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“O outro estado de emergência é aqui na nossa tola”, diz Mariana Cabral, mais conhecida por “Bumba na Fofinha”, num dos mais recentes vídeos feitos em plena quarentena, onde explora a solidão, o overload de iniciativas online numa altura em que estamos todos fechados em casa, as insónias, as discussões em casal e o stress em família. A humorista ironizou recentemente sobre o estado da saúde mental de quem está confinado em casa e, entre tiradas cómicas e coreografias dispersas, deixou uma mensagem importante para quem a segue (o vídeo foi visualizado quase 400 mil vezes) : “É normal estarmos em baixo, é normal estarmos desmotivados, é normal estarmos à beira de um ataque de nervos. Não temos controlo absolutamente nenhum sobre o futuro. Não fomos feitos para isto, portanto o primeiro passo é aceitar que estamos a dar nosso melhor. (…) Peçam ajuda.”
Se, no início, a quarentena a que estamos praticamente todos sujeitos tinha objetivos específicos, com um conjunto de incentivos e um sentimento generalizado de esperança a contribuírem para o isolamento social, agora a novidade de estar em casa extinguiu-se e o seu prolongamento, bem como a incerteza quanto ao final, pode ajudar a que um “sentimento de quase desesperança” se instale. As rotinas tão amplamente divulgadas podem começar a ceder e as perguntas “estou a fazer isto porquê e para quê” a incomodar. A novidade é, sem dúvida, um grande motor e, no caso da quarentena, as novas rotinas resultaram ao início de um objetivo concreto, comum. “Quando isto começa a prolongar-se, quando há um risco de eternização, essas mesmas rotinas começam a ser um pesadelo”, atesta a psicóloga Catarina Mexia.
Passados dias e até semanas, é possível que surja o sentimento de impotência. Afinal, coisas tão simples como arranjar as unhas ou ir ao cabeleireiro deixaram de ser possíveis, ainda que temporariamente. “São coisas básicas, mas dão-nos sentido de liberdade”, continua Mexia. E podem, de certa forma, mexer com a boa disposição. “Entrar numa situação como esta obriga-nos a fazer um processo de luto, obriga a que as pessoas sejam capazes de deixar aquilo que era a vida delas: os planos, as férias da Páscoa, os contactos… O processo de luto tem vários passos e o primeiro é logo a negação. Quando estamos em negação é-nos mais fácil adotar comportamentos adaptativos. Conseguimos pensar ‘Isto vai passar’. As pessoas atiram-se às coisas na perspetiva de que isto não é tão grave.” Claro que o fator personalidade é determinante — há quem se adapte melhor, há se adapte pior. Nestas circunstâncias, quem tiver uma “boa gestão de emoções” vai, provavelmente, “passar muito melhor”.
Após a negação, é natural que se instale algum sentimento de revolta, que pode ser agravado pelo stress da situação, sobretudo para famílias com crianças e idosos a cargo — crianças que podem ser hiperativas e idosos que podem ter problemas de demência. “A reação de raiva é, provavelmente, algo que as pessoas começam a sentir. Não há prazos certos para isto acontecer e nem sempre as coisas acontecem nesta ordem.” Mexia explica ainda que a depressão pode ocorrer, sendo este um estado “em que deixamos cair os braços”. O cenário de desistência pode manifestar-se precisamente na dificuldade em manter as rotinas pré-estabelecidas, nas alterações de padrão do sono, nas alterações do regime alimentar ou no consumo excessivo de álcool. Tudo isto podem ser sinais de que não se está a conseguir lidar com o aumento da ansiedade. Mas há formas de trabalhar sobre essa mesma ansiedade, como tentar perceber quais as emoções em jogo e distinguir o que é um comportamento nosso ao invés do que resulta do medo que possamos estar a sentir.
O isolamento é físico e não social, lembra o bastonário da Ordem dos Psicólogos, que atesta a importância de se tentar perceber se existem — e por que existem — alterações no humor, como irritação, e nos padrões de sono. “A primeira coisa a fazer é aceitar que podemos não nos sentir bem. A restrição de liberdade já dura há algum tempo. É natural que existam sensações de irritação, nervosismo, ansiedade, as quais podem notar-se mais com o tempo”, diz Francisco Miranda Rodrigues.
Em caso de descontrolo nos momentos de tensão e de fragilidade emocional, Catarina Mexia aconselha a procurar ajuda. Mas quando o controlo é possível, a dica passa por tentar encontrar as ferramentas que já antes funcionavam connosco, seja conversando com pessoas ou procurando informação fidedigna que normalize estes sentimentos. Há sempre estratégias a adotar e algumas delas incluem a criação de limites de tempo — porque, se nos perspetivarmos continuamente num futuro longínquo, vamos estar, de certa forma, a programar-nos para o insucesso. “É importante estabelecer metas mais curtas. O sentimento de competência e de controlo são duas coisas fundamentais que devem ser criadas à nossa medida.”
“A Covid-19 vem aumentar os desafios à parentalidade”
Lara Guimarães, de 34 anos, está em confinamento em casa com o filho de quatro anos e o marido de 41. A maior dificuldade tem sido a criação de rotinas e a manutenção dos horários de sono que existiam antes da pandemia. Enquanto o pequeno Samuel acha “que está de férias” e mostra pouco interesse em, eventualmente, regressar à escola, os pais preocupam-se em entretê-lo num t2. Ao Observador, Lara confessa a preocupação com o uso acrescido de tablets e o gosto pelos videojogos que, entretanto, tornou-se “num fator de stress”. “Tentamos fazer atividades com ele, mas acaba por ser muito em vão. Ele está muito fixado nos tablets, faz as atividades a despachar, como se fosse um frete.” Numa altura em que o marido trabalha mais horas do que se estivesse no escritório — o hall de entrada passou a ser o novo local de trabalho —, é ela quem tem mais facilidade em flexibilizar o horário e passa mais tempo de volta do filho e da casa. “O Samuel acorda tarde e deita-se tarde. Antes era mais fácil a questão das rotinas, durante a semana era tudo muito controlado”, diz. Atualmente, Lara passa a maior parte do tempo na cozinha, onde planeia as diferentes refeições e idas ao supermercado — e de cada vez que traz compras para casa tranca-se na cozinha, não vá a curiosidade de Samuel atrapalhar o processo de desinfeção. “Ninguém está normal da cabeça”, atira.
A história de Filipa Marques, 33 anos, é semelhante ,não estivesse ela também em confinamento — com a agravante de que está em casa sozinha com dois filhos, uma menina de seis anos e um menino de 22 meses. Separou-se antes da pandemia. Na semana em que ia entregar os papéis do divórcio à Conservatória, o país parou. Ela e os filhos também. Os pais vivem a 250 quilómetros de distância. “Basicamente, estou fechada no apartamento, não tenho ninguém com quem os deixar para ir ao supermercado. Estou presa em casa”, conta ao Observador. As compras são online, feitas com duas semanas e meia de antecedência, e trabalhar é praticamente impossível, só entre as 23h e as 01h, entre a filha adormecer e o filho acordar — as rotinas de sono de ambos ficaram alteradas, ela adormece mais tarde, ele dorme mal durante a noite.
“Eles são muito dependentes. Ele quer colo, que brincar, que ir buscar alguma coisa a estante, que trepar móveis e atirar coisas ao chão. Tenho de estar sempre em cima dele. Há dias em que corre tudo mal, um morde o outro… não brincam bem às mesmas coisas porque têm idades diferentes. Estão sempre a implicar, aos gritos. Às vezes dou por mim a gritar mais do que o normal. Uma pessoa chega a um estado de saturação…” O cansaço de Filipa é mais emocional do que físico e há um dia por semana em que se permite ir abaixo e chorar tudo de uma só vez. Não tem ninguém com quem dividir as tarefas. “Com a história do meu divórcio, que foi uma coisa inesperada, comecei a ir a uma psicóloga. Com isto tudo havia a possibilidade de continuar as consultas ao telefone, videochamada, etc., mas tive de parar porque durante o dia não tenho como me isolar durante uma hora.”
O “burnout parental” acontece mesmo sem a existência de uma pandemia e afeta sobretudo famílias com mais fontes de desafio do que de apoios. A expressão que deriva do já conhecido e discutido burnout é introduzida na conversa por Filomena Gaspar, docente na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra. Ao Observador, explica que faz parte de um consórcio de investigadores internacionais, de cerca de 70 países, dedicado exclusivamente ao conceito de “burnout parental”, projeto que arrancou em 2017. “Os pais podem entrar em burnout e é importante reconhecê-lo. É uma síndrome que está a aumentar em todo o mundo. A parentalidade deixou de ser olhada apenas como uma experiência positiva. Não é só um papel de fonte de bem-estar emocional. Às vezes pode gerar sofrimento e não podemos negar o direito de se sentir tristeza”, afirma. Importa, no entanto, esclarecer que apenas “burnout” figura no DSM (Manual Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais).
A introdução serve para explicar que, em tempos de quarentena, as famílias mais vulneráveis são aquelas que já antes se encontravam numa posição de fragilidade, que pode incluir dificuldades nas relações de casais (casais em que um dos membros já não é, por exemplo, fonte de suporte na parentalidade ou em que existe irritação, descrédito e até agressividade). A isso acresce o confinamento a espaços pequenos, por vezes sem varandas, e realidades em que existem problemas socioeconómicos. “A Covid-19 vem aumentar os desafios à parentalidade”.
Com ou sem pandemia à mistura, há duas realidades a ter em conta que anunciam o tal “burnout parental”: os pais podem desligar-se emocionalmente das crianças e ficam-se por apenas responder às necessidades básicas — do ponto de vista emocional, os mais novos são negligenciados — ou a irritabilidade ou agressividade destes pode vir à tona (quem diz pais, diz pai e/ou mãe). O burnout não aparece de um momento para o outro. Se se sentir em tempos de pandemia é porque, por norma, já antes existiam outros indicadores.
A maioria dos pais, diz ainda a docente, não vai desenvolver uma doença mental. Vai, ao invés, sentir frustração, falta de ânimo, irritação ou até desespero. “A pandemia veio aumentar fontes de stress e uma dessas fontes é estar o tempo todo em casa, estar-se confinado a 24 horas de interação por vezes intensa para as quais não se tem, ao início, respostas. É tudo novo”, explica. Dito isto, uma recomendação imediata passa por não fazer deste momento o momento de decisões. “Isto não vai durar para sempre. Neste momento, estamos a pedir às pessoas para serem pais, professores, profissionais, marido e mulher e até filhos. [Os adultos] têm de cozinhar, limpar e garantir as rotinas básicas de sobrevivência de uma família. É normal os pais sentirem que não estão a conseguir.” Catarina Mexia acrescenta: “Os adultos vão ser os heróis desta história”.
Crianças em casa: “Temos de nivelar expetativas”
Aborrecimento, saudade dos amigos e, em alguns casos, da noção da escola. Inês Afonso Marques, psicóloga clínica e psicoterapeuta infantojuvenil, afiança que numa fase de confinamento é natural que surjam emoções ambíguas nas crianças. Podemos assistir a tristeza, calma, aborrecimento e zanga num curto espaço de tempo, num mesmo dia. A psicóloga continua a dar consultas, ainda que virtualmente, e afirma que o sentimento mais verbalizado é o aborrecimento por se estar fechado em casa — motivo pelo qual é saudável e natural que as crianças tenham muita energia para gastar, mesmo que isso signifique brincar a correr ou falar mais alto. Pode é ser um desafio para os pais, sobretudo se estiverem em teletrabalho. “Temos de nivelar expetativas”, diz. “Os adultos em teletrabalho não vão conseguir manter o mesmo nível de produtividade e as crianças têm de perceber que os pais estão ali, mas não a 100%.” Isso implica negociação.
Ao mesmo tempo que os dias precisam de ser estruturados, as rotinas — ainda que essenciais para promover um sentido de previsibilidade e para garantir que as crianças não se sintam perdidas e/ou irritadas — também têm de ser mais flexíveis. “Tenho sugerido aos pais que façam pequenos turnos, que façam pausas de trabalho planeadas de 10 a 15 minutos, para que ao longo do dia os miúdos tenham um pouco de atenção plena dos pais. Isso funciona como um balão de oxigénio e pode evitar a saturação”, continua a psicóloga. Por parte dos pais, também é solicitado tolerância ao barulho acrescido e à desarrumação e que criem momentos específicos para a libertação de energia dos mais novos. Relativamente ao sono, “convém não desvalorizar”, diz, dada a tendência em “esticar horários”, uma situação que inadvertidamente pode aumentar a irritabilidade das crianças, o que se traduz ao nível da agitação.
Filomena Gaspar lembra que as crianças não podem perder os amigos da escola, pelo que incentiva que a interação social continue a existir dentro de um horário definido. E faz um apelo: a quarentena não é a altura para os pais fazerem tudo o que sempre quiseram fazer com os filhos. Estar confinado já é um momento de novidade para uma criança, pelo que “não é preciso abrir guerras”. Os pais podem, no entanto, envolver os filhos nas tarefas da casa — isso não só aumenta o seu sentido de responsabilidade, como contribui para a respetiva saúde emocional dado que a criança sente-se parte da família. “É preciso escolher as batalhas. Recomendamos que os pais pensem em comportamentos que querem ver reduzidos — se são as birras ou as brigas entre irmãos, por exemplo — e escolherem dois comportamentos e atuar sobre eles, enquanto se é mais tolerante face a outras coisas.
A psicóloga Catarina Mexia acrescenta que os pais precisam de ter um cuidado redobrado na forma como se expressam dado que as crianças funcionam tal qual uma esponja, e chama a atenção para um conjunto de comportamentos que “precisamos de entender como sofrimento”, como pedir mais colo ou pedir ajuda em coisas que já eram autónomas. Mexia recorda ainda que também os adolescentes precisam de rotinas e de muita tolerância e compaixão por parte dos pais, eles que continuam a atravessar uma fase mais difícil e que “perderam amigos e grupos de pares” que ajudavam a moldar os seus comportamentos. “Eles querem estabelecer os seus limites e isso é difícil estando confinado num espaço com as pessoas que ditam as regras. E nem todas as casas têm quartos para toda a gente.”
Em última análise, os pais precisam de continuar a cuidar de si próprios e a ter momentos só para eles, se possível, bem como ser honestos com os filhos e não esconder as emoções negativas.
Idosos. “Há a consciência de que estão mais perto do fim”
Nesta fase, os idosos já terão ganhado uma maior consciência do perigo e dos riscos que correm, um ganho que vem, no entanto, acompanhado de um algum sentimento de tristeza e incerteza — afinal, não sabemos quanto mais tempo isto vai durar. E o tempo, assegura Maria José Núncio, doutorada em Sociologia, professora universitária e mediadora familiar, é sentido de forma diferente para a população mais velha, uma vez que há receio de morrer sem voltar a ver filhos e netos. É esta “a consciência de que estão mais perto do fim e de que este possa ser um fim solitário”. A solidão contribui para um aprofundar deste sentimentos, uma vez que quanto mais tempo estiverem sós, mais provável é que pensem nestes assuntos.
“São pessoas com condições debilitadas. Há pessoas que passam o isolamento no sofá à frente da televisão a pensar justamente nisso durante várias horas do dia… Como, por norma, dormem menos, passam mais tempo acordados e a pensar nos receios”, diz ainda a coautora do livro “Os meus pais estão a envelhecer”. Os receios podem ser muitos e estar também relacionados com a saúde e o futuro das pessoas que lhe são próximas — convém não esquecer que na sequência da crise económica de 2008 foram muitos os pais que voltaram a dar guarida aos filhos já adultos. “Há medo de, entretanto, morrerem e já não lhes poderem valer.”
Maria José Núncio refere ainda o tempo passado a ver notícias que pode, inclusivamente, “gerar receios novos”, pelo que uma das estratégias a adotar passa pelo papel da televisão, a grande companhia desta população, que idealmente deveria focar-se numa mensagem o mais positiva possível, ainda que não aligeirando o risco, mas “reduzindo efetivamente o alarmismo e todo o terror dos números”. Mas a família também pode ajudar a distrair os mais velhos, falando mais vezes com eles e tentando excluir o novo coronavírus das conversas. Convém não esquecer, no entanto, que existem diferentes recursos entre os mais velhos, pelo que é de aproveitar que quem tenha mais competências faça uso das redes sociais e das tecnologias de maneira a promover uma aproximação com a família.
“Antes de ligarem para uma linha de apoio, as pessoas têm de fazer esta pergunta: ‘Tenho conseguido lidar com os meus desafios, com mãe, pai, trabalhador, trabalhadora, filho, filha ou par conjugal?’, se a resposta for sim, não há a nada a temer. As pessoas têm de ativar as suas competências”, acrescenta a docente Filomena Gaspar.
Linhas de apoio e o esforço coletivo
Tristeza, raiva, frustração e irritação. Desde logo que ficar em casa de quarenta, enquanto o país combate uma pandemia, seria um exercício de sanidade mental. Não é fácil abdicar de rotinas de um momento para o outro e ajustar as 24 horas de um dia a quatro paredes. A meio da quarentena, as dificuldades psicológicas podem agravar-se. Não é à toa que, em diferentes pontos do país, têm surgido linhas de apoio psicológico — é o caso das universidades de Lisboa e do Porto, que proporcionam esse apoio à respetiva comunidade, e também do Ministério da Saúde que, conjuntamente com a Ordem dos Psicólogos Portugueses, criou uma linha específica dentro do serviço SNS24 (é uma das opções quando se liga para o 808 24 24 24). Porque tempos extraordinários exigem estruturas de suporte algo extraordinárias.
Sílvia João, psicóloga, é a supervisora técnica da linha da Universidade do Porto (UP), que foi criada há pouco mais de uma semana e serve de apoio a estudantes e funcionários da UP (220 408 408). Até segunda-feira, dia 6 de abril, a linha recebeu um total de 24 chamadas, sobretudo de alunos. “Mas também há funcionários docentes e não docentes, incluindo um reformado”, garante Sílvia João. Nos horários de funcionamento da linha — das 09h30 às 14h30 nos dias úteis e das 19h às 00h todos os dias — há sempre dois psicólogos disponíveis, capazes de falar três línguas – português, castelhano e inglês; para alemão, italiano e francês é preciso agendar. A vasta disponibilidade de línguas remete para a quantidade de estudantes internacionais daquela universidade.
Algumas das preocupações do outro lado da linha são naturalmente sobre a Covid-19. Há receio de se ficar infetado, preocupação com familiares contagiados e situações de ansiedade relacionadas com o tempo que será preciso ficar em casa. A isso juntam-se as questões de ordem académica, como os prazos de entrega. “Alguns têm a família longe, outros estão confinados num espaço com pessoas que não são aquelas de quem mais gostam, o que é mais difícil. Noto alguma dificuldade em organizar o tempo e situações de insónias de tanto se pensar no futuro. Há alunos que ficam mais aflitos por não poderem sair de casa”, continua Sílvia João, que coordena uma equipa de 12 psicólogos — o serviço é complementar aos gabinetes de psicologia da Universidade do Porto.
O principal objetivo do aconselhamento psicológico, diz, é ouvir as pessoas e dar respostas práticas. Isso significa “ouvir, escutar e compreender”. “As pessoas estão assustadas, sentem-se desarmadas. O acontecimento traumático está a acontecer a nível social, não afeta só uma pessoa, é do mundo. É experienciado [por alguns] com muita violência psíquica, há medo de morrer, há um futuro muito aberto, sensação de instabilidade e uma ideia de falta de controlo. Isso traz muito desamparo, desconfiança e medo de contaminação.” Até agora, as chamas têm em média 30 a 40 minutos — a mais curta foi de 15, a mais de longa de uma hora, mas Sílvia garante que tal não é representativo do que “vem a seguir”.
O esforço para apaziguar o impacto psicológico não se restringe aos meios académicos — são várias as linhas apoio que estão a surgir em diferentes pontos do país para mitigar um inimigo comum — e exemplo disso é o Acalma.online, um projeto de psicologia online e gratuito criado pela Casa Impacto. Ao Observador, Inês Sequeira explica que até ao momento a plataforma do hub de empreendedorismo social da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa conta com 31 psicólogos clínicos, um número que nos próximos dias para pode vir a “duplicar” ou até “triplicar”. Qualquer pessoa que tenha acesso à internet pode aderir à plataforma, escolher um psicólogo e fazer sessões de terapia online — podem ser realizadas mais consultas com um mesmo terapeuta.
Casa do Impacto lança videoconsultas de apoio psicológico gratuitas. É o acalma.online
“Isto não é uma linha telefónica. Há um contacto, uma câmara através da qual as pessoas veem o psicólogo, é mais tranquilizador do que uma chamada telefónica”, assegura, para depois lembrar que sem internet o isolamento a que estamos todos praticamente sujeitos seria bem mais difícil. A curva no logo do projeto não é por acaso. Inês Sequeira assegura que também eles querem “aplanar a curva”, desta feita tendo em conta os distúrbios mentais. “Não sabemos quanto tempo é que a pandemia vai existir. Não há limite temporal. E há pessoas afetadas pelo isolamento e pela imprevisibilidade da pandemia, ligeiramente deprimidas, que estão a sofrer de ansiedade, que sentiram até, pela primeira vez, ataques que pânico.”
Impacto psicológico pode ser “a terceira vaga”
Atualmente, Portugal enfrenta uma segunda fase da mitigação que sucedeu à contenção. Apesar do debate constante de quando será o pico da pandemia no país — se é que já não aconteceu —, há já quem fale numa segunda vaga de infeções. Francisco Miranda Rodrigues, bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses, é perentório: no horizonte está também o impacto psicológico da pandemia, uma “terceira vaga” que poderá resultar da ansiedade presente.
Os diferentes especialistas consultados parecem concordar num ponto em particular: a pandemia está a despertar a atenção dos portugueses para a saúde mental, a alertá-los para os comportamentos a evitar e, por outro lado, a estimular. “Isto é uma oportunidade para dar visibilidade a uma área da saúde que é sempre pouco valorizada em Portugal”, atesta Inês Sequeira, diretora da Casa Impacto. Num momento de crise e de isolamento social até ela teve amigos com ataques de pânico e insónias pela primeira vez na vida. É também, assegura, uma oportunidade para os psicólogos se posicionarem. Isto numa altura em que o Sistema Nacional de Saúde conta com 250 psicólogos ao nível dos cuidados primários — são cerca de 1.000 ao todo. Um número que já antes da presente crise “não era suficiente”, atesta o bastonário dos psicólogos.
“Acreditamos que a pandemia vai mudar muita coisa, que vai existir uma transformação na forma como, enquanto sociedade, encaramos a saúde”, continua Inês Sequeira. O projeto que agora lançou — Acalma.online — foi criado em tempos de pandemia mas pode ir além desta. Em causa não estão apenas as consequência do confinamento. “No pós-pico, a questão vai ser o luto. Neste momento, as pessoas não só estão a perder familiares e pessoas chegadas — seja para a Covid-19, seja para outras doenças — como veem-se impedidas de fazer o luto. O impacto que isto vai ter é brutal”, diz, citando estudos que retratam a seguinte situação: nos momentos de grande crise o número de suicídios decresce exponencialmente porque as pessoas preocupam-se em sobreviver, o impacto psicológico vem depois. “O stress faz-nos andar para a frente e sobreviver. O que acaba por ser violento é o pós-stress.” Na calha, além dos processos de luto limitados, outros problemas poderão intensificar-se, incluindo as questões de ordem financeira. É por isso que o “projeto pode ser adaptado a esse pós-pandemia”.
“Não temos dados suficientes que nos permitam perceber toda a dimensão que a situação pode vir a ter. Nenhuma crise é igual a esta”, afirma Francisco Miranda Rodrigues, que recorda como na crise económica de 2008 — mais ano, menos ano — não houve resposta montada para a dimensão psicológica. Ele que lembra também estudos que já antes correlacionaram a taxa de desemprego com o suicídio. Criada a linha de apoio em colaboração com o Ministério da Saúde — a qual está integrada no SNS24 — Miranda Rodrigues afirma que cabe ao Governo avaliar depois se deve ou não manter uma outra linha com características semelhantes. Ainda assim, “isso nunca vai substituir um acompanhamento aprofundado”. E aí surgem os problemas, incluindo a falta de seguro “para fazer cobertura destas situações”.
Linha de apoio psicológico do Governo e da Ordem já está ativa
“Isto não se faz mesmo sem psicólogos. A resposta que tem sido possível dar, por não poder ser outra, tem sido a da medicação. A resposta que foi dada na crise de 2008 não pode agora ser a resposta desta crise. Isso não resolve o problema, vai apenas atenuar os sintomas e não resolve na base o que a pessoa está a sentir. Temos de olhar para isto numa perspetiva mais preventiva”, afirma o bastonário, que refere estudos sobre o impacto de catástrofes, os quais apontam que entre “15 a 25%” da população afetada sofre consequências ao nível da saúde psicológica. Ainda que não haja certeza sobre se estes números são aplicáveis à presente situação, Miranda Rodrigues apela ao estado de alerta. “Se o impacto for nesta escala [nacional], não há condições para os serviços de saúde acudirem aos impactos psicológicos que daqui vão resultar.”
Não é que todos possam vir a ser diagnosticados com depressão, perturbação de ansiedade ou até stress pós-traumático — situação que pode, aliás, afetar sobretudo os profissionais de saúde —, mas situações ligeiras que não sejam devidamente acompanhadas podem desenvolver-se em perturbações. “Aqui está a maior fatia e não naqueles que desenvolvem as perturbações. A prevenção pode evitar uma segunda ou terceira catástrofe”, diz, referindo-se numa primeira instância ao vírus, depois ao estado da economia e ainda à saúde psicológica. Fica a pergunta: “Se não cuidarmos delas, quem são as pessoas que vão fazer a recuperação económica? São as pessoas que fazem a economia.”