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O clima de discordância foi-se adensado com a passagem do tempo que António Guterres esteve em Moscovo. O “mensageiro da paz” — assim se classificou o secretário-geral da ONU — não se conteve nas críticas que dirigiu a Sergey Lavrov primeiro e a Vladimir Putin depois. E os encontros, que culminaram no frente-a-frente Putin-Guterres na majestosa mesa de carvalho com seis metros de comprimento, decorada à mão com apontamentos em folha de ouro, foram marcadas por trocas de palavras e momentos de tensão.
Operação especial? Guterres põe os pontos nos is: é uma invasão
É que havia muito mais a separar Vladimir Putin e António Guterres do que a mesa em que o líder da Rússia recebeu esta terça-feira o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Desde logo, a semântica: Guterres não perdoou o facto de o anfitrião se ter referido à guerra na Ucrânia como uma “operação militar especial” — a expressão repetida na narrativa russa há dois meses, que recusa afirmar que o que se vive na Ucrânia é uma guerra. Isto é uma “invasão”, fez questão de deixar bem claro o secretário-geral da ONU.
“Acreditamos firmemente que a violação da integridade territorial de qualquer país não está de forma alguma em linha com a Carta das Nações Unidas. Estamos profundamente preocupados com o que está a acontecer agora. Consideramos que aquilo que aconteceu foi uma invasão em território ucraniano“, esclareceu.
Na conferência de imprensa que Guterres tinha dado — neste caso — ao lado o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergey Lavrov, o secretário-geral da ONU já tinha admitido que “há duas posições diferentes sobre o que se passa na Ucrânia”.
Para a Rússia, “o que está a acontecer é uma operação militar especial com os objetivos anunciados”. A ONU, no entanto, tem outra versão dos acontecimentos: “A invasão da Ucrânia pela Rússia é uma violação da integridade territorial e vai contra a Carta das Nações Unidas”, afirmou o líder das Nações Unidas.
O raspanete de Guterres às declarações de Lavrov
Guterres reservou as mensagens mais incisivas para a reunião com Putin, mas o encontro com Lavrov também foi marcado por um momento de tensão: aquele em que o líder da ONU interrompeu o ministro dos Negócios Estrangeiros para esclarecer quem está ao ataque e quem está à defesa na invasão da Ucrânia.
“Há uma coisa que é verdade e óbvia, algo que nenhum argumento pode mudar”, enunciou Guterres no pulpito onde se manteve ao longo da conferência de imprensa, do lado direito do ministro russo: “Não há tropas ucranianas no território da Federação Russa, mas há tropas russas no território da Ucrânia“.
Sergey Lavrov, visivelmente surpreendido pela advertência do secretário-geral das Nações Unidas, respondeu imediatamente: “Isto é verdade, posso confirmar“. E não retomou o discurso até lhe ter sido colocada uma nova pergunta.
O ministro russo estava a comentar que considerava ser “cedo demais” para pedir a intervenção de mediadores nas conversações. E repetia que a equipa de Zelensky não terá entregue ao Presidente ucraniano a proposta de paz redigida pela Rússia — sugerindo assim que a Ucrânia estaria a sabotar as negociações.
Nesse momento, António Guterres travou-o e respondeu a uma crítica que Lavrov tinha tecido acerca da ONU — a de que não estava a cumprir as regras básicas da Carta das Nações Unidas. “A ONU respeita inteiramente e obedece a todas as resoluções da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança”, corrigiu.
E acrescentou: “Hoje em dia, se lamento alguma coisa, é não ter sido permitido à ONU fazer parte do Formato da Normandia para seguir os Acordos de Minsk; e ser capaz de formar uma opinião muito clara e incisiva sobre o fracasso do Acordos de Minsk“.
Referindo-se às insistentes críticas que Lavrov endereçou à Ucrânia e à própria ONU, António Guterres disse compreender que a Rússia tenha “muitas queixas”, mas alertou que a organização tem muitos mecanismos para gerir essas queixas — nomeadamente o Tribunal de Justiça Internacional.
A arma de arremesso de Putin a Guterres: Kosovo
Depois do raspanete de Guterres a Lavrov, também Vladimir Putin quis deixar uma advertência ao secretário-geral da ONU. Depois de o líder das Nações Unidas ter esclarecido a posição da organização sobre a Rússia, o Presidente russo atirou: “Conheço muito bem os documentos do Tribunal Internacional da ONU, que diz que a autodeterminação de um Estado não o obriga a pedir autorização do poder central para proclamar a sua independência”.
Vladimir Putin referia-se às regiões separatistas de Donetsk e Lugansk, mas não só: também à situação de Kosovo. “As organizações jurídicas dos Estados Unidos e da Europa apoiaram [a independência do Kosovo face à Sérvia] o mesmo direito de se insurgir contra o poder central”, argumentou Putin, concluindo que o mesmo se aplica assim às repúblicas autoproclamadas porque “já houve um precedente“. António Guterres recusou a comparação, porque a ONU nunca apoiou a independência do Kosovo.
Ouça aqui o episódio de “A História do Dia” sobre a reunião de António Guterres com Vladimir Putin.
A narrativa habitual do Kremlin…
Vladimir Putin disse que a Rússia foi “forçada a fazer isto” — ou seja, a invadir à Ucrânia — por causa do genocídio em curso contra a população ucraniana e do incumprimento por parte de Kiev dos acordos de Minsk. O ponto de partida terá sido o Euromaidan — um “golpe de estado”, nas palavras do líder russo, em 2014. “A partir daí, recebemos pedidos de independência da Crimeia e do leste da Ucrânia”, afirmou o Presidente russo.
Agora, Putin disse que continua a dar o seu aval às negociações para uma resolução pacífica do conflito, mas que, além de não abdicar nem da Crimeia como território russo, nem dos autoproclamadas repúblicas, há mais um obstáculo no caminho: Bucha. E é aqui que o líder russo repete um dos pilares da comunicação do Kremlin para continuar a escalada da tensão no terreno: o massacre foi uma “encenação”. E acrescentou que em Mariupol a história se repete: a fábrica de Azovstal está “totalmente isolada” e são os supostos nacionalistas ucranianos que insistem em utilizar os cidadãos como “escudos humanos”, à semelhança das práticas comuns em grupos terroristas, garantiu o Presidente russo.
A situação “é complicado e até trágica em Mariupol”, mas isso não é culpa da Rússia — até porque os confrontos “acabaram, não há combates”. Quem quer sair, tem luz verde para o fazer, assegurou. E quem está ferido é tratado pelos “médicos qualificados da Rússia”, acrescentou ainda. Por isso é que Putin desvalorizou a proposta da ONU para abrir corredores humanitários na cidade e até sugeriu às próprias Nações Unidas e à Cruz Vermelha que vão à cidade ver “o que realmente se passa”: “Estamos dispostos a fazer isso”.
Sergey Lavrov também justificou a intervenção na Ucrânia com os mesmos argumentos de sempre: a Rússia pretende dialogar e abrir corredores humanitários, mas esses propostas “têm sido ignoradas pelo batalhão Azov”, que “anda com fascistas, usa símbolos nazis“. O próprio Presidente da Ucrânia desvaloriza a existência de fações fascistas na Ucrânia, acusou Lavrov, e chegou a afirmar que havia muitos batalhões como no país e que eles “são como são”.
Não há registos de Volodymyr Zelensky a proferir essas declarações nas centenas de conteúdos que produz e publica todos os dias — desde os vídeos curtos que publica nas redes sociais aos discursos ensaiados para os cidadãos ucranianos todos os dias. Mas, segundo Lavrov, estas palavras foram ditas pelo próprio Presidente ucraniano em entrevistas à comunicação social, só que foram editadas e ocultadas antes de serem publicadas.
E ao mesmo tempo que disse estar a trabalhar para manter vias de comunicação abertas com Kiev e estabelecer corredores humanitários na Ucrânia, o ministro russo também sugeriu que esses projetos não iriam avante por serem “um gesto teatral” de Kiev, que “provavelmente quererá outro cenário de partir o coração”.
O russo insistiu assim que as atrocidades que têm sido encontradas em cidades como Bucha ou Kramatorsk são responsabilidade da Ucrânia — não de Moscovo. E avisou: “Se falarmos de atitudes sérias para trabalhar como parte das conversas, é melhor que respondam às nossas propostas o mais rápido possível“.
… e as promessas repetidas da ONU
Antes do encontro com Putin, o secretário-geral da ONU já tinha dito que estava em Moscovo “como mensageiro da paz” com os únicos objetivos de “salvar vidas e reduzir o sofrimento”. Mais tarde, no encontro com o Presidente russo, assegurou que tinha ido à capital russa com uma “abordagem pragmática”. E tanto no encontro com Lavrov como na conversa com Putin, apresentou a intenção de criar um “grupo de contacto humanitário”, que junte a Rússia, a Ucrânia e a ONU para garantir no terreno a abertura de corredores humanitários.
“As Nações Unidas pediram repetidamente um cessar-fogo para proteger os civis e para facilitar o diálogo político, para alcançar uma solução, mas até agora isso não foi possível”, disse Guterres na conferência de imprensa com Lavrov (não houve declarações após o encontro de cerca de meia hora com Putin, em que aliás, o anfitrião, o Presidente russo, foi o primeiro a sentar-se à mesa e o primeiro a falar). “Hoje, em toda a região de Donbass, está em curso uma batalha violenta com mortes tremendas e destruição. Muitos civis estão a ser mortos e dezenas de milhares de pessoas estão em risco de vida, encurraladas pelo conflito.”
O secretário-geral da ONU mostrou-se ainda “preocupado com os relatos de violações do direito internacional e humanitário e possíveis crimes de guerra” e deixou dois pedidos: que se realizem “investigações independentes” a eventuais evidências de crimes de guerra na Ucrânia; e que os corredores humanitários sejam “respeitados por todos”.
Para concretizar esse último pedido, Guterres colocou duas propostas em cima da mesa. Uma a tal criação de um grupo de contacto humanitário da Rússia e da Ucrânia, com as Nações Unidas como intermediário, para “procurar oportunidades para a abertura de corredores, com a interrupção de hostilidades no local“. Outra, relacionada com Mariupol, o de mobilizar recursos da ONU “para ajudar a salvar vidas”: afinal, é necessário “permitir a evacuação segura de todos os civis que queiram sair, em qualquer direção que queiram”.
As críticas ao “colega e amigo” Guterres
António Guterres foi apresentado por Sergey Lavrov como um “colega” e um “amigo” — pelo menos foi assim que o ministro russo classificou o secretário-geral da ONU. Mas nem assim poupou críticas à organização que dirige e que Lavrov considera ter “violado as regras básicas da Carta das Nações Unidas” ao longo do conflito. “Não me lembro de um reação da ONU quando Kiev violou os acordos de Minsk“.
O ministro dos Negócios Estrangeiros russo referia-se ao segundo acordo de Minsk, mediado por França e Alemanha; e assinado em fevereiro de 2015. Entre os 13 pontos que compõem o acordo estão o cessar-fogo imediato nas regiões separatistas de Donetsk e Lugansk, o diálogo com o governo interino das regiões segundo a lei ucraniana e uma reforma constitucional na Ucrânia.
Mas essas medidas nunca chegaram a ser implementadas porque a Rússia e a Ucrânia têm interpretações diferentes do conteúdo do acordo: é que o Kremlin entende que não fez parte do conflito e, por isso, não tem de cumprir os 13 pontos. Abre-se assim o “enigma de Minsk”: a Ucrânia quer o cessar-fogo, controlo na fronteira com a Rússia, eleições em Donbass e poderes limitados aos separatistas. A Rússia entende que o acordo dá total autonomia a Donbass. À luz destas interpretações, o regime de Putin afirma que a Ucrânia falhou esse acordo.
Sobre a resolução que classificou como ilegal a invasão da Ucrânia, Lavrov defende-se dizendo que “a resolução não foi unânime“: “Foi uma resolução que não foi unânime, dezenas de países não a aceitaram”. Dos 193 países que compõem a organização, 141 votaram a favor da resolução que condena a invasão da Ucrânia pela Rússia. Houve cinco que votaram contra: Bielorrússia, Eritreia, Síria, Coreia do Norte e a própria Rússia. Contabilizaram-se 35 abstenções e 11 faltas à votação.
Mais tarde, na conferência de imprensa, Sergey Lavrov voltou a apontar o dedo à ONU pela situação atual entre a Rússia e a Ucrânia, afirmando que a organização dirigida por Guterres nada fez perante a “expansão desenfreada da NATO”: “Como podemos ver, e como expliquei hoje ao nosso colega e amigo António Guterres, em grande medida esta situação foi crescendo e aconteceu como resultado da política de expansão desenfreada da NATO e da afirmação de um mundo monopolarizado , que os nossos colegas americanos e os seus aliados preferiram”.
A pressão da Ucrânia para a visita de Guterres dar frutos
O encontro em Moscovo teve um quarto participante-fantasma: o governo de Volodymyr Zelensky, que chegou a criticar a decisão de António Guterres visitar a capital russa antes da visita desta quinta-feira ao Presidente da Ucrânia em Kiev. Mas, desta vez, o recado veio da vice-primeira-ministra da Ucrânia.
Iryna Vereschuk, que lidera a pasta do Ministério da Reintegração dos Territórios Temporariamente Ocupados — criado em 2016 precisamente para gerir as tensões na Crimeia, Donetsk e Lugansk — avisou que António Guterres tinha de sair de Moscovo (e partir na quarta-feira para Kiev) com resultados concretos.
A governante falou especificamente sobre o estabelecimento de corredores humanitários em Mariupol, uma das cidades com a situação mais crítica na Ucrânia e onde ainda permanecem 100 mil cidadãos (mil dos quais em Azovstol): “Se isso não acontecer, não há sentido para a ONU existir“.
Os avisos dirigidos ao secretário-geral das Nações Unidas chegam de ambos os lados da guerra. Na conferência de imprensa com o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, também Sergey Lavrov defendeu que “as Nações Unidas têm de ser o pivô para haver um diálogo sem ameaças“.