajuda.”

Desempregada há quase cinco anos, Ana Domingos garante que não só nunca pagou quantias elevadas pelas consultas como geralmente nem sequer paga. “Está lá um papel desde sempre afixado a dizer que quem está desempregado pode ter um grande desconto, quem tem uma família numerosa também paga menos, e quem não tiver dinheiro pode pagar em géneros, como batatas ou fruta”, garante a paciente, assumidamente chocada com as notícias sobre a detenção da terapeuta, que considera amiga. “A Ilona tem uma componente humana muito grande que faz muita falta nos médicos tradicionais. Na primeira vez que lá fui, fez-me um questionário enorme, com coisas a que os médicos não ligam nenhuma: pergunta-me se transpiro muito ou pouco; se gosto mais de doces ou salgados; se bebo muita ou pouca água; para que lado durmo… E muitas das vezes não pago consultas ou pago o mínimo que são 10 euros.”

Apesar de geralmente recorrer à clínica de Olhão por questões de rotina, Ana Domingos conta que, há cerca de seis anos, no dia em que começou a sentir a língua a enrolar-se dentro da boca, depois de uma “fricção no trabalho”, foi para lá que exigiu ir. “Recusei-me a ir para o hospital. Quando cheguei lá ela fez-me um tratamento de radiofrequência, com uns fios, ligados ao computador, e receitou-me bolinhas e óleos. Fiquei com a perna apanhada e com a boca de lado, mas depois, com descanso, com meditação e com o trabalho dela, fiquei operacional em cerca de dois meses. Sugere-se que tive um AVC mas, passados muitos anos, com a insistência da família, fui ao médico e ele acha que não, diz que foi um episódio de burnout”, recorda a paciente, sem esconder a antipatia que nutre pelos “médicos tradicionais” e a confiança que deposita nas “bolinhas”, capazes de tratar tudo, desde os problemas de acne do filho adolescente à alergia grave que há anos fez cair o pelo do cão da família e lhe cobriu a pele de escaras.

Comprovam as várias descrições dispersas pela internet, eram inúmeros os problemas para que se oferecia cura ou tratamento na clínica de Olhão, uns mais tangíveis do que outros — como “ter sucesso na vida” ou “encontrar o amor verdadeiro”.

“A Ilona tem uma componente humana muito grande que faz muita falta nos médicos tradicionais. Na primeira vez que lá fui, fez-me um questionário enorme, com coisas a que os médicos não ligam nenhuma: pergunta-me se transpiro muito ou pouco; se gosto mais de doces ou salgados; se bebo muita ou pouca água; para que lado durmo…”
Ana Domingos, paciente da clínica

A investigação do Ministério Público concentrou-se nas promessas de cura de uma doença específica, o cancro, e entre 4 de outubro de 2022 e 9 de dezembro de 2022 documentou pelo menos quatro casos em que Ilona Wilding e Luísa Teixeira terão garantido a potenciais pacientes que, se seguissem o seu plano de tratamento “completamente diferente”, em alternativa às sessões de radio e de quimioterapia, “muito pesadas para o corpo”, iria “correr tudo bem”.

Hoje, mais de três anos depois, Olga Castro continua sem saber o que motivou a morte do pai. “Não sei o que é que lhe provocou a morte, porque ele também nunca deixou os tratamentos. É triste aproveitarem-se das pessoas que estão carentes e doentes para atingirem fins, mas nós também tivemos culpa. Fomos lá por livre e espontânea vontade. Ninguém nos obrigou”, reflete, garantindo que não tenciona apresentar queixa contra as “falsas médicas”. “O dinheiro já está perdido, e o meu pai também, nada pode trazer o meu pai de volta. Mas se realmente é tudo falso, que se faça justiça.”

Assine por 19,74€

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Assine por 19,74€

Apoie o jornalismo independente

Assinar agora