As primeiras quatro horas de debate orçamental foram feitas de recuos no tempo até ao PSD de outro líder, o de Pedro Passos Coelho. O antigo primeiro-ministro não é uma presença inusitada nas intervenções socialistas dos últimos oito anos, mas neste debate do Orçamento na generalidade foi uma referência permanente para as comparações que António Costa trazia para atirar à direita. No sentido oposto, a oposição à direita aproveitava o ex-ministro Pedro Nuno Santos e as suas opiniões recentes na Sic-Notícias para tentar atingir os socialistas.
A Saúde e a Habitação voltaram a ser os temas mais focados pela oposição, numa altura delicada para o Governo que está em negociações com os médicos — e Costa foi reservado nos comentários sobre o processo negocial, repetindo apenas os números que trazia alinhados para responder às críticas de falta de investimento no SNS que choviam da oposição. Acabou por ser pouco pressionado num dos temas do momento, a privatização da TAP, com as declarações que o Presidente da República fez enquanto decorria o debate a marcarem mais do que o que se disse lá dentro: Costa adiantou quase nada sobre o que pretende fazer.
A aprovação, que acontecerá esta terça-feira, está garantida pela maioria socialista, devendo contar ainda com a abstenção de PAN e Livre. Aos dois Costa não prometeu muito para a especialidade e o mais que cedeu — por agora — a Inês Sousa Real foi no alargamento da biodiversidade na sua própria casa.
Mais ataques ao PSD de ontem do que ao de hoje
A mira de António Costa esteve exclusivamente apontada à direita, com uma rajada direcionada ao PSD de hoje e uma ainda mais significativa para o PSD de ontem, o de Pedro Passos Coelho. Não terão passado ao lado do primeiro-ministro e do PS as informações que circulam nos corredores do adversário político sobre o possível regresso de Passos, caso as Europeias não corram bem ao PSD de Luís Montenegro, tanto que disparou mais para o período pré-2015 do que aos tempos mais atuais.
O ataque à direção de Montenegro resumiu-se quase na totalidade a um cartaz que há um ano o PSD colou pelo país a dar conta do “corte de mil milhões permanente nas pensões para o futuro” que o Governo de Costa promoveria e que não se concretizou. E depois também sobre as propostas sociais-democratas para o IRS, que Costa comparou aos “amores de verão: enterram-se na areia no fim das férias. Foi tão fugaz este interesse que, rapidamente, se tornou desinteresse e hoje já nem falam do IRS”. O líder parlamentar, Joaquim Miranda Sarmento, havia de dar uma borla aos socialistas, ao afirmar no plenário que “infelizmente, quando PSD chega ao Governo tem de aumentar impostos” para corrigir erros do PS — a bancada da maioria aproveitou a parte da frase que lhe interessava, riu muito e nas redes sociais fez logo circular a ideia com o alerta: “O aviso está feito”.
Quanto ao PSD de ontem, não que seja uma novidade a memória de Passos nestes debates parlamentares. Mas o salto por cima do atual líder até ao anterior foi notório, com Costa a carregar nas comparações com o comportamento da economia nos dias de hoje e há oito anos. E na bancada do seu lado, Eurico Brilhante Dias a afirmar mesmo que o PS está “na iminência” de conquistar um novo eleitor: se Passos cumprir a sua palavra a esquerda terá nele “novo eleitor”, porque os socialistas conseguiram aumentar salários e pensões sem cortar salários e pensões.
Foram variadas as referências ao “enorme aumento de impostos” de Vítor Gaspar, acusando o PSD de querer recuperar as regras do IRS de 2015, quando ainda vigoravam as normas do “enorme aumento de impostos” para dizer que, se fosse hoje, uma pessoa que recebesse um salário de 1.300 euros pagaria em 2024 mais 963 euros do que irá pagar. Costa ainda deu “uma má notícia” ao PSD ao referir o saldo estrutural, que era 2,1 em 2015 e agora é 0. “O que é bom que os portugueses não se esqueçam é do que significa para si a consolidação estrutural, que não é mexer na receita, mas na despesa. É cortar na saúde, na educação, nos salários e pensões”, atirou a Miranda Sarmento.
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Uma munição chamada Pedro Nuno
A oposição encontrou uma nova arma de arremesso contra o Governo, e foi buscá-la onde, em teoria, menos se esperaria: ao interior do PS, mais especificamente aos comentários semanais que Pedro Nuno Santos faz, agora, na SIC Notícias.
Se o antigo ministro tem agarrado esse palco como uma oportunidade de ir marcando a diferença relativamente às opções do Governo de António Costa, tendo em apenas três semanas de comentários deixado já várias críticas para a posteridade, a oposição tem estado em frente ao televisor – e vai anotando as opiniões do ex-ministro das Infraestruturas que têm mais potencial para irritar o primeiro-ministro.
Neste debate, André Ventura fez questão de pegar num dos comentários de Pedro Nuno para “citar” o agora deputado (e eterno-futuro candidato à liderança do PS): “Era possível fazer diferente neste Orçamento”. Foi essa a ideia defendida por Pedro Nuno na SIC, num comentário em que fez questão de se demarcar da trajetória mais acelerada de redução da dívida que está a ser promovida pelo ministério de Fernando Medina, defendendo que o excedente orçamental poderia ao invés disso servir para que o Governo “fizesse as pazes” com classes profissionais que tem enfurecido, como os médicos e os professores.
Rui Rocha, da Iniciativa Liberal, também aproveitou a deixa e pegou no episódio mais incómodo – logo no primeira edição do seu espaço de comentário, Pedro Nuno contrariou o primeiro-ministro dizendo que o plano de reestruturação da TAP não obrigava à sua privatização e Costa teve de admitir que o ex-ministro tinha razão, assumindo no Parlamento: “Expressei-me mal”. Ora Rui Rocha lembrou o momento para pedir a Costa que voltasse a reconhecer um erro de “expressão”, desta vez no que toca à carga fiscal, que vai aumentar neste Orçamento do Estado (embora o Governo argumente que isso só acontece porque o poder de compra dos portugueses também aumentará).
A direita atirou contra Pedro Nuno, o deputado manteve-se sereno e a nova realidade parlamentar tornou-se evidente: enquanto o líder da ala esquerda do PS dedicar o seu espaço de comentário ao equilíbrio delicado de desenhar o seu caminho autónomo sem romper com o costismo, a oposição aproveitará para ir buscar munições e tentar criar – ou expor – uma fratura no interior do PS.
TAP. Pressão lá fora, mas pouca dentro do Parlamento
Um dos assuntos do momento, sobretudo depois do veto presidencial ao decreto de reprivatização da TAP, é a venda da companhia aérea portuguesa — e durante o debate, o Presidente da República fez mais pressão sobre o tema. Ainda assim, foi um assunto apenas tocado uma única vez e depois de uma pergunta do PCP, com Paula Santos a avisar que só o “controlo público” é a solução. “O Governo está a tempo de não cometer este crime económico”, disse.
A resposta de António Costa foi, mais uma vez, pouco esclarecedora sobre o modelo de privatização que pretende seguir. Apenas garantiu que “se o hub de Lisboa não estiver garantido e não estiver garantida a função estratégica da TAP, nesse caso não haverá privatização”. “A privatização ocorrerá no estrito respeito pela vocação estratégica da TAP porque foi por isso que adquirimos a parte necessária do capital em 2015 e que fizemos aumento de capital em 2020. Não é na privatização que vamos alienar o que se conseguiu” nessa altura, argumentou Costa. Voltou a repetir que “para alcançar esse objetivo não é necessário ter 100% do capital ou sequer 51%. Depende de quem for o sócio e o pacto social entre os sócios”. No final, acabou por se saber pouco mais sobre o assunto do que o pouco que se sabia até aqui.
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Problema da Saúde é de gestão? “Aleluia”
Se há tema que continua a conseguir colocar a oposição em bloco, da esquerda à direita, de acordo são as falhas do Governo na Saúde. Em pleno período de negociações – tensas, no mínimo – sobre as condições profissionais dos médicos, o Parlamento foi profícuo em críticas ao Executivo e em particular à gestão que faz do SNS.
O assunto foi transversal – por todas as bancadas se foram lembrando os mais de 1,5 milhões de portugueses sem médico de família, os atrasos nas cirurgias ou a confusão nas urgências – e a resposta de António Costa manteve-se. O problema não é orçamental, até porque o orçamento da Saúde se vai engrossando todos os anos, insiste o primeiro-ministro; a falha está mesmo na forma como esses recursos são geridos.
O problema é que esta não é exatamente uma resposta que pacifique a oposição. “Ainda não percebeu que o problema não é um milhão ou dois milhões, o problema é a sua incompetência”, gritou André Ventura. No PSD, Joaquim Miranda Sarmento mostrou-se aliviado – q.b. – por ouvir Costa a admitir as falhas de gestão: “Aleluia, só que o senhor governa há oito anos”, ironizou.
À esquerda, o mesmo cenário: o Bloco acabou por acusar o Governo de “chantagear” os médicos com “vidas e horários impossíveis”, o PCP disse ver os milhões dedicados à Saúde a irem direitinhos para os grupos privados. Continua sem haver acordo possível – nem no Parlamento nem à mesa das negociações com os profissionais de Saúde.
As exigências dos parceiros e o novo animal de Costa
Em tempos de maioria absoluta e com a oposição a acusar o Governo de se mostrar cada vez menos dialogante, é preciso dar provas do contrário. Com o final do geringonça, o PS pareceu ter pelo menos conseguido manter boas relações com dois parceiros – o PAN e o Livre –, mas há um irritante: a (fraca) execução das medidas que são propostas pela oposição.
O facto já tinha sido notado pelos deputados destes partidos, mas parece continuar a haver, pelo menos, uma margem inicial para conversar. Neste debate, Inês Sousa Real atirou a Costa várias exigências cuja inclusão na versão final do Orçamento será, no mínimo, muito improvável, do reajustamento dos escalões do IRS ao prolongamento do IVA Zero.
Costa quis remeter as conversas mais detalhadas para depois, agradecendo à deputada a disponibilidade para conversar durante a fase da especialidade orçamental e acabando por revelar uma das poucas notícias do debate: ao pedido do PAN para que sejam reduzidos os impostos nas despesas com animais de companhia, Costa assumiu que conta agora em casa com mais “uma espécie” além dos dois cães que já tinha (embora não tenha adiantado qual).
Quanto a Rui Tavares, o deputado do Livre começou por subir a parada – dizendo que a discussão de uma sobretaxa para milionários no IMT é condição para levar as negociações até à especialidade – e viu uma porta aberta pelo primeiro-ministro, mas noutro ponto: o da “disponibilidade e interesse” do Governo em “alargar as condições para os passes sociais”. Resta saber se chega.