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KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

Como esconder uma fortuna como a de Joe Berardo em cinco passos

Pode alguém ser responsabilizado por milhares de euros em dívidas das empresas que gere? A lei diz que quem responde pelas dívidas é o património da empresa. E quando o património é afinal do gestor?

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Não foram as únicas frases que geraram polémica na comissão de inquérito à Caixa Geral de Depósitos, mas foram as que mais marcaram a audição de Joe Berardo ao longo de cinco horas. Por um lado, aquele que já foi considerado o quinto homem mais rico de Portugal, com uma fortuna de 890 milhões de euros, e que enfrenta, agora, um processo de execução, assumia de forma tranquila que, “pessoalmente”, não tem dívidas. Quanto ao património disponível, declarava apenas uma garagem no Funchal, claramente insuficiente para fazer face aos cerca de 400 milhões euros devidos à Caixa Geral de Depósitos (e de quase mil milhões, quando somada à do BCP e do Novo Banco). É que, na verdade, essa dívida não é dele, mas da Fundação José Berardo, da empresa Metalgest e da Moagens Associadas, SA, por ele detidas.

Ainda assim, a certa altura, e por insistência dos deputados, Berardo acabou por deixar claro aquilo que acha que, de facto, é seu, embora esteja na propriedade de uma associação que também criou com o seu nome: uma valiosa coleção de arte que adquiriu ao longo da vida e que está exposta no Centro Cultural de Belém. “Nunca eu ia dar aquilo como garantia, aquilo faz parte da minha vida”, acabou por desabafar.

Quem viu e ouviu Joe Berardo no Parlamento ficou com uma dúvida: qualquer pessoa pode ter um vasto património, colocá-lo sob a alçada de empresas ou associações, contrair dívidas e não responder por elas? A resposta curta é: sim — embora a lei preveja vários mecanismos que permitem aos credores provar que determinados bens são, na realidade, daquela pessoa. Quanto à resposta longa, pode lê-la nos pontos seguintes, que explicam como é possível, de facto, ocultar uma fortuna — e à vista de todos.

Passo 1. Ter uma sociedade anónima ou por quotas

O sócio, administrador ou gestor de uma empresa tem, por regra, o seu património pessoal protegido relativamente ao que possa acontecer com a sociedade comercial de que é responsável. Isto porque uma sociedade, quando é constituída, tem personalidade jurídica própria. Ou seja, perante a lei, é vista como uma pessoa (neste caso, coletiva) — logo, tem bens próprios e é responsável por eles. O advogado Alexandre Mota Pinto, da sociedade Uría Menéndez, não tem dúvidas quanto a resposta à pergunta sobre se é possível ter uma dívida de milhares ou milhões de euros e não ser responsabilizado por ela: “Sim, é possível, se o devedor for a empresa e esta for uma sociedade de responsabilidade limitada, caso em que só o património social responde pelas dívidas da empresa”.

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Apesar de as empresas serem geridas por pessoas e de acordo com a sua vontade, os atos que elas praticam são sempre apenas da responsabilidade da empresa. Na verdade, esta separação é crucial na vida económica, porque determina que o risco associado a um negócio não pode ser transferido para a vida do empresário causando, por exemplo, problemas em toda a sua vida familiar. Mas esta regra pressupõe, também, que o empresário tenha património próprio e que a empresa tenha, igualmente, os seus bens, não havendo uma mistura de ambos — o que parece ser uma das questões que se levanta no caso da dívida das empresas de Joe Berardo.

Já no caso de empresas exploradas em nome individual, no entanto, é o empresário que, em seu nome, suporta totalmente o risco da exploração do negócio, sendo responsável com todo o seu património pessoal, e até familiar, perante os credores empresariais.

Nas sociedades anónimas e por quotas há, porém, situações em que os administradores também podem ser chamados à responsabilidade e tenham que recorrer ao seu património pelos danos causados à empresa. Já veremos como.

Apesar de as empresas serem geridas por pessoas e de acordo com a sua vontade, os atos que elas praticam são sempre da responsabilidade da empresa.

Passo 2. Colocar o património nessa sociedade

A lei veio limitar o risco económico dos empresários para, assim, potenciar o investimento e fomentar o risco económico sem medo. Antes, o património pessoal misturava-se com o empresarial e, quando havia uma insolvência, toda a família era afetada pelo negócio; atualmente, a lei separa estes dois mundos e prevê uma responsabilidade limitada para os sócios e administradores.

Mas se, por um lado, estas regras vieram, de facto, profissionalizar as empresas e multiplicá-las, por outro, nalguns casos, tiveram um efeito diferente: houve quem visse nesta possibilidade uma forma de depositar património e gozar dos benefícios fiscais que daí podem advir, criando uma empresa sem sequer ter um qualquer fim comercial. “Um bom exemplo destas empresas são as offshores, que, ainda por cima, permitem escapar ao pagamento de uma série de impostos”, reconhece ao Observador um professor de Direito das Sociedades Comerciais que prefere não ser identificado.

Estas empresas, para onde pode ser transferido e ocultado o património pessoal de quem as detém, têm sido alvo de várias investigações do Ministério Público, no âmbito do crime económico. Exemplo disso é o processo da Operação Marquês, onde é arguido o ex-primeiro-ministro José Sócrates, acusado de ter recebido milhares de euros em luvas que passaram por offshores.

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O património de José Sócrates está, segundo o Ministério Público, diluído em paraísos fiscais e em familiares e amigos

MANUEL FERNANDO ARAÚJO/LUSA

Passo 3. Criar fundações e associações

A lei prevê três tipos de pessoas coletivas privadas: as sociedades, as associações e as fundações. Enquanto as sociedades visam fins económicos, com procura e repartição de lucros, as associações não têm fins lucrativos e podem ser de índole cultural ou social, por exemplo. Já as fundações gerem um património que pode ter um fim socialmente relevante, seja religioso, moral, cultural ou de assistência. Existem fundações privadas e fundações públicas — criadas por entidades públicas —, que podem ser de direito público ou de direito privado (estas últimas são criadas com a participação de privados).

A primeira fundação criada por Berardo, na zona franca da Madeira, nasceu em 1988 com o nome de “Fundação Berardo”. Logo nessa altura, o próprio José Berardo doou o Monte Palace à fundação, com o objetivo de recuperar edifícios e jardins botânicos que estavam abandonados desde 1945. O objetivo foi cumprido e, segundo a página do Monte Palace na internet, o espaço pode hoje ser visitado pelo público.

No entanto, Berardo não se desligou deste património. Nos estatutos da fundação, citados pelo Diário de Notícias da Madeira em 1994, pode ler-se que os bens doados pelo empresário madeirense, com percurso profissional na África do Sul, teriam de “prover à habitação, sustento, educação, saúde e demais despesas” dele e da sua família. “Os bens que vierem a ser afetos pelo fundador ficarão sujeitos ao encargo expresso da beneficiária [a Fundação] prover à habitação, sustento, educação, saúde e demais despesas, encargos e alimentos do fundador, seu cônjuge e descendentes”. Mais. “No caso da fundação se extinguir antes da morte do fundador ou do último dos seus descendentes, os bens afetos à fundação pelo fundador, ou dos que estejam no lugar deles, reverterão para o mesmo fundador ou seus descendentes”.

De acordo com a Lusa, estas disposições estatutárias chegaram a despertar, na altura, dúvidas ao próprio Ministério Público do Funchal, que acabou a pedir a nulidade das mesmas por considerar que permitiam “a evasão e fraude fiscal” e serem “contrárias à lei” que regulava o funcionamento das instituições de solidariedade social. No entanto, o tribunal acabou por ser maioritariamente favorável à Fundação de Berardo, declarando apenas nulo o artigo que dava ao fundador “para si o direito de dispor, por morte ou por ato entre vivos, dos bens a afetar à Fundação”.

Berardo alegou então que aquela alínea “só tinha razão de ser porque a Fundação aguardava na altura resposta ao pedido da sua legalização”, motivada pela então reforma do sistema fiscal. Também na Associação Coleção Berardo, onde o empresário tem grande parte das suas obras, há um artigo nos estatutos que prevê que os bens daquela associação só possam ser vendidos com a sua autorização.

A Fundação Berardo acabaria mais tarde a adquirir também a Quinta da Bacalhôa, em Azeitão, uma antiga propriedade da Casa Real Portuguesa, e tem ainda 48,8% da Empresa Madeirense de Tabacos. Além disso, integra a lista de associações e fundações que podem beneficiar de 0,5% do seu IRS, caso assim o consigne.

"Não é proibido uma fundação ter ações, mas ela não é feita para isso".
Professor de direito

Apesar de não prever quaisquer lucros, foi com esta fundação que Joe Berardo avançou para a compra de ações do Millennium BCP em 2007, com dinheiro emprestado pela Caixa Geral de Depósitos — uma dívida que não foi paga e pela qual está a ser executado. Há já uma ação executiva a correr no Funchal na tentativa de fazer face a esta dívida — anterior à que entrou neste último mês de abril subscrita por três bancos. Nesse processo, terá sido extraída uma certidão para apurar se, de facto, a Fundação José Berardo pode fazer investimentos de risco associados à aquisição de ações.

O professor de Direito das Sociedades Comerciais contactado pelo Observador lembra que “não é proibido uma fundação ter ações”, mas sublinha que “ela não é feita para isso”.  E nem sequer vislumbra nos fins elencados nos estatutos da fundação qualquer intenção possível na compra de ações de um banco. Ainda assim, foi isso que aconteceu: a maior parte das ações foi adquirida por Berardo por via da Fundação; uma outra parte foi por via da sua empresa Metalgest e da Moagens Associados.

Há ainda uma outra fundação que conta com a participação de Berardo: a Fundação de Arte Moderna — Coleção Berardo, em Lisboa. Também é privada, mas foi criada pelo Estado, pela Fundação Centro Cultural de Belém, por Joe Berardo e pela sua associação, que detém as obras de arte expostas no CCB. O objetivo do Governo da altura, liderado por José Sócrates, era o de criar um museu de Arte Moderna e Contemporânea, aproveitando o acervo do colecionador e disponibilizando-o ao público. Para isso, foi criado um museu com o seu nome no Centro Cultural de Belém e até ficou convencionado que o Estado pagaria as despesas de funcionamento da fundação. Mais: entre 2007 e 2015, foi mesmo criado um fundo para aquisição de obras de arte, para o qual o próprio Estado contribuía anualmente com meio milhão de euros, lê-se no decreto-lei que, em 2006, instituiu a fundação.

As obras expostas no museu seriam as que, ainda antes do aparecimento da fundação, Berardo tinha na Fundação Berardo e na tal associação que criou, a Associação Coleção Berardo.colocado no nome de uma associação, que também criou. Aliás, as obras dessa Associação Coleção Berardo são compostas por dois acervos: uma está na associação, outra na Fundação de Arte Moderna. No total, era uma coleção de arte que chegou a ser avaliada em 500 mil euros e que, agora, os bancos querem penhorar.

Joe Berardo criou uma associação à qual doou as suas obras de arte, que estão expostas no museu da Fundação

Carlos Manuel Martins / Global Imagens

Passo 4. Conseguir um crédito de um banco sem garantias

Berardo é, de acordo com a auditoria da EY à Caixa, o segundo maior devedor do banco público. Melhor: os devedores são a Fundação Berardo (com 267,6 milhões) e a Metalgest (com uma dívida de 52,5 milhões), depois de terem deixado de pagar um crédito contraído para comprar ações do BCP. Mas nem todos conseguem um crédito como este: a garantia dada foram as próprias ações a comprar, que acabariam por se desvalorizar até atingirem um valor que não permitia pagar a dívida inicial.

Se, por um lado, se fala na responsabilidade de um administrador de uma empresa perante uma dívida, por outro também se pode falar na responsabilidade dos gestores do banco (que, neste caso, é um banco público) quando lhe concederam um empréstimo que deixou de pagar em 2008, já há onze anos, provocando também um buraco financeiro no próprio banco.

Os juristas contactados pelo Observador são unânimes: é necessário perceber quem é que, no banco, deu o parecer do crédito e se os administradores ou os gestores desse mesmo banco agiram de forma criteriosa e como lhes era exigido. “De um administrador exige-se mais do que um homem médio, o administrador não pode ter o mesmo nível técnico”, lembra o professor. “Se o crédito a Berardo não obedeceu a regras internas em relatórios de risco — imagine que entrou logo na administração — é a demonstração clara de que alguém mandou fazer. Imagine que um analista de risco não percebe a racionalidade do crédito: o procedimento foi observado?”, interroga outro advogado.

Neste caso, há vários tipos de responsabilidades que lhes podem ser atribuídas, seja por culpa, negligência ou dolo (aqui podem até entrar crimes previstos no Código Penal, como o crime de insolvência dolosa, por exemplo). Significa isto que, também aqui, o administrador ou gestor pode ter que vir a responder com o seu património pessoal, caso seja responsabilizado pelas perdas da empresa. No entanto, referem os juristas contactados, estes cargos os profissionais têm, normalmente, seguros que podem ser ativados, caso seja necessário responder por isso.

“Eu diria que quem financia estas atividades tem que ter mais cuidado. Imagine que eu lhe empresto um milhão de euros e que não o tem. Se eu o fizer sabendo de antemão que aquele financiamento não vai ser pago, então há uma responsabilidade por dolo”, refere o professor. “Uma pessoa vai pedir um empréstimo ao banco para fazer uma compra, cabe ao banco exigir as garantias necessárias que cubram o risco deste financiamento. Se eu peço dinheiro para comprar ações, e o banco pede para ficar com o valor das ações, elas podem desvalorizar e então não chegam para pagar a garantia. Se o banco não pede mais garantias, o problema é do banco”, resume a seco.

O divórcio de Oliveira e Costa foi anulado para que o Estado recuperasse o património que passou para o nome da mulher

MARIO CRUZ/LUSA

Passo 5. Evitar a “bomba atómica”

Cada caso é um caso, mas a lei fornece inúmeros caminhos aos advogados que recorrem ao tribunal na tentativa de conseguir que uma dívida seja paga aos seus clientes.

Além da possibilidade de anular artigos nos estatutos das fundações e associações, por exemplos, também é possível anular negócios que possam ter sido celebrados e que contribuíram para a situação de dívida, a lei prevê a possibilidade de anular todas as transações que se perceba terem servido para o devedor ocultar o património. Neste caso existem, por exemplo, as impugnações paulianas, usadas contra os empresários que, ao perceberem que o credor lhes pode vir buscar os bens, começam a vender património a preços mais baixos ou mesmo em negócios simulados, colocando-os em nome de familiares.

Foi o que aconteceu, por exemplo, com Oliveira e Costa, o ex-ministro de Cavaco Silva que estava à frente da Sociedade Lusa de Negócios, que explorava o BPN. Pouco depois de rebentar o escândalo do BPN, em 2008, o banqueiro divorciou-se e deixou no nome da mulher três casas que possuíam no Algarve, no Cartaxo e em Lisboa. A empresa pública Parvalorem, para onde o Estado passou todos os ativos tóxicos do ex-BPN para o conseguir vender, acabou por avançar em tribunal com uma impugnação pauliana. Ou seja, pediu que o divórcio de ambos fosse anulado, com o objetivo de chegar àqueles bens, com um valor patrimonial de mais de 880 mil euros.

As frases do juiz que condenou Oliveira Costa a 14 anos de prisão

O caso de Joe Berardo é mais específico e esperam-se maiores dificuldades, como defendeu o antigo presidente do conselho fiscal da CGD, Eduardo Paz Ferreira, aos deputados que compõem a comissão de inquérito. O jurista considerou “extremamente difícil” que o banco consiga recuperar as garantias dadas pelo empresário madeirense, por se tratar de “uma enorme confusão jurídica” que envolve “a Fundação Berardo” e “as ligações com o Estado”. E desejou “muito boa sorte” à atual administração da Caixa na “operação ‘kamikaze’ para conseguir ir ao ‘core’ do senhor Berardo”.

Nessa tal “operação kamikaze”, os advogados do BCP, da CGD e do Novo Banco esperam avançar com uma ferramenta vista como uma “verdadeira bomba atómica”, segundo o professor de Direito Comercial contactado pelo Observador: a desconsideração da personalidade jurídica das empresas de Berardo. Como já foi explicado, é o facto de essas empresas terem personalidade jurídica coletiva que faz com que o património pessoal dos sócios esteja protegido. Se essa personalidade jurídica for desconsiderada, então poderá chegar-se ao património pessoal dos sócios, como se de empresas unipessoais se tratasse.

“Em casos de abuso da personalidade coletiva, para fugir intencionalmente ao pagamento de dívidas, os tribunais poderão desconsiderar a personalidade coletiva da sociedade devedora, permitindo que os credores sejam pagos pelo património pessoal dos sócios”, explica, por seu turno, o advogado Alexandre Mota Pinto, que fala genericamente e sem conhecimento do caso concreto.

O problema é que a desconsideração da personalidade jurídica da Metalgest e da Fundação Berardo que tem as obras de arte do colecionador pode ser a melhor hipótese que os bancos têm para recuperar, pelo menos, uma parte da dívida. Mas pode, na prática, valer de pouco. É que esta figura pretende chegar aos bens pessoais de José Berardo, mas José Berardo, formalmente, não tem bens — a não ser a tal garagem na Madeira. Mais: a coleção de quadros que os bancos tentam ir buscar para fazer face à dívida não está nem num lado, nem noutro. Está na Associação Coleção Berardo.

"Em casos de abuso da personalidade coletiva, para fugir intencionalmente ao pagamento de dívidas, os tribunais poderão desconsiderar a personalidade coletiva da sociedade devedora, permitindo que os credores sejam pagos pelo património pessoal dos sócios”.
Advogado Alexandre Mota Pinto

Para complicar mais o caso, Berardo chegou a fazer um acordo com os bancos quando deixou de pagar a dívida, concedendo-lhes títulos representativos da associação, mas esta participação dos bancos na associação não os torna donos da totalidade das obras. Com outra agravante: na última alteração estatutária à associação, em 2016, Berardo fez constar que qualquer venda ou transmissão de títulos tem de ser aprovada por ele próprio. O que significa que, mesmo que aqueles títulos sejam executados pelo tribunal, só podem ser vendidos se Berardo autorizar. Também um acordo feito com o Estado pouco antes garantia que as obras expostas no Museu Berardo não podiam ser vendidas até 2022 — nem que ele próprio quisesse.

Estado pode comprar Coleção Berardo, mas comendador continua a mandar

Para já, os advogados avançaram com uma ação executiva para pedir a penhora dos bens da Associação, na tentativa de chegarem às obras de arte. Essa ação sumária, cujos contornos foram já noticiados pelo Observador, foi entregue diretamente a um agente de execução, o que significa que só depois da penhora é que Berardo poderá opor-se à iniciativa dos bancos — que revelam que o comendador lhes deve quase um milhão de euros. Berardo não deverá fugir dos argumentos que apresentou na comissão de inquérito, referindo que nunca entregará a sua coleção de arte, que, por outro lado, não tem dívidas e que os bancos têm todos os títulos representativos da Associação. Só depois os advogados deverão avançar com os argumentos da desconsideração jurídica, tentando mostrar que, afinal, o empresário tem património próprio que pode pagar as dívidas, embora esteja sob controlo de uma associação.

Documento mostra o que os bancos exigem a Berardo (e o que Berardo não pagou)

A desconsideração da personalidade jurídica não está prevista na lei por estas palavras, mas tem sido desenvolvida pela jurisprudência nos últimos anos. Os livros de direito não estão muito de acordo quando à primeira vez em que um tribunal português aplicou o conceito — uns dizem década de 40 e outros década de 70 —, mas, atualmente, a opção é vastamente aplicada, refere um jurista contactado pelo Observador. Esta ferramenta jurídica tem sido cada vez mais usada nestes casos e tem como finalidade responsabilizar os sócios pelas perdas das empresas, garantindo que os credores recebem o dinheiro em dívida.

Eduardo Paz Ferreira, jurista da CGD, duvida que haja uma forma de executar os bens de Berardo

NUNO FOX/LUSA

O professor de direito das sociedades contactado pelo Observador explica que, nestes casos, o tribunal decide que quem deve ser considerado no processo é a pessoa e não a empresa — logo, são os bens dessa pessoa que respondem ao processo de execução. Aos tribunais portugueses têm chegado inúmeros casos de sociedades criadas apenas para esconder bens, algumas sediadas em paraísos fiscais, com gerentes locais e que, muitas vezes, até ocultam os verdadeiros beneficiários, recorrendo a “testas de ferro”. Provando-se que houve, de facto, um abuso do direito concedido à sociedade ou mesmo fraude, também cabe ao juiz fazer a referida desconsideração e responsabilizar a pessoa e não a empresa.

Existem ainda, nesta ordem de ideias, outros tipos de “desconsiderações” no mundo dos negócios que nem sequer chegam à barra do tribunal. Por exemplo, quando um banco concede um crédito a um empresário que abriu uma sociedade com um capital reduzido, mas que o faz porque a pessoa que pede o crédito tem muito património e é, por isso, uma garantia pessoal. “É uma desconsideração por parte do banco”, explica o jurista. Esta desconsideração poderá ter acontecido quando Joe Berardo pediu o crédito à CGD para comprar ações do BCP, o que conseguiu sem qualquer garantia além das próprias ações. Poderá agora ser feita em relação aos quadros que estão na associação, de forma a atribuir a sua propriedade a Berardo?

De que se ri Berardo? A história de 7 negócios de Joe

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