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Há um pacto de honra sobre o que se passou no Conselho Nacional de Saúde Pública: cá fora, todos se mostram unânimes a defender a decisão de não encerrar as escolas. Mas, à porta fechada, na tarde de quarta-feira, a discussão foi acesa, tensa, cansativa até, e foram precisas 6 horas para os cerca de 20 conselheiros chegarem a um consenso — o de não recomendar o fecho das escolas. Antes de finalizarem o documento, a própria ministra fez questão de perguntar aos conselheiros se se sentiam confortáveis com o parecer que todos, sem exceção, assinaram.
Era uma posição recuada, face ao que acabou por fazer o Governo 24 horas depois. António Costa estaria já convencido a avançar com o fecho das escolas, mas a discussão acesa na reunião de especialistas fê-lo travar essa ideia e procurar ainda aconselhamento (também político) sobre a necessidade de tomar medidas que fossem além do que tinha ditado o Conselho. Aconselhamento e apoio que fez com que, já esta quinta-feira, Costa decidisse contrariar a recomendação daqueles especialistas — que entendem que não havia qualquer razão científica para fechar as escolas, tendo também em conta as consequências económicas e sociais — e ordenar o encerramento de todos os estabelecimentos de ensino até à Páscoa. Foi ‘salvo’ pelo parecer do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças conhecido entretanto. Acabou por ser essa recomendação que lhe “permitiu superar as contradições técnicas” — como lhe chama fonte do Governo — que terá visto no órgão consultivo nacional.
“Mantenho tudo o que disse ontem à noite”, diz o pneumologista Filipe Froes, um dos membros do Conselho. “Quando se fecha uma escola, tem de haver critérios bem fundamentados e tem de se perceber se isso terá vantagens no controlo de infeção.” Jorge Torgal, médico e professor catedrático, concorda: fechar escolas “não tem nenhuma justificação do ponto de vista médico”. Constantino Sakellarides acrescenta que todos saíram “confortáveis, mas não absolutamente confortáveis para não prever logo que o parecer poderia ser revisto a partir do momento que fosse necessário”. Mas não era aquele o momento para o decidir, foi isso que ficou determinado. As opiniões dos conselheiros contactados pelo Observador foram dadas antes de António Costa anunciar a decisão do Governo.
“Fomos todos consensuais. Quando a senhora ministra da Saúde perguntou, todos disseram estar confortáveis com o parecer”, conta Manuel Lemos, que tem assento no conselho na qualidade de presidente da União das Misericórdias Portuguesas. “O resultado do Conselho é um resultado de consenso, que saiu de um debate profundo e profícuo”, acrescenta Fernando Almeida, presidente do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge. “Foi o resultado mais consensual e inteligível”, descreve. O debate maior foi logo com a definição do “modelo de decisão”, explica Constantino Sakellarides, antigo diretor-geral de Saúde.
A dúvida seria “se o modelo de referência devia evoluir ou não”, ou seja, se deviam ser antecipadas medidas da fase de mitigação para a fase de contenção (aquela em que o país está) — o modelo até acabou criticado pelo ex-ministro da Saúde (do primeiro Governo de Costa) Adalberto Campos Fernandes, que, mal o Conselho terminou os trabalhos, escreveu na sua página no Facebook uma crítica clara ao modelo de decisão, defendendo que a “abordagem de problemas novos a luz de critérios e metodologias tradicionais comporta, por vezes, riscos muito elevados.”
“Parece muito imprudente ignorar os novos modelos de organização populacional, a vulnerabilidade dos mais frágeis, os fluxos de mobilidade, a circulação de pessoas e a complexidade da interação social da vida atual”, escreveu. O seu antigo professor de Saúde Pública, Sakellarides, não gostou de ler esta opinião: “Temos de ter alinhamento para dar às pessoas confiança na decisões de saúde pública.”
“Não podemos abandonar o modelo de decisão sem termos um novo. Adotaremos um novo quando tivermos informação para o adotar. Este é o que nos oferece maior segurança“, argumenta o professor contra o antigo aluno.
“Saí de rastos” da reunião
A posição da ministra da Saúde, Marta Temido, foi a que se espera numa reunião de um conselho consultivo do Governo: mais de ouvinte, menos de interveniente. “Ouviu toda a gente e estava empenhada em que todos se sentissem confortáveis com o documento final, que foi alterado mais do que uma vez”, conta um dos participantes da reunião ao Observador. Outro conselheiro sublinha que Marta Temido se absteve de emitir opiniões, manteve-se quase sempre em silêncio e com uma posição “extremamente aberta”. “Muito interessada e perspicaz”, diz Fernando Almeida.
Mas a reunião em si foi “pesada”, “cansativa”, “tensa”, “acesa” e “longa”, relataram vários membros do Conselho Nacional de Saúde Pública ao Observador. “A reunião foi pesada, não só pelo ambiente que se vive, mas também pesada pela informação que foi partilhada e pela necessidade de chegarmos a um consenso”, conta um dos conselheiros. “Foi muito longa, muito cansativa, e sempre com uma discussão no domínio da ciência. A sustentação científica foi muito debatida”, acrescenta outro dos participantes.
“Claro que houve vozes que se levantaram a pedir o fecho imediato das escolas. Mas isso foi no início da reunião. Foi um debate longo e acesso, mas, quando chegou o momento de votar os três pontos do parecer, estávamos todos de acordo e terminou a discórdia. Mas saí de rastos da reunião”, confessa outro conselheiro. “Esta não foi a decisão ideal, mas não há nunca a melhor decisão do mundo.”
Antes de todos convergirem num parecer final, os receios dos conselheiros foram muitos e as implicações sociais e económicas de fechar as escolas pesaram na balança. Acima de tudo, consideraram que a “vantagem epidemológica” não era grande e que pouco faria para travar o caminho do vírus.
Os principais receios: impacto social e praias cheias
“As implicações sociais são evidentes. Há situações muito complicadas, até de crianças que dependem de escolas para fazer uma refeição completa. E nem todos os pais podem dar-se ao luxo de faltar ao emprego ou entrar em teletrabalho”, diz um dos conselheiros que, desde o início da reunião, defendeu sempre que as escolas deveriam manter-se abertas. Constantino Sakellarides também fala neste ponto das refeições de algumas crianças e defendeu que as consequências sociais da medida eram demasiado pesadas para a “vantagem epidemológica” que, considerou, não se verificaria com o fecho das escolas. Além disso, defendeu, “a mensagem deve ter um estudo cultural” associado.
Outro conselheiro concorda. “O encerramento de escolas tem um profundo impacto social. Se for para irem para as praias, mais vale estarem as escolas abertas. E temos de pensar, no caso das crianças mais pequenas, o que se faz aos pais. Deixam de trabalhar? E podem?”, argumenta, lembrando que deixar os filhos com avós também não é solução porque fazem parte de um grupo de risco. E mantém a defesa da medida: “Se fechar uma escola em Lisboa porque há um caso positivo, por que razão vou fechar as escolas todas de Serpa?”
As imagens das praias da Linha de Cascais cheias de estudantes universitários apareceram durante a tarde, ganharam proporção quando já decorria o encontro dos especialistas com a ministra Marta Temido e tiveram peso na decisão que foi tomada, dando gás aos conselheiros que já argumentavam que fechar as escolas não seria sinónimo de isolamento social e que poderia apenas mudar a localização do convívio social, não o eliminando.
“Ontem vimos aquelas imagens das praias cheias de gente. Eu próprio vi os bares cheios de jovens, em que se for preciso vão beber todos do mesmo copo, e isso pesa na decisão. Se é para isto, vamos fechar escolas para quê? Só estamos a alterar o local da contaminação”, refere um outro participante.
Outro conselheiro considerou ser essencial pesar os dois pratos da balança. “Naquele momento da discussão, tínhamos mais motivos a favor de manter as escolas abertas do que contra”, argumenta. “Neste momento epidemológico, há seis cadeias de transmissão identificadas, mas não há evidências seguras de que o vírus esteja a circular na comunidade, por isso a escola não é um local de transmissão.”
“Ninguém disse que as escolas não podem fechar”
Apesar do parecer que saiu do encontro de quarta-feira, um dos conselheiros ouvidos pelo Observador ressalva que na reunião “ninguém disse que as escolas não podem fechar”. O que saiu foi também um recado para os estabelecimentos de ensino e câmaras municipais que começaram a encerrar equipamentos sem antes se coordenarem com as autoridades de saúde. “Já demos a mensagem de que as pessoas têm de se preparar para medidas mais drásticas”, diz, por seu lado, Sakellarides, que apontou ainda ao Observador que também esteve em cima da mesa um argumento: “Sabemos que a sociedade se encarrega de antecipar medidas da fase de mitigação para a de contenção. Isso não é mau porque se vão preparando.”
“Quando se fecha uma escola, é preciso perceber uma coisa essencial: se esse fecho se insere no eixo estratégico de coordenação de combate ao vírus. Para isso, a decisão tem de ser tomada em coordenação com as autoridades de saúde”, defende outro conselheiro sob anonimato, dizendo que, de outra forma, fechar as portas de pouco serve para conter o vírus. Apesar disso, não critica os pais que, nesta quinta-feira ,escolheram não deixar os filhos nas escolas. Essas decisões das famílias serviriam até para facilitar o momento em que o fecho das escolas se concretizasse — o que acabaria por ser decidido horas depois destas conversas.
O fecho, ressalva um outro membro do Conselho, não pode ser visto como um período de férias. “É sensato as escolas terem, por exemplo, ensino à distância, como aconteceu com algumas universidades. Na verdade, já devíamos ter sido mais proativos, o encerramento das escolas já podia ter sido decretado, mas só por autoridades de saúde.” Ainda assim, defende que manter as escolas abertas “minimiza a disrupção social” e que não há fundamentação, nem proporcionalidade para tomar essa medida quanto outras questões têm mais peso.
Jorge Torgal reforça a ideia de que fechar todas as escolas não tem fundamento científico. “Não tem muita justificação do ponto de vista médico, nenhuma base científica e ia causar uma desorganização social enorme e custos económicos, sem vantagem para conter o vírus. Há clusters identificados onde estão os doentes. Íamos privar 2 milhões de estudantes da sua formação, até quando? Não havendo uma justificação válida para o fazer, foi melhor esta decisão.”
Estes receios manifestados durante a reunião e o parecer que acabaram por emitir para fora teve uma interpretação entre os principais decisores políticos: os especialistas estavam a passar a batata quente para o Governo. No encontro, o consenso só saiu mesmo a ferros. António Costa fez, por isso, uma ronda pelos seus principais conselheiros políticos para sondar opiniões sobre medidas mais radicais.
Também chegou a ter prevista a conferência de imprensa para anunciar novas medidas de contingência para o final do Conselho de Ministros. Quando, já de madrugada, aterrou em Lisboa, vindo de Berlim, acabou por decidir ouvir primeiro os partidos políticos para lhes dar a conhecer o seu plano, antes de anunciá-lo ao país. Ainda estas reuniões não tinham terminado em São Bento e já vazava para a comunicação social que as escolas fechariam mesmo a partir de segunda-feira. Quando saiu e fez a declaração ao país, Costa frisou logo à cabeça ter sentido “por parte de todos os partidos sem exceção o empenho de partilharmos em conjunto esta batalha que é de todos”: “Não há o partido do vírus e do anti-vírus, esta é uma luta pela nossa própria sobrevivência”. A responsabilização de todos estava feita e com referência a uma recomendação que saiu entretanto e que permitiu ao primeiro-ministro avançar para uma decisão política, passando ao lado da discussão técnica do Conselho Nacional de Saúde Pública.
Implicações económicas e a “bomba atómica”
As implicações económicas de que falou o médico Jorge Torgal foram debatidas na reunião e até cruciais para alguns conselheiros favoráveis ao fecho de escolas mudarem de opinião.
“Fala-se do exemplo de Macau, mas Portugal tem défice, não tem superávit. E nós importamos 80 a 90% do que precisamos. Uma decisão de fechar o país tem custos. As pessoas não morrem de coronavírus, morrem de desemprego”, defende um conselheiro questionado sobre a hipótese de se ir mais além do que o mero fecho de escolas, como fez Itália. Em Macau, resiste-se ao surto, mas os custos económicos estão à vista e antecipa-se uma recessão de dois dígitos em 2020, porque grande parte do PIB se baseia no jogo e no turismo, fortemente afetados pela pandemia. “Se pusermos o país em quarentena, se fecharmos Portugal, isso tem consequências: deixamos de ter medicamentos para tratar doentes, por exemplo, e as atividades económicas entram em défice em 15 dias.”
É por isso que viu com muitas reticências a ideia de fechar todas as escolas do país, um primeiro passo para, em seguida, fechar bibliotecas, museus, cafés e restaurantes. “Fechar as escolas todas já é a bomba atómica. E depois de a usarmos, não podemos fazer mais nada. Faz sentido usá-la já? Só se fossemos uma ilha.” Isso, aliás, foi uma das questões discutidas para decidir exatamente que palavras usar no parecer, já que de pouco serve conter a situação portuguesa, se o país vizinho perder o controle da situação e voltarem a entrar casos importados nos nossos hospitais.
“No parecer, nós frisamos que a decisão é tomada com base no momento nacional e internacional que se vive. Houve até quem sugerisse que se acrescentasse ‘sem prejuízo de outras decisões’, mas isso acabou por cair por terra, porque essa ideia aparece mais à frente no documento e tornava-se redundante”, explica. A pandemia, diz, obriga a que cada decisão seja adequada ao momento, podendo sempre pecar por defeito ou excesso. “Só vamos conhecer a eficácia de cada medida à posteriori.” Ficou logo ali definido, a pedido da ministra, que houvesse nova reunião de avaliação na sexta-feira seguinte, às 15 horas.
“Nós sabíamos que íamos levar pancada fosse lá qual fosse a decisão que tomássemos. Se tivéssemos decidido a favor do fecho imediato, hoje estariam especialistas na televisão a argumentar que a nossa decisão não tinha bases científicas”, conta um conselheiro. “Havia grande pressão social para tomarmos medidas mais drásticas, mas elas tinham de ter base racional. E isso que nos salva”, diz Sakellarides, acautelando logo de seguida: “Se o processo evoluir como noutros países, têm de ser tomadas medidas mais drásticas.” E “a situação está a agravar-se” nos países em que se focaram mais na reunião, pela proximidade a Portugal: Itália, Espanha e França.
Como falar para fora? Novo debate
Um dos argumentos usados contra uma decisão mais recuada seria o de não haver qualquer evidência científica de que Portugal esteja numa fase inicial de transmissão na comunidade. Para leigos, o que isto significa é que, por agora, ainda é possível seguir a cadeia de transmissão de cada um dos casos e saber exatamente quem contagiou quem.
“Neste momento, só há uma situação dúbia e, com base num único caso, não podíamos decidir fechar as escolas todas. Só quando perdermos a origem do vírus, só quando tivermos 10 casos que não sabemos de onde vieram é que podemos falar de transmissão na comunidade. Nesse momento, quer dizer que o vírus está solto. E isto vai acontecer. E aí teremos de encerrar tudo. Mas não podemos usar o ás de trunfo para apanhar um quatro de copas. Temos de guardá-lo para apanhar a manilha de trunfo. De outra maneira, é desperdiçá-lo”, defende um conselheiro sob anonimato.
“Os fechos precoces não têm nenhuma vantagem epidemológica e têm grandes consequências sociais”, argumenta Constantino Sakellarides que explica: “Se tomarmos decisões que não sejam seguidas de vantagem epidemológica, só teremos as consequências sociais.”
Depois da primeira discussão sobre o modelo, uma vez ultrapassada, levou a uma “decisão fácil”, como descreve um conselheiro. Depois voltou a haver debate sobre a forma de comunicar para o exterior o que tinha sido debatido ali. “O processo de gestão e comunicação de risco é complicado”, assume Fernando Almeida, que também diz que, “apesar da pressão do momento, até houve boa disposição” na troca de contributos para o comunicado final.
Apesar de discussão ter voltado a ter duas barricadas vincadas: quem defendia que devia ser uma comunicação mais detalhada, de um lado, e quem entendia que tudo devia ser curto e simples, do outro. Venceu a segunda posição, de uma comunicação mais sintética. O porta-voz Jorge Torgal leu o comunicado: fechar escolas só com aval das autoridades de saúde pública.
O decisor político, porém, acabou por deixar no bolso a recomendação científica que passou a última semana a dizer que estaria sempre na base de medidas mais radicais que viesse a tomar.
Artigo alterado às 10h25 de sexta-feira, dia 13 de março, com mais informações sobre a decisão política do primeiro-ministro.