Quinze dias de verdadeiro caos político no Governo, uma moção de censura chumbada pela maioria e António Costa debaixo de fogo mais do que nunca pela onda de demissões e casos a envolverem governantes e até ex-governantes. Material altamente inflamável para qualquer debate parlamentar. Esta quarta-feira, no entanto, o primeiro-ministro apareceu num registo menos crispado do que tem sido habitual na Assembleia da República, a prometer respostas e a escolher a dedo e em cada caso a maior concórdia que podia conseguir junto da oposição.
A dada altura, o deputado e líder parlamentar da Iniciativa Liberal, Rodrigo Saraiva, notou as diferenças e provocou: “A moção de censura foi verdadeira terapia para o PS”, recordando, ironicamente, que nos últimos dias os socialistas viabilizaram uma comissão de inquérito e várias audições de ministros.
Na resposta, Costa até admitiu que “ninguém gosta” do que se tem passado, fazendo uma espécie de mea culpa ao dizer que “os portugueses censuram o Governo” por isso. A tarde foi longa e o terreno estava minado. Por isso, e desta vez, António Costa foi em modo suave.
Começou a negar e acabou a admitir rever benefício atribuído por Rita Marques
Na bancada social-democrata, estava sentado o mais recente caso político bicudo, o vice-presidente da bancada Pinto Moreira, a braços com um caso judicial. Mas o assunto não foi tocado por ninguém, nem a maioria ousou — até porque no mesmo caso e cidade foi detido um autarca eleito pelo PS em 2021 e a bala faria rapidamente ricochete.
Só o Chega e André Ventura tocaram no assunto, mas para atirar exclusivamente ao autarca socialista Miguel Reis. Costa arrepiou caminho dizendo rapidamente que “todos os políticos ficam envergonhados quando outros políticos são presos”, mas que o mais importante é serem investigados.
Quanto ao mais, tudo foi posto em cima da mesa, sobretudo o mais recente caso a atingir a seriedade do Governo: a ex-secretária de Estado que não cumpriu o período de nojo e está prestes a assumir funções numa empresa que não só tutelou, como também intervencionou enquanto governante.
O caso só chegou ao debate à terceira e pela voz de André Ventura — já que os primeiros partidos a intervir, PSD e IL, enveredaram por outros tópicos. António Costa, para lá de concordar com o líder do Chega, ainda foi mais longe: se Ventura estava 99% convicto da ilegalidade de Rita Marques, Costa dizia estar “99,9%“. “E não tenho a menor das dúvidas de que não é ético”, acrescentou de imediato.
O primeiro-ministro quis criar um cordão sanitário entre o Governo e este caso, dizendo que uma coisa é a decisão política de reconhecimento do estatuto de utilidade turística, tomada pela secretária de Estado há um ano, e outra coisa é o que a ex-governante fez depois de sair do Governo.
Costa chegou a revelar que a Presidência do Conselho de Ministros contactou Rita Marques, mas o entendimento da ex-secretária de Estado é que está dentro da lei — o que também tinha dito ao Observador quando o assunto foi noticiado.
Catarina Martins não ficou satisfeita com os esclarecimentos de António Costa e foi tentando forçar o socialista a comprometer-se com a revogação do despacho assinado pela antiga secretária de Estado do Turismo sobre a empresa para a qual vai trabalhar.
À terceira insistência da líder do Bloco, Costa lá concedeu que ia rever a decisão: “Não custa nada“, assumiu. Atribuiu logo ali a tarefa ao seu ministro da Economia — que pediu a saída de Rita Marques do Governo, na sequência de um episódio de desautorização do ministro sobre a descida do IRC, e que agora acenou logo afirmativamente da bancada o Governo à missão que lhe foi confiada.
Começou por defender o estatuto do gestor público, e acabou a condenar a leitura que Alexandra Reis fez dele
Já no caso Alexandra Reis, o primeiro-ministro voltou a ser confrontado com o episódio que levou à saída de Pedro Nuno Santos e que provocou uma comissão de inquérito à gestão da TAP, que se deve arrastar pelos próximos meses. Apesar de já ter estado no plenário a explicá-lo, Costa ainda tinha uma novidade para dar e, desta vez, para atirar responsabilidades para o lado de lá.
No PAN, Inês Sousa Real, pediu a Costa que revisse a exceção de empresas da aplicação dos limites salariais e não só impostos pelo estatuto do gestor público. Mas o primeiro-ministro escudou-se na questão do mercado concorrencial onde a TAP opera para justificar a existência de salários mais elevados do que noutras empresas públicas. Segundo ao argumento do socialista, o país não pode “ter uma companhia que concorre num mercado em igualdade de condições” sem condições salariais parecidas.
O primeiro-ministro, no entanto, tinha outro argumento guardado e não poupou a gestão que Alexandra Reis fez dessa excecionalidade, defendendo que a antiga secretária de Estado devia ter devolvido parte da indemnização recebida quando saiu da administração da TAP para ser presidente da NAV. “Devia ter devolvido”, assumiu por fim.
O primeiro-ministro foi ainda pressionado pela bancada do Chega para que demita a administração da TAP, mas, aí, não cedeu. O argumento: enquanto decorre o processo de privatização da companhia aérea, “é importante e útil que a empresa tenha a maior estabilidade possível”.
O “circuito” para escolher governantes, versão 2.0
Fosse admitindo parte das culpas ou desviando as atenções para focos que (agora) estão fora do Governo, Costa lá foi tentando suavizar o tom — e aplicou a mesma fórmula ao Presidente da República, particularmente ríspido com o PS nas últimas semanas de crise política.
Foi a propósito do “circuito” para garantir que não há problemas nos currículos ou contas bancárias dos novos governantes antes de serem nomeados, ideia que lançou no debate da semana passada e que foi publicamente posta de lado por Marcelo Rebelo de Sousa, que Costa voltou à carga.
Desta vez, para assumir que já tinha falado com o Presidente antes desse debate e que, não tendo essa solução de partilha de responsabilidades por Governo e Presidência quanto às nomeações sido bem recebida, apresentará uma versão diferente da proposta já esta quinta-feira, em Conselho de Ministros.
Mesmo assim, Costa ainda defendeu o seu ponto: na Constituição (edição comentada por Marcelo Rebelo de Sousa, como recordou), estabelece-se que “o Presidente dispõe de um poder substancial e não apenas formal de controlo político dos membros do Governo propostos pelo primeiro-ministro”.
Falta, assim, saber qual foi o caminho que Costa encontrou para encontrar terreno comum com Marcelo e resolver o problema que mais assombrou o Governo nos últimos tempos: acertar nas nomeações de novos governantes. Uma coisa é certa: no Parlamento, rejeitou as propostas de fazer audições parlamentares prévias às nomeações, argumentando que isso “comprimiria” os poderes presidenciais.
Começou por discutir na economia e acabou a fazer mea culpa pelos desaires dos últimos tempos
Na segunda ronda do debate, três horas e meia depois de ter arrancado e já no seu segundo embate com a Iniciativa Liberal, António Costa reconheceu que os casos dentro do Governo foram um problema real, que “lamenta”, e que até é censurado pelos portugueses – os mesmos que ainda no último debate dizia apenas não lhe perguntarem na rua pelas substituições do secretário de Estado A ou B.
Fê-lo a meio de uma picardia com os liberais, em que lhes atirava mais uma vez a memória do curto governo de Liz Truss (uma associação que a IL rejeita, dizendo que as políticas seguidas por Truss teriam mais em comum com as de Sócrates), para estabelecer o contraste entre o que seriam problemas de fundo nas políticas e os problemas internos, menos importantes para a “estabilidade” dos portugueses.
Mesmo assim, acabou por assumir as complicações trazidas pelos “problemas na vida interna do Governo”: “Ninguém gosta, eu lamento profundamente, lamento junto dos portugueses, os portugueses não gostam, censuram o Governo por isso” – e o Governo retira daí uma “lição”, quis assegurar.
Vindo de Costa, que costuma referir-se à sucessão de problemas no seio Executivo com uma série de “casos e casinhos” empolados pela oposição, foi uma assunção de culpa num tom diferente do habitual. Ainda assim, as discordâncias com a oposição não acabaram por aí – com o Chega, desde logo, a aproveitar para frisar que cada problema parece ser atropelado pelo problema seguinte, prometendo que não vai “esquecer” os casos, mesmo que mediaticamente vão perdendo gás.
Uma das mais recorrentes picardias – e discordâncias de fundo – entre Costa e a direita foi, de resto, o tema do crescimento económico, o mesmo que discutiam quando o primeiro-ministro decidiu voltar a puxar Liz Truss para a conversa. Um pouco por todo o debate, PS desdobrou-se em argumentos contra os números apresentados principalmente por PSD e IL, que falavam num crescimento insuficiente e num país ultrapassado em poucos anos por vários concorrentes da coesão.
Costa puxou de vários números para fazer o contraditório – como é habitual, recordou o contraste entre os quinze anos que antecederam a sua governação e os anos dos seus Governos (“Crescemos dez vezes mais”) e disse preferir comparar Portugal com os países mais desenvolvidos, aconselhando a oposição a usar parâmetros mais ambiciosos.
De tabela em tabela e de gráfico em gráfico, coube ao líder parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias, puxar pelo argumento económico que mais satisfação traria aos socialistas: lembrando a crise da quase-demissão de Paulo Portas (que em 2013 anunciou uma saída “irrevogável” do Governo de Pedro Passos Coelho, acabando por recuar e ficar com o cargo de vice primeiro-ministro) para contrariar o cenário de caos traçado pela oposição, lembrou os efeitos negativos que o anúncio teve, na altura, nos mercados – e a “confiança” que estes mostram agora em Portugal e na sua política de contas certas.
O caos político e económico não está, por isso, para chegar, insistiu o PS – e a comparação com a crise do irrevogável trouxe um visível gozo ao Governo, com António Costa, Mariana Vieira da Silva e Fernando Medina a rirem com vontade na direção do PSD durante a intervenção de Brilhante Dias.
Não que tivessem conseguido convencer a oposição: no final do debate, os liberais acusavam Costa de só olhar para os números da perspetiva que mais convém (nos quinze anos de pouco crescimento que Costa refere, não haveria também fatores externos a ter em conta?, atiravam os liberais).
À esquerda, nada de novo: Bloco de Esquerda e PCP continuaram noutra barricada, apontando para falhas em serviços públicos e acusando o primeiro-ministro de pintar um país cor-de-rosa sem “tradução” na realidade das famílias portuguesas.
Os comunistas chegariam a aconselhar o primeiro-ministro a ir a um supermercado e ver os preços da comida, mas o PS focar-se-ia apenas em malhar na direita – chegando a dizer que só do lado comunista ouvira alternativas sérias, em comparação com o lado direito do hemiciclo.
Costa acabaria, ainda assim, por dizer ao PCP que não tem em mãos poder para fazer o “milagre” de acabar com a inflação, deixando a esquerda pouco satisfeita com as respostas que ouviu.