António Costa aproveitou, na quarta-feira, no debate que antecede o Conselho Europeu no Parlamento, uma pergunta sobre o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) e o 5G para explodir: “o modelo de leilão que a Anacom inventou é o pior modelo de leilão possível. Nunca mais termina [o leilão] e está a provocar um atraso imenso do desenvolvimento do 5G em Portugal”.
Foi a mais severa crítica à Anacom, pela forma como decidiu fazer o leilão para atribuir as licenças de 5G. As licitações na fase principal decorrem há quase 200 dias, estando o encaixe potencial acima dos 530 milhões. Um encaixe que vai direto para os cofres públicos, o que até tinha levado o ministro das Infraestruturas, em março, a dizer que podiam as licitações continuar porque o dinheiro era necessário. Opinião que evoluiu para, em julho, já dizer que preferia que o leilão terminasse. Mas mesmo nessa ocasião foi comedido nas críticas. “É importante que todos, incluindo para quem está a participar, acelerar o leilão”, disse apenas. Recuando ainda um pouco mais: em dezembro de 2020 – antes do leilão ser lançado – tinha afirmado solidariedade com a Anacom. Também no Parlamento declarou: “O Governo está solidário com a Anacom e com o regulamento que foi apresentado, esperemos que o leilão corra bem e que as operadoras façam o investimento a que vão estar obrigadas se ganharem a licença”.
Foi pela voz do seu ex-secretário de Estado Adjunto, Alberto Souto de Miranda, que as críticas foram mais audíveis. Já em julho de 2020 o então secretário de Estado com o pelouro das telecomunicações tinha dito esperar que o regulador ajustasse o regulamento do leilão e criticou a entidade por ter mantido a licença à Dense Air (uma empresa que tem espectro que está a leilão, mas nunca o usou, tendo-lhe sido permitido mantê-lo até 2025). Nada mudou então (a Anacom viria já durante o leilão a mudar por duas vezes as regras, numa tentativa de acelerá-lo, mas ainda sem grandes resultados práticos). As críticas de Souto Miranda, que na altura foram vistas como uma rutura entre Governo e Anacom, não tiveram consequência. E o secretário de Estado acabaria por sair do Executivo em setembro desse ano (2020).
Já o leilão, que teve desde início a oposição dos atuais operadores – Meo, Nos e Vodafone – pelo modelo escolhido, arrasta-se há quase 10 meses. E Portugal é um dos dois países europeus sem 5G. O outro é a Lituânia.
A crítica do primeiro-ministro, no Parlamento, adensou a tensão que já se vivia no setor. E foi a oportunidade para os operadores voltarem a pedir a demissão do regulador. Já o tinham feito antes e agora a Nos voltou ao tema.
Costa questiona poder de reguladores no ataque à Anacom por causa do 5G
João Cadete de Matos, atual presidente da Anacom, foi nomeado pelo anterior Governo de António Costa (em 2017) para um mandato de seis anos, que termina em agosto de 2023.
Pode ser demitido?
Face ao ataque de António Costa à Anacom, logo Paulo Rangel, candidato à liderança do PSD (as eleições decorrerão a 4 de dezembro), levantou a questão da demissão, dizendo “não haver outra hipótese” após o “ataque visceral” do primeiro-ministro, de agir em conformidade.
“Durante três anos, [o Governo] andou a amparar a Anacom e colaborou mesmo na feitura dos regulamentos. Se fez isso, parece que estava de acordo com a Anacom, mas se discorda, tem meios legais independentes de promover a demissão do Conselho de Administração da Anacom”, reforçou.
5G: Rangel pede demissão da administração da Anacom após ataque “visceral” de Costa
Mas tem? Os estatutos da Anacom, que a definem como regulador independente, estabelecem que o conselho de administração só pode ser dissolvido ou destituído após resolução do Conselho de Ministros “fundamentada em motivo justificado”. E existe motivo justificado “sempre que se verifique falta grave, responsabilidade individual ou coletiva, apurada em inquérito instruído por entidade independente do Governo, e precedendo audição da comissão parlamentar competente”.
E enumeram-se os casos:
Desrespeito grave ou reiterado das normas legais e dos presentes estatutos, designadamente o não cumprimento das obrigações de transparência e informação no que respeita à atividade da entidade reguladora, bem como dos regulamentos e orientações da Anacom;
Incumprimento do dever de exercício de funções em exclusividade ou a violação grave ou reiterada do dever de reserva;
Incumprimento substancial e injustificado do plano de atividades ou do orçamento da Anacom.
Os estatutos obedecem, por seu turno, à Lei Quadro dos Reguladores que determina as mesmas razões para a destituição.
Não há, nesta fase de reguladores independentes, casos de destituição, mas já houve vários confrontos entre reguladores e governantes.
A guerra pública do lixo entre regulador e Ambiente
Em 2019 logo a seguir às eleições ganhas novamente pelos socialistas, o ministro do Ambiente entrou em choque público com o presidente da ERSAR (Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos). Orlando Borges questionou a legalidade e legitimidade do despacho governamental que tinha concedido à EGF, empresa controlada pela Mota-Engil, a concessão da recolha para reciclagem dos resíduos biodegradáveis, à margem do quadro legal.
Como o negócio do lixo abriu uma guerra entre o regulador e o Ministério do Ambiente
As tomadas de posição do presidente da ERSAR denunciaram “condicionamento, grave ingerência do poder político na autonomia do regulador, clara afronta aos princípios de independência, interferência política” e chegaram ao Presidente da República. Orlando Borges acusou ainda o Ministério de Ambiente de ceder à pressão do grupo privado. O ministério de Matos Fernandes afirmou que ia responder às acusações com todos os meios ao seu dispor. No entanto, e depois de receber um parecer da Procuradoria-Geral da República recuou na intenção. Orlando Borges manteve-se no cargo até ao final do mandato — este ano — mas o Orçamento do Estado de 2021 aprovou por iniciativa do PCP o reforço dos poderes do Governo na definição dos investimentos para o setor do ambiente, enfraquecendo o poder a regulação económica pela fixação de tarifas por parte da ERSAR.
O governador que o ministro queria afastar e que acabou por substituir
Mais mediática e duradoura foi o braço de ferro entre o primeiro Governo de António Costa e o mais poderoso dos reguladores, o Banco de Portugal. Desde a recondução de Carlos Costa a poucos meses das eleições de 2015 e ainda no rescaldo da resolução do Banco Espírito, passando pelos embaraço trazido pelos casos mal resolvidos na banca — da queda do Banif ao Novo Banco e à transferência de obrigações para o BES mau que gerou a hostilidade e litigância de grandes fundos de investimento internacional contra Portugal e a dívida pública — até aos motivos pessoais que Mário Centeno teria contra o governador. Mas o “tiro ao governador” foi praticado por todo Governo e as declarações mais fortes até vieram de António Costa e do braço direito do ministro, o secretário de Estado, Ricardo Mourinho Félix.
António Costa até tinha apoios à esquerda para afastar o governador, mas a faltava-lhe a munição que fundamentaria uma falha grave — e que para muitos seria o relatório “secreto” pedido a Costa Pinto sobre a atuação do Banco de Portugal na queda do Banco Espírito Santo, que só veio a ser revelado este ano no quadro da comissão parlamentar de inquérito. O ministro das Finanças ainda tentou promover uma alteração do modelo de supervisão financeira que tirava poderes ao Banco de Portugal em matéria de resolução bancária, mas que acabou por não sair do papel.
O facto de o Banco Central Europeu ter a palavra decisiva também travou eventuais tentações de remover o governador. E Carlos Costa foi ficando, com uma posição cada vez mais enfraquecida e isolado (pela nomeação de administradores considerados próximos do PS) até renunciar ao poder legal que tinha de indicar nomes para o conselho de administração. E acabou substituído por Mário Centeno, numa nomeação mais polémica que a sua recondução em 2015 e que voltou a levantar o fantasma da subordinação dos reguladores ao Governo.
Comentando ao Observador o caso, Pedro Gonçalves, professor de direito em Coimbra, admite que se possa estar a chegar perto de uma falha grave que não deve apanhar só os ilícitos, mas também, no seu entender, as incompetências. E é isso que considera existir no âmbito do leilão do 5G. Aliás, os especialistas contactados pelo Observador convergem nas críticas ao decorrer do leilão, considerando Abel Mateus, economista e ex-presidente da Autoridade da Concorrência, no entanto que este caso encerra um problema técnico na forma como o leilão foi construído. Pelo mesmo diapasão afinou Vital Moreira que, no seu blogue, deu razão ao primeiro-ministro “quando denuncia publicamente o escandaloso arrastamento do concurso sobre as redes de telecomunicações de 5G, mal lançado e mal gerido pela Anacom”, um elogio a António Costa que depois o professor de direito transforma em crítica por causa de outra afirmação do primeiro-ministro. Mas aproveita ainda para questionar porque delegou o Governo a responsabilidade do leilão na Anacom – poderia não o ter feito. “E também não se conhece nenhuma objeção ou advertência levantada pelo Ministério competente aquando da consulta pública do referido Regulamento”.
Há em todo este processo uma manifesta incúria governamental na definição e imposição da política regulatória para o setor, deixando ‘à solta´ um regulador incompetente.”, diz Vital Moreira.
João Cadete de Matos tem justificado o atraso do leilão pela atuação dos operadores em concurso, a quem atribui culpas pelo arrastar do procedimento com licitações muito baixas desde janeiro. E já disse que no final iria revelar tudo o que se passou durante o leilão. Contactada pelo Observador, a Anacom não fez qualquer comentário às acusações do líder do Executivo.
Costa foi mais longe
Mas se as críticas à Anacom acabaram por recolher vários aplausos, António Costa aproveitou a mesma ocasião para desferir outra crítica.
Quem construiu essa doutrina absolutamente extraordinária de que era preciso limitar os poderes dos governos para dar poderes às entidades reguladoras deve refletir sobre este exemplo do leilão do 5G para ver se é este o bom modelo de governação económica do futuro.”
Foi esta frase que fez soar as campainhas sobre a independência dos reguladores.
João Confraria, professor universitário especialista em regulação, admite que poderá haver casos em que alguns poderes que seriam mais do foro político – e não técnico – foram transferidos para os reguladores de forma excessiva. Dá um exemplo que apanha precisamente a Anacom. João Confraria questiona se a decisão do que fazer ao espectro não devia ter ficado na esfera governamental. “Estas decisões têm conteúdo político”, diz, acrescentando que “as transferências de poderes, a determinada altura, estavam tão na moda que os governos não se aperceberam o que estavam a transferir” e, por isso, admite que terá “havido transferência excessiva de poderes dos governos para as autoridade reguladoras”.
Ainda assim os especialistas questionam até onde queria António Costa ir com a generalização. “Se quer acabar com autoridades reguladoras independentes, não pode”, atira João Confraria, no que é corroborado pelos colegas.
Há várias entidades reguladoras que estão escudadas no direito comunitário. Uma delas é precisamente a Anacom. É o caso também da ERSE, da ASF, da CMVM, da Autoridade da Concorrência. Também o Banco de Portugal tem um estatuto de independência, mas é um caso particular por ser entidade monetária.
Bruxelas dita regras
A Lei-Quadro dos Reguladores nasceu em 2013, em pleno programa de assistência financeira, quando Portugal estava sob a gestão da troika. O reforço das autoridades independentes foi um dos compromissos de Portugal perante o triunvirato em 2011.
O enquadramento da concorrência deve ser melhorado através do reforço da independência e dos recursos das autoridades reguladoras nacionais.”
E nesse âmbito nasceu a Lei-Quadro que abrange todos os reguladores, exceto o Banco de Portugal e a ERC (Comunicação Social). Nesse diploma estabelece-se que “as entidades reguladoras são independentes no exercício das suas funções e não se encontram sujeitas a superintendência ou tutela governamental”.
Neste momento está em discussão no Parlamento – na especialidade – a lei que transpõe a diretiva designada ECN+ para reforçar a independência da Autoridade da Concorrência, tendo, aliás, já sido motivo de críticas as regras incluídas pelo Governo.
Governo estende poder?
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No âmbito da legislação que transpõe uma diretiva europeia, o Governo introduziu, na proposta que entregou no Parlamento, a possibilidade de a Autoridade da Concorrência (AdC) ser destinatária de “regras estratégicas gerais ou orientações” emanadas pelo Executivo em matérias não relacionadas com inquéritos. Uma norma que propõe passe a estar vertida nos estatutos da AdC.
Uma proposta vista como um potencial foco de interferência do Governo na ação da Autoridade, colocando em risco a sua independência. No comentário à proposta, foi a própria entidade que alertou para o facto de poder essa norma ser “uma modalidade nova de intervenção do Governo sobre a missão da Autoridade da Concorrência, considerando-se que esta alteração é contrária ao espírito da diretiva de reforço, e não de limitação, da independência das autoridades da concorrência”.
Mas não é caso único de tentativa de intervenção do Governo. Aliás, Abel Mateus admite ao Observador que já houve nos governos de José Sócrates “tentativas de controlar entidades independentes” e admite que “há sempre essa tentação por parte de governos que têm tendências estatizantes”. Mas espera que não se entre pelo caminho de se retirar independência aos reguladores.
Pedro Gonçalves acrescenta haver já um caminho de 25 anos de regulação independente, mas “eventualmente há equilíbrios e será preciso atingir patamares que não se atingiram ainda”, um trabalho a fazer que “nunca há de estar acabado”.
Além das promessas à troika, há vários legislação comunitária a impôr independência aos reguladores. Mas também a Constituição da República Portuguesa prevê que se possa criar “entidades administrativas independentes”.
E é aqui que chega a crítica de Vital Moreira ao primeiro-ministro: “não tem razão quando invoca este caso [da Anacom] para questionar a própria noção de regulação independente, que se tornou dominante na Europa, importada dos Estados Unidos, desde os anos 90 do século passado, como parte integrante dos conceitos de ‘economia de mercado regulada’ e de ‘estado regulador’, em substituição do precedente ‘estado intervencionista'”.
À boleia desta polémica surge novamente a questão: mas então o que é um regulador independente? E logo surge a discussão em torno da nomeação das administrações que, à exceção da ERC, são de responsabilidade do Governo, ouvida a Cresap e o Parlamento. Há doutrina que aponta para um caminho de nomeação mais partilhada, entre Governo, Assembleia da República e Presidente, mas não tem seguido caminho em Portugal.
Uma das últimas nomeações, aliás, foi polémica nesse aspeto. Ana Paula Vitorino, ex-ministra e ex-deputada do PS, foi a escolha para ir liderar a AMT (Autoridade da Mobilidade e dos Transportes).
Chumbos e polémicas. Como o parlamento avalia os candidatos a reguladores, como Ana Paula Vitorino