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“Uma criança é suposto viver até aos 90 anos.” Fátima Pinto, diretora do Serviço de Cardiologia Pediátrica de Santa Marta, em Lisboa, tem visto crianças em situação grave passar pelo seu hospital e pelo Dona Estefânia, com o qual mantém estreita colaboração. Uma delas, que já tinha problemas anteriores, precisou mesmo de um transplante de coração, algo que não seria necessário se não fosse o quadro criado pela Covid-19, apurou o Observador. “Termos cinco, seis mortes é sempre muito, mesmo se comparando com o número avassalador de mortes de adultos.” Em Portugal, os dados oficiais de Covid apontam para três mortes de crianças até aos 9 anos por causa da doença. Na faixa etária seguinte, que começa nos 10 anos, há o mesmo número de óbitos, todos de adolescentes de 19 anos, o limite etário daquele grupo. São uma percentagem residual (0,03%) do total de óbitos no país atribuídos à Covid-19 — 19.905 a 31 de janeiro. “Não é expetável uma criança de 2 anos ou 5 anos morrer. Hoje em dia levamos os nossos idosos ao médico e temos a expectativa de que saiam pelo pé deles do hospital.”
Talvez por os números serem baixos, e porque durante as primeiras fases da pandemia os mais novos foram menos atingidos, quando se pensa na doença Covid nas crianças é comum pensar-se numa doença simples e passageira. A ideia está correta, mas nem sempre é assim. “A doença na criança é menos frequente e é menos grave. Mas também pode ser grave e também há mortalidade”, garante a cardiologista.
Sem entrar em muitos detalhes sobre os doentes por uma questão de confidencialidade, Fátima Pinto revela ao Observador que uma criança precisou de fazer um transplante de coração depois de infetada com o novo coronavírus. Aconteceu em Lisboa, a uma criança que esteve internada, por diversas vezes, no Dona Estefânia com miocardiopatia dilatada estável. A situação agravou-se após a Covid, sendo necessária a transplantação cardíaca em 2021, realizada no Hospital de Santa Cruz.
Já em Santa Marta, uma jovem transplantada naquele hospital em 2015 (coração), após ter ficado doente com Covid-19 teve agravamento significativo do quadro de insuficiência cardíaca o que obrigou a internamento prolongado.
Hospital de Santa Marta fez o primeiro transplante de pulmão num doente Covid em Portugal
Uma cardiomiopatia é o desgaste progressivo da estrutura e da função das paredes musculares das câmaras do coração. Apesar de sofrer de problemas cardíacos, foi o contágio com Covid que agravou a doença da primeira criança e obrigou ao transplante, explica a médica. A segunda, já transplantada, viu a sua situação agravar-se por causa do coronavírus.
Embora pudesse numa primeira análise ser mais expectável, já que o vírus da Covid é respiratório, ainda não foi necessário um transplante pulmonar em crianças, embora já tenha sido feito em adultos no pós-Covid, como o Observador noticiou em primeira mão. Fátima Pinto acredita que é possível que esta situação venha a mudar. “Após a Covid, os doentes ficam com uma destruição pulmonar tão severa que, agravada com outras situações que já tinham, pode obrigar a um transplante. Temo que no futuro haja mais candidatos a transplantação do que se poderia imaginar. Há doentes que estão bastante mal e terão de ser tratados”, conta a médica que, na passada semana, assinou o parecer do Programa Nacional para as Doenças Cérebro-cardiovasculares “Vacina para Covid-19 em idade pediátrica e lesão cardíaca: o que sabemos”.
Miocardites 60 vezes mais frequentes — e mais graves — em crianças infetadas do que vacinadas
Uma criança internada em Lisboa com encefalite
“Uma das crianças que esteve há pouco tempo internada no Dona Estefânia tinha um quadro de encefalite. Encefalite é uma inflamação grave do sistema nervoso central, do cérebro”, conta Fátima Pinto que trabalha de perto com a coordenadora de Infecciologia daquele hospital, ambos do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central. “Tudo isto pode acontecer. É muito variável de criança para criança. A disfunção de um órgão pode ser maior do que a de outro. Há crianças que precisam de diálise, há crianças que precisam de ventilação porque o pulmão está em falência. Quando falha tudo, pulmão, coração, podem precisar de ECMO. E estas situações estão a acontecer mesmo com a variante Ómicron”, detalha a médica, que diz que os casos mais graves que passaram pelo seu serviço foram de MIS-C (lê-se mis-CÊ), a síndrome inflamatória multissistémica em crianças.
A cardiologista explica resumidamente o que é esta síndrome. “É como se fosse uma doença autoimune. O nosso organismo está num estado tal de exacerbação inflamatória que tem repercussões em todos os órgãos: pele, pulmões, rins, coração… Todos podem ser afetados”, sublinha Fátima Pinto, revelando que já nesta vaga de Ómicron houve crianças internadas na Estefânia em cuidados intensivos, assim como noutros hospitais — ou seja, em estado muito grave.
Mais crianças com Covid-19 diagnosticadas com doença grave mas rara, na terceira vaga
A variante Delta tinha um comportamento, a Ómicron tem outro, explica. Com a Delta, que marcou o inverno passado e trouxe os números mais elevados de mortos em 24 horas atribuídas à Covid a que o país assistiu, o que se via nas crianças era uma reprodução dos quadros da doença dos adultos. “Apareciam com um quadro de infeção respiratória do tipo pneumonia, porque a Delta provocava alteração a nível dos alvéolos pulmonares. Surgiam alterações respiratórias, alterações neurológicas, alterações cardíacas e aquele grupo muito grande que tinha o MIS-C.”
Com a Ómicron, o cenário é outro, conta a cardiologista. Há menos pneumonias, mas mais infeções respiratórias altas, porque tudo indica que esta variante causa mais obstrução brônquica do que lesão pulmonar. “Mas também pode aparecer a pneumonia e o MIS-C, embora, na minha opinião, não esteja a ser tão frequente como com a variante Delta. Mas existem. Neste momento, temos doentes internados no Dona Estefânia com MIS-C com esta variante Ómicron. Outros hospitais também tiveram, alguns deles com situações muito graves.”
Ómicron já fechou três enfermarias no Dona Estefânia
Quando aconteceu a crise dos serviços hospitalares, recorda Fátima Pinto, ela aconteceu por causa dos internamentos de adultos. “É normal que se minimize a situação que conseguimos controlar e a situação pediátrica conseguimos controlar”, argumenta. Apesar disso, conta que com a vaga de Ómicron — que tem atingido máximos de infeções, mas não de internamentos — o Dona Estefânia já teve de fechar três enfermarias de outras especialidades para arranjar lugar para as crianças Covid positivas.
“Estas crianças só ficam no hospital se tiverem doença Covid”, explica. No início da pandemia, quando o coronavírus era novidade total, todos os doentes infetados ficavam hospitalizados, tivessem sintomas da doença ou não. Agora, isso já não acontece.
Cerca de 30% destas crianças ficam hospitalizadas porque, no decurso da sua hospitalização, uma cirurgia, por exemplo, se percebe que estão infetados. Os outros 70% não. “Os outros não tinham doença nenhuma [além da Covid]. Vieram da rua, entraram na urgência e foram hospitalizados com várias alterações que precisavam de cuidados médicos”, salienta Fátima Pinto que diz que agora, com a Ómicron, tem mais internamentos do que com a variante Delta. Atualmente tem duas crianças em cuidados intensivos.
O cenário é outro. “Estes casos são diferentes, a doença é mais ligeira, mas, apesar disso, estão doentes o suficiente para terem de ser internados. Já não estamos perante aqueles casos graves de pneumonia e de ter muitos ventilados. Apesar disso, os hospitais já estão a reduzir internamentos de patologias eletivas para internar os doentes Covid. Todos os hospitais estão a adaptar-se a estes números”, garante.
A doença prolonga-se por semanas
Todas as crianças que passam pelo Dona Estefânia continuam a ser assistidas ao longo do tempo através da estreita colaboração que Maria João Brito e Fátima Pinto mantêm entre os seus serviços. “Todo o doente internado com Covid é visto por um cardiologista pediátrico do Santa Marta. Depois, são seguidos com alguma regularidade na consulta de infecciologia da Estefânia e numa consulta de cardiologia pediátrica connosco. Há doentes em que, um ano depois, persistem as alterações nos exames.”
Será Covid longa, como é comum acontecer com os adultos? A resposta não é clara, explica a cardiologista, porque ainda não há uma definição de caso para a pediatria, embora exista para o adulto. Assim, e apesar de haver muitos artigos e estudos publicados, Fátima Pinto considera que acabam por ser enviesados.
Por não haver uma definição clara, nem terem sido estabelecidos critérios rigorosos, os estudos não seguiram todos os mesmos parâmetros. Por outro lado, a forma como foram recolhidos os dados é variável: umas vezes recorre-se à auto avaliação do doente e dos pais, outras vezes é feita pelos médicos. Há ainda os estudos que não têm um grupo de controle de crianças sem infeção, não sendo possível saber se há, ou não, o efeito psicológico.
“Temos uma verdade: existem doentes que depois das 4 semanas de doença, e até depois das 20 semanas, têm alguns sintomas”, diz a médica. Esses precisam de seguimento para se perceber durante quanto tempo podem persistir os sintomas e que tipo de ajuda e de terapêutica deve ser feita a estas crianças. Para isso, defende, é preciso que se chegue a consenso a nível internacional para definir o caso de Covid longa na criança e no adolescente.
Quanto aos sintomas, Fátima Pinto diz que ao fazer-se uma revisão de todos os artigos publicados, “o mais frequente é a persistência de dor de cabeça, a persistência de fadiga, alterações do sono, dificuldade em dormir, acordar a meio da noite, ter insónias, dificuldade de concentração e, mais raros, as dores musculares e nas articulações”. São situações que, acredita, “eventualmente poderão ter causas neurológicas”, embora não haja certezas. “O mais lógico é admitirmos que o vírus, ou a doença, ou a cura da doença tenham condicionado alterações a nível neurológico que deixam estes sintomas. Mas não existe evidência, são suspeitas.”
Crianças dos 5 aos 11 anos internadas são maioritariamente não vacinadas
Sobre o crescimento de casos entre as crianças, e depois de ter assinado o parecer sobre vacinação, Fátima Pinto defende que a Ómicron vai infetar predominantemente quem não está vacinado. “E quem é que não está vacinado? As crianças e algumas franjas da população.” As crianças dos 5 aos 11 anos que estão internadas nos hospitais portugueses são, maioritariamente, crianças não vacinadas, garante a médica. “Haverá algumas que fizeram uma primeira dose da vacina, que tem alguma eficácia duas semanas depois, já que só a segunda dose permite que as crianças desenvolvam anticorpos e imunidade celular que poderão reduzir a gravidade da doença Covid e reduzir as complicações.”
No seu parecer, concluiu que as miocardites são 60 vezes mais frequentes em crianças infetadas com SARS-CoV-2 do que em crianças vacinadas contra a doença. Para além disso, nos casos muito raros das miocardites pós-vacinação, a doença é geralmente ligeira e não deixa sequelas. Já quando decorre da doença Covid, os sintomas são mais graves, mais prolongados e provocam mais frequentemente complicações e sequelas a longo prazo.
“Vale a pena vacinar as crianças. O risco da vacina é muito inferior e os benefícios suplantam amplamente o risco”, recomenda a cardiologista. “Não podemos dizer nunca que a vacina não pode causar a miocardite. Já foi reportada, mas tem de haver uma distinção entre o que se reporta e o que se confirma através de métodos de diagnósticos laboratoriais e de imagens. Só esses é que são miocardites.”
Para terminar, recorda que nos Estados Unidos em mais de 8 milhões de vacinas administradas a crianças, dos 5 aos 11 anos, só foram confirmadas 11 miocardites pós-vacinação. “Todas motivaram internamento por precaução. Se temos uma criança nas urgências com dor no peito, internamos a criança e fazemos exames para excluir uma situação mais grave.” Os que tiveram miocardite por causa da vacina, termina Fátima Pinto, tiveram um percurso de evolução de doença curta, benigna e aparentemente sem sequelas ou complicações.
*Notícia alterada a 4 de fevereiro, depois de recebida uma nota do Centro Hospitalar Lisboa Central onde se assume que inicialmente fora transmitida erradamente a informação de que os dois transplantes ao coração referidos tinham ocorrido devido à Covid-19 quando, na verdade, apenas um deles foi pós infeção pelo coronavírus. Assim, a notícia foi alterada e onde se lia duas crianças precisaram de transplante, passa a ler-se apenas uma.
A nota do CHLC na íntegra
1. No CHULC-HDE (Hospital de Dona Estefânia) esteve internada, por diversas vezes, uma criança com miocardiopatia dilatada estável, que agravou após Covid-19 em 10/6/2020, vindo a ter necessidade de transplantação cardíaca em 2021, realizada no Hospital de Santa Cruz, onde é seguida pela Cardiologia Pediátrica.
2. No CHULC-HSM (Hospital de Santa Marta) esteve internada, por diversas vezes, uma jovem transplantada cardíaca em 2015, em HSM, que teve agravamento significativo do quadro de insuficiência cardíaca com internamento prolongado, após situação de Covid-19 em 2022.
Em entrevista com a jornalista do Observador, foram referidos dois casos de doentes transplantados em Lisboa, sem referir instituições. Foi transmitida erradamente a informação de o transplante ter ocorrido devido à Covid-19 em ambos os casos. Em rigor dos factos, os dois casos são diferentes, uma vez que apenas a criança seguida no Hospital de Santa Cruz e no HDE foi transplantada devido a Covid-19.