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HUGO AMARAL/OBSERVADOR

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"O nosso corpo está tão poluído como o planeta"

Há químicos a passear no nosso organismo e podem vir dos cremes que colocamos na pele. Cyrille Telinge fundou um laboratório para procurar alternativas e é CEO de uma espécie de Google da cosmética.

Os químicos são demasiado bons, e esse pode ser o seu ponto fraco. Parece contraditório mas torna-se claro no discurso de Cyrille Telinge, diretor-geral e cofundador dos laboratórios Novexpert. Para o francês de 47 anos, é por serem demasiado bons que conseguem penetrar na pele e permanecer inalteráveis no organismo, mesmo quando vêm de um insuspeito boião de creme. Tellinge chama-lhes “as moléculas de beleza estrangeiras” porque são de fora mas estão no meio de nós.

“O futuro da cosmética passa pela transparência das fórmulas e pela biotecnologia”, diz o especialista que em 2008 — muito antes da propagação das indicações “orgânico” ou “sem parabenos” nos rótulos que nos enchem a casa de banho — já defendia a expressão “100% natural”. “Vendemos sonhos mas também temos de vender informação.”

Em Lisboa para formar várias equipas da cadeia Perfumes e Companhia, onde os produtos da sua marca são vendidos em exclusivo em Portugal, Telinge falou com o Observador em dois almoços onde não faltou sequer um kit de experiências. “Devíamos poder comer e beber todas as moléculas presentes nos cremes que usamos”, defende. Por vezes é isso mesmo que faz nos laboratórios da marca onde “até o designer é cientista” e os e-mails são proibidos de manhã, porque impedem a criatividade.

Cyrille Telinge fundou a Novexpert em 2008, juntamente com outros cientistas saídos de grandes marcas. Foto: Hugo Amaral/Observador

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

É o diretor-geral de uma marca que fundou, anda pelo mundo a dar formação, mas começou por fazer experiências num laboratório. Como é que isto aconteceu?
No início, quando era estudante, estava indeciso entre duas opções: ser dermatologista — porque tinha problemas de eczema e queria resolvê-los — ou ser guionista, porque adoro cinema. E é claro que quando se está indeciso entre duas opções, escolhe-se uma terceira. Por isso fui estudar gestão, e quando me estava a preparar para seguir dermatologia — finalmente lá acabei por escolher essa área — o meu pai comprou uma empresa de cosmética. Era uma empresa pequena, que fazia cremes indianos à base de ayurveda. E ele disse-me: “Como queres ser dermatologista, por que não tentas gerir esta empresa primeiro?” Durante um ano tive esse privilégio, até decidirmos abrir um laboratório de pesquisa nosso. Nessa altura eu tinha conhecido um cientista, ex-manager técnico da Shiseido, e percebi que partilhávamos os mesmos princípios e a mesma visão. Isto foi há mais de 20 anos, mas nesse tempo já sabíamos que o futuro da cosmética iria passar por substituir as moléculas químicas por moléculas biotecnológicas e naturais. Por isso abrimos esse laboratório e dissemos às marcas e às farmacêuticas que iam debater-se com um problema e que nós iríamos especializar-nos na solução. Muitos chamaram-nos loucos, outros resolveram seguir-nos. Houve cientistas da Nuxe e da Kanebo que vieram trabalhar connosco, e chegámos a fazer mais de 200 fórmulas por ano para 60 marcas espalhadas pelo mundo. Nessa altura, graças aos especialistas que conseguimos atrair e ao meu interesse pela biotecnologia, curei completamente os meus problemas de eczema. E percebi que gosto mais da companhia de cientistas do que de gestores e que, se queria ser livre, tinha de criar a minha própria empresa.

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Porque é que já nessa altura dizia que os ingredientes químicos iriam ser um problema?
Eu não sou tipicamente contra os químicos, no sentido daquelas pessoas que dizem, de uma forma alarmista, que os químicos são maus e estão a provocar-nos doenças e vamos todos morrer. O que eu digo é que os químicos são demasiado bons, porque são demasiado estáveis. Quando o ser humano cria uma molécula, um dos objetivos é que ela seja fácil e estável, para se poder construir uma fórmula a partir dela. Mas a vantagem dos químicos transforma-se num problema porque, quando a molécula é demasiado estável e é colocada em contacto com o corpo, normalmente não consegue ser destruída pelas bactérias e as enzimas que já lá estão naturalmente — ela foi manipulada pelos homens para ser totalmente estável. Fala-se muito no facto de o planeta estar poluído, mas a verdade é que o nosso corpo está tão poluído como o planeta. Chamamos-lhes “as moléculas de beleza estrangeiras” porque não pertencem ao corpo mas podem penetrar no corpo — através da comida, dos cremes diários — e permanecer no corpo.

Como é que sabemos que elas permanecem?
Há publicações científicas feitas por universidades independentes, como a universidade de Berkeley, que mostram que os químicos provenientes dos cremes penetram na pele e podem ser visíveis na urina e no sangue. Podem até interferir com o equilíbrio das hormonas. A questão que fica é: isto faz bem? Faz mal? Ninguém sabe. O que se sabe é que os bebés, as crianças, os adolescentes, os adultos, todos têm químicos no corpo. E se não sabemos se isto é bom ou mau, se passámos anos sem moléculas estrangeiras e se temos mais perguntas do que respostas, o melhor talvez seja evitá-las.

"Há publicações científicas que mostram que os químicos provenientes dos cremes penetram na pele e podem ser visíveis na urina e no sangue. A questão que fica é: isto faz bem? Faz mal? Ninguém sabe. E se temos mais perguntas do que respostas, o melhor talvez seja evitá-los."

E como é que isso se faz?
No caso da alimentação, escolhendo muito bem aquilo que se come. No caso da indústria cosmética, selecionando moléculas que sejam biodegradáveis, isto é, destruídas pelas bactérias e as enzimas que temos no corpo. Estou a falar de moléculas naturais, e aqui temos duas categorias: a clássica são os extratos de plantas, mas há também aquilo a que chamamos de moléculas biotecnológicas fabricadas. E o que é que isto significa? Significa criar uma molécula que existe no planeta. Veja-se o exemplo do ácido hialurónico: é um gel que existe na nossa pele, ou seja, é uma molécula que existe no planeta, no nosso corpo, em todos os animais. E como é que o fazemos? Pegamos em trigo, pegamos numa bactéria láctica, pomos a bactéria sobre o trigo e colocamos os dois numa máquina especial de alta pressão. A bactéria sente-se stressada e para se proteger retira a glucose do trigo. Esta proteção, este escudo que ela cria vai ser exatamente igual ao ácido hialurónico que existe na nossa pele. Pode-se injetar, pode-se até beber. A isto se chama um ingrediente biotecnológico. É química verde.

Pode-se beber?
Não sei se será a forma mais eficaz de se sentir os efeitos do ácido hialurónicos [risos], mas pode-se aplicar, injetar… e sim, pode-se até beber. E isso é bom. Deveríamos poder comer todas as moléculas presentes nos cremes que usamos. Porque é muito curioso… Quando pergunto às pessoas se comem frango de plástico, elas perguntam-me se sou louco. Mas o que talvez não saibam é que muitos dos componentes dos seus cuidados de pele vêm exatamente do mesmo sítio que o plástico: o petróleo.

"Deveríamos poder comer todas as moléculas presentes nos cremes que usamos. Quando pergunto às pessoas se comem frango de plástico, elas perguntam-me se sou louco. Mas o que talvez não saibam é que muitos dos componentes dos seus cuidados de pele vêm exatamente do mesmo sítio que o plástico: o petróleo."

Com tudo aquilo que se ouve sobre os alimentos processados, por exemplo, não acha que os consumidores do futuro vão estar mais alerta para estas questões?
Os consumidores do futuro são aquilo a que nós chamamos tecno-paranoicos. Eu sou contra aqueles que dizem que o que é natural é seguro mas não é eficiente, ou é antiquado, e que o que é químico é perigoso mas eficiente. Porque o natural pode ser altamente tecnológico, veja-se o botox. O botox é natural. O ácido hialurónico, os AHA, todos são naturais e muito eficientes. E todos são produzidos através de um processo tecnológico.

Porquê tecno-paranoicos?
Cada vez mais os consumidores vão visitar dermatologistas e clínicas de estética para fazer peelings, laser e injeções. Mas ao mesmo tempo estes consumidores, que são consumidores modernos, têm acesso a muitas fontes de informação e sabem cada vez mais, ou seja, estão cada vez mais preocupados. Têm medo dos parabenos, medo das moléculas químicas, etc. E isto é o lado da paranoia. Por outro lado, as pessoas estão cada vez mais focadas em si próprias. Querem tornar-se cada vez mais novas e cada vez mais bonitas, e ao mesmo tempo querem viver durante mais tempo ou até, em último caso, procurar a imortalidade. Por isso há uma espécie de fusão entre beleza e saúde. E esta é uma boa tendência.

O francês de 47 anos esteve em Lisboa a dar formação. Foto: Hugo Amaral/Observador

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

O que é que acha que as pessoas procuram quando investem em cremes?
No passado creio que queriam compensar os erros da vida: “Eu fumo, não pratico exercício, por isso vou fazer um tratamento ou comprar cremes.” Este é um pensamento errado mas ainda acontece. Por outro lado, há quem procure o prazer da aplicação que sente ao colocar um determinado produto, e por isso é que se trabalha a sua fragrância, a textura, os efeitos que isso tem no cérebro. Por último, creio que há muita gente que não tem a certeza se os cuidados de pele são assim tão eficazes, mas por precaução… prefere usá-los. O que nós queremos fazer agora é ensinar às pessoas que não devem comprar um produto só por comprar mas perceber porque é que estão a comprá-lo. De certa forma, gostávamos que as pessoas tivessem conhecimento antes de escolher. Que questionassem os ingredientes, a filosofia da marca, as pessoas que estão por trás do produto. Que não quisessem apenas resultados rápidos e uma beleza instantânea — embora também estejamos preparados para isso com produtos de lifting, por exemplo — mas percebessem que a prevenção também é importante. Se a minha mãe tem hiperpigmentação, será que eu vou esperar que me apareçam manchas ou vou pesquisar e perceber que, se aplicar vitamina C durante pelos três meses, estou a prevenir a hiperpigmentação? Isso é conhecimento, e creio que o futuro da cosmética passa por aí, e também pela transparência das fórmulas. A nossa missão é vender sonhos mas também informação.

Se os ingredientes naturais têm tantas vantagens, porque é que as marcas não estão todas a usá-los?
Não posso falar pelas outras marcas, mas também não vou ser politicamente correto. Algumas marcas — e até alguns consumidores — acreditam que os químicos são mais eficientes, porque defendem que o natural não pode ser tecnológico — o que não é verdade, como já vimos. Mas porque é que não os usam? Em primeiro lugar porque é mais fácil fazer fórmulas com moléculas químicas: geralmente não têm cheiro, são incolores e são hiper-estáveis. No nosso laboratório podemos fazer um creme químico em três dias, é muito fácil, mas é muito difícil fazer um creme natural. Em segundo lugar, é difícil ter boas fontes de produtos naturais — há mais fornecedores de moléculas químicas do que de moléculas biotecnológicas, embora isso esteja a mudar. Uma terceira razão é que, no caso de algumas moléculas, é muito mais barato optar pelas químicas e consegue-se obter mais lucro do que com uma fórmula natural.

"Os químicos são demasiado bons, porque são demasiado estáveis. Quando o ser humano cria uma molécula, um dos objetivos é que ela seja fácil e estável, para se poder construir uma fórmula a partir dela.Mas quando a molécula é demasiado estável e é colocada em contacto com o corpo, normalmente não consegue ser destruída pelas bactérias e as enzimas que já lá estão naturalmente."
 

Atualmente o mercado está inundado de séruns, cremes, boosters, máscaras, esfoliantes… O que é que pensa por exemplo dos 12 passos da rotina de beleza das coreanas?
Na Novexpert não somos a favor daquilo a que se chama o layering, isto é, pôr várias coisas umas em cima das outras. Parece estúpido e estranho, porque somos uma empresa que vende cremes, mas não queremos comprometer a nossa filosofia só para ganhar dinheiro. Somos muito claros quanto a isso e defendemos que não se devem pôr demasiados produtos na pele.

Porquê?
Primeiro porque não há necessidade, segundo porque a pele é um órgão que está constantemente a adaptar-se aos produtos que recebe. Mais uma vez isto parece estúpido para uma empresa de cuidados de beleza, mas chegamos ao ponto de dizer que uma ou duas vezes por semana não se deve colocar nenhum creme à noite, para deixar a pele restabelecer-se. Segundo os nossos cálculos, aplicamos no mínimo 500 moléculas na cara diariamente — 500. Não precisam de ser 2.000, não precisamos de centenas e centenas de moléculas todos os dias! Aliás, quando se aplicam demasiados produtos na pele, cria-se aquilo a que se chama hipoxia, isto é, reduz-se a oxigenação da pele. Sete por cento do oxigénio da pele vem do ar, por isso se se criar um efeito de tampa, a pele deixa de respirar. Pode-se aplicar um creme, dois cremes, mas não mais do que isso.

"Não somos a favor daquilo a que se chama o layering, isto é, pôr várias coisas umas em cima das outras. Parece estúpido e estranho, porque somos uma empresa que vende cremes, mas chegamos ao ponto de dizer que uma ou duas vezes por semana não se deve colocar nada à noite, para deixar a pele restabelecer-se."

E o que é que se faz com o protetor solar?
Se se vai estar ao sol mais do que 20 minutos, deve-se colocar protetor solar, mas apenas imediatamente antes da exposição. Mas colocar SPF [sun protection factor] em cremes anti-idade que se aplicam de manhã para estar protegido à hora de almoço é completamente inútil. Porque na maioria das vezes os filtros são químicos e não minerais, e se são químicos isso significa que têm um tempo de vida muito curto e à hora de almoço a maioria já não será eficaz. Por outro lado, para ser eficaz um creme anti-idade deve penetrar na pele, e se ele penetrar na pele e tiver SPF, significa que o SPF também está a penetrar na pele, ou seja, deixa de ser útil. Por isso não percebo esta tendência de colocar SPF em tudo só para proteger a pele cinco ou dez minutos à hora de almoço. Protetor solar sim, mas apenas antes da exposição, e se esta durar mais do que 20 minutos.

Às vezes parece falar contra o próprio negócio da cosmética.
Nós não queremos seguir as tendências, queremos pensar por nós próprios e fazer produtos que nós próprios queiramos usar. É por isso que os estudos de marketing são proibidos na nossa empresa. Assim como as estatísticas ou as apresentações de PowerPoint.

As apresentações de PowerPoint são proibidas? Porquê?
Porque geralmente quem não tem ideias esconde-se atrás do PowerPoint, e nós preferimos as ideias. É por isso que também proibimos os e-mails de manhã: responder a e-mails é reagir a uma coisa, não é ter iniciativa, e de manhã queremos incentivar a criatividade.

Dito assim parece que está a dirigir o Google da cosmética.
A uma escala muito mais pequena [risos]. Temos muitas pessoas que trabalham a partir de casa, porque temos um sistema de teleconferência, mas três vezes por ano juntamo-nos todos — num jardim, num restaurante ou numa loja — e todos têm uma opinião. Chamamos-lhe as sessões “comando”, no sentido dos soldados, e é onde discutimos as ideias que vão sendo colocadas numa base de dados ao longo do ano. O objetivo é sermos completamente loucos durante esse período mas retirar dali o que queremos fazer a seguir.

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