Cresceu numa família de cozinheiros, mas foi educado desde pequeno em colégios internos. Hans Neuner começou a formação aos 14 anos na cozinha de um hotel e quase se perdeu em festas e noitadas. Chegava atrasado, adormecia no posto e esteve várias vezes para ser despedido. Depois atinou. Em Londres, cozinhou para a Rainha Isabel II e para Nelson Mandela, esteve ao lado de Danny DeVito e viu passar Sharon Stone. Em Berlim, fez parte da equipa que preparou uma refeição para George W. Bush. Passou por restaurantes com estrelas Michelin em várias cidades europeias, incluindo Berlim, Hamburgo e Maiorca, até chegar a Portugal, em 2007. Assinou contrato com o Vila Vita Parc, em Alporchinhos, e comprometeu-se a conquistar uma estrela no mais prestigiado guia gastronómico do mundo, em quatro anos. Cumpriu o objetivo no Ocean apenas ao fim de dois. Entretanto, venceu a segunda. Aos 40 anos, diz que está a trabalhar para receber a terceira.
Vem de uma família de cozinheiros, de perto de Innsbruck, na Áustria…
Sou de uma pequena aldeia chamada Leutasch. A minha família tem um restaurante, não de alta cozinha, mas de cozinha tradicional austríaca, que serve pratos típicos do Tirol.
Quem é o grande cozinheiro da casa?
Eu! (risos) Não… Quem começou tudo foi a minha avó materna. Ela era a melhor cozinheira da família. Agora a minha mãe, o meu pai, o meu irmão e eu somos todos chefs. A minha irmã mais velha não quis ficar ligada à gastronomia. Ajudou demasiado quando era pequena. Sabe como é… Tínhamos de ajudar os nossos pais a lavar pratos, a fazer o que era preciso.
Lembra-se de estar sempre na cozinha?
Sim, sem dúvida. O nosso apartamento ficava mesmo por cima do restaurante. Quando éramos crianças, descíamos cinco ou 10 degraus e espreitávamos para ver o que os nossos pais estavam a fazer, de onde vinham os aromas. Quando se cresce no meio da gastronomia, não se recebe muita atenção dos pais. Eles trabalham o dia inteiro. O melhor é que a casa da família seja junto ao restaurante. Acabamos por crescer lá. Caso contrário, não os vemos.
O que é que eles cozinhavam?
Caracóis e esse tipo de coisas.
Caracóis como os nossos?
Sim. Os meus pais serviam muito esse tipo de pratos. Adoro caracóis com manteiga de especiarias. Cresci com isso. Ainda os fazem. É uma das especialidades. Em Espanha também comem caracóis. Quando o meu pai começou a cozinhar, trabalhou em França. Foi de lá que trouxe os caracóis. Também faz muitos pratos com fígado. Naquele tipo de restaurante cozinha-se todo o animal. O meu pai comprava metade de uma vaca ou de um porco, e usava todas as partes. Aqui, por exemplo, só compramos uma determinada parte do animal.
Eram três irmãos?
Sim, eu sou o mais novo. O meu irmão tomou conta dos negócios da casa. Os meus pais estão em vias de se reformar, mas ainda por lá andam. Já têm alguma idade e ele assumiu o controlo. Na verdade, estudámos em colégios internos porque os nossos pais não tinham tempo para nós. Só vínhamos a casa nas férias. No Tirol, isso era relativamente frequente, quando os pais trabalhavam em negócios ligados à gastronomia, à hotelaria, ao turismo de inverno. Toda a gente tinha uma relação com essa área.
Onde eram os colégios?
Em Scharnitz, uma aldeia que ficava a meia hora de carro. Para um miúdo de sete anos parece uma grande distância. Fiz lá os primeiros cinco anos e depois fui para outro mosteiro.
Foi difícil?
Não foi muito complicado. Estavam lá amigos nossos cujos pais tinham hotéis ou coisas do género. Fizemos o internato com muita gente ligada à gastronomia.
Os monges eram muito rigorosos?
Sim!
Batiam-vos?
Batiam, sim.
Era bom aluno? Portava-se bem?
Nem por isso. Tentávamos fazer tudo aquilo que era proibido. É muito mais interessante ir atrás daquilo que não é suposto. Não fui um miúdo bem comportado. Era um bocado gangster.
Qual era a sua partida preferida?
Muitas coisas, não vou contar-lhe. Foi por isso que os meus pais perceberam que não tinham tempo para mim e que precisavam de me internar.
Era o pior dos três?
Sim, por isso é que entrei para o colégio com sete anos. Os meus irmãos só foram com 10 ou 11. Eu frequentei o primeiro ano na nossa aldeia depois tive de ir.
Mas o que é que fez para eles tomarem essa decisão?
Brincámos com o fogo e incendiámos lá qualquer coisa. Hoje não parece nada de especial, mas mandaram-me logo para o internato.
De que é que mais gostava na escola?
De nada… Bom, talvez de Educação Física. Jogávamos futebol e eu pertencia a um clube de xadrez. De resto, fiz o mínimo obrigatório na Áustria e desisti. Já sabia que queria ser cozinheiro. Dizia que ia tomar conta do negócio dos meus pais. Em miúdo, entrava lá e dizia: “Isto é tudo meu. Um dia, eu é que vou ser o chef.”
A sua família foi afetada pela Segunda Guerra Mundial?
O meu avô foi à guerra da Sibéria. Era mensageiro. Ia de bicicleta levar recados à linha da frente. Foi um dos poucos que regressaram. Voltou bem. Ele era esperto.
Ele contava histórias desses tempos?
Nem por isso e nós éramos muito novos quando ele morreu.
Falava-se de política lá em casa?
Não. A minha mãe tinha quatro anos quando a Segunda Guerra acabou. Ela e o meu pai fazem parte da geração que reconstruiu o país. É por isso que têm uma mentalidade orientada para a necessidade de trabalhar arduamente e fazer alguma coisa a partir do zero. São muito diferentes de mim. As pessoas que sofreram muito têm um respeito diferente pelo trabalho e pelo dinheiro. Os meus pais ficam loucos quando se parte um prato [por causa do desperdício].
Qual foi a sua primeira experiência na cozinha?
Tentei fazer pizza em casa. Fizemos a massa e eu pu-la na grelha. Queria ser como o meu pai, mas ele disse: “Desaparece.” Eu punha a massa na grelha e sujava aquilo tudo. Lembro-me bem.
E a primeira comida de jeito?
Aos 14 anos, quando fui para uma escola de cozinha. Quando éramos miúdos, [no restaurante da família] ajudávamos nas limpezas. Depois começávamos a fazer molhos, estufados, a cortar vegetais. Quando chegava a carcaça de um animal, ficávamos a admirar o nosso pai enquanto ele a desmanchava. Aprendemos isso com ele.
Criavam gado?
Não, mas como vivíamos numa aldeia pequena, conhecíamos os agricultores e os produtores locais. Era à moda antiga. O meu irmão continua a fazer a mesma coisa.
Se não o deixavam cozinhar, como é que sabia que queria ser chef?
Já nessa altura era um emprego apetecível. Desde os anos 60 que os cozinheiros eram respeitados na minha terra. Tudo dependia do turismo e por isso os chefs dos melhores hotéis tinham nome.
Qual era a especialidade da sua mãe?
Ela fazia os acompanhamentos, os vegetais e as sopas. O meu pai assava a carne e havia uma pessoa que fazia todos os molhos.
Era um bom garfo?
Nem por isso, mas tinha um bom nariz. Não me tornei cozinheiro por ser um bom garfo: foi a forma que encontrei de viajar pelo mundo.
Quais são os primeiros cheiros de que se lembra?
Dos caracóis que o meu pai fazia. Há alguns aromas que nunca esquecemos. Todos os anos, quando vou a casa, entro na cozinha e o cheiro é igual. Adoro isso. Não quero que mude.
Pede-lhes que cozinhem alguma coisa especial quando lá vai?
Claro! Fígado, goulash, algumas pizzas, certos bifes, determinados molhos… Faço um plano. Eles têm 20 ou 30 pratos, quando lá fico um mês como uma coisa diferente em cada dia. O meu irmão prepara alguns pratos especialmente para mim.
O que é que o seu pai diz da sua comida?
Que é demasiado finória para ele. Admira muito o que fazemos aqui mas sempre preferiu restaurantes que dessem lucro e nós não damos muito dinheiro. É por isso que toda a gente faz livros de cozinha e coisas desse género. Mesmo que o restaurante esteja cheio, temos sempre 26 empregados a quem é preciso pagar. Com um restaurante mais simples, o meu pai chega ao fim do dia com mais dinheiro na conta. E por isso tem um restaurante aberto há 50 anos. O meu pai tem um gosto curioso, está sempre a testar coisas novas. Tornou-se o melhor de todos. Agora é o meu irmão. Trabalhou em três restaurantes com estrelas Michelin.
E voltou para o negócio da família?
Sempre dissemos que, se acontecesse alguma coisa aos nossos pais, um de nós teria de regressar e tomar conta do restaurante. É a nossa família. Uma vez o meu irmão estava em casa de férias e o meu pai teve um AVC. Assumiu ele o controlo. Se fosse eu quem lá estivesse, teria ficado eu.
Sem problema?
Sim. A família está sempre em primeiro lugar. O sítio é muito bonito e parece terrivelmente aborrecido quando temos 18 anos, mas agora que já viajei por todo o mundo, não me custaria regressar.
Começou a tirar o curso de cozinheiro com 14 anos.
Na Áustria, aprende-se a cozinhar em restaurantes ou hotéis. Trabalhamos durante um ano e passamos três meses na escola. Fui para o hotel Steingenberger Alpenkönig, que tinha acabado de abrir. O restaurante era bom. Começámos num nível bastante elevado. O meu pai disse-me: se queres ser chef, tens de iniciar nos melhores sítios. Foi ele quem me levou lá.
Sabia que era um restaurante de tão alto nível?
Não e eu nunca quis ser um chef com estrelas Michelin. Quando conheci o primeiro chef, percebi que ele tinha de trabalhar muitas horas e pensei: “Há mais na vida do que isto!” Os cozinheiros passam tempo na cozinha. Percebi que não queria ter estrelas Michelin e que devia haver uma forma mais fácil de ganhar dinheiro.
Como foi o primeiro ano?
Quiseram despedir-me várias vezes.
Porquê?
Porque o que nós queríamos era festa. Estávamos pela primeira vez longe do controlo dos pais. Ninguém tomava conta de nós. Trabalhávamos de dia e à noite íamos à discoteca, se nos deixassem entrar. O meu irmão foi buscar-me tantas vezes…
Ele assumiu o papel de pai?
O meu irmão tentou garantir que eu não me passava completamente. Quando somos jovens, achamos que tudo é mais importante do que o trabalho. Aos 15 anos, é claro que eu não pensava: “Uau, que bom trabalhar 20 horas por dia…” Queria divertir-me, fazer snowboard durante o dia e sair à noite.
Quais foram as primeiras tarefas que lhe atribuíram?
No início, todos tínhamos de preparar os pequenos-almoços. Ahhhh, eu detestava tanto isso! Eram bufet. Fazíamos ovos para os clientes. Eu odiava. Nunca gostei muito desse contacto. Ainda hoje não preciso disso. Não saio da cozinha para vir cumprimentar toda a gente. Mas nessa altura, chegar ao hotel depois de uma noitada e começar a fritar ovos… Adormeci mais do que uma vez. Como chegava atrasado, uma vez, para me castigarem, mandaram-me limpar debaixo do fogão. Adormeci lá. Era um miúdo. E o que importa na juventude não é cozinhar: é divertirmo-nos. Aos 17 anos, no terceiro ano de formação, já era diferente: passávamos pelos diferentes postos, a começar pela pastelaria.
Gostava?
Nem por isso. Mas se voltasse ao início, talvez me dedicasse a isso. Há tão poucos chefs pasteleiros. É muito mais fácil encontrar trabalho. Agora ser chef está na moda, toda a gente quer.
Depois da pastelaria passou para onde?
Para o posto de garde manger, a preparar entradas e essas coisas. Ficávamos oito meses em cada posto.
Quando é que começou a gostar de cozinhar?
Quando estive na pastelaria, o chef era um nerd. Era um dos melhores da Áustria, fazia coisas incríveis, mas eu não gostava daquilo. O chef do posto de garde manger era um tipo muito viajado e eu passei a achar que ser cozinheiro era mesmo fixe. Comecei a gostar mais à medida que me aproximei de ser chef. Antes disso, trabalhava tantas horas… Na Alemanha, havia dias em que trabalhávamos dia e noite. Há 20 anos, era muito mais pesado.
Ao fim de três anos de formação foi para Saint Moritz, na Suíça.
Concorri ao lugar de commis de cuisine, que é o primeiro patamar de uma cozinha. Em Saint Moritz, eles têm um dos mais importantes Festivais Gourmet do mundo.
Percebeu nessa altura que havia de ser um chef com estrelas Michelin?
Eu sabia que ia continuar na indústria, mas não imaginei que fosse chegar a chef Michelin. Pensei que ia trabalhar em hotéis.
Alguma vez ficou com a sensação de que se servia pouca comida nesses restaurantes?
Nessa época, as quantidades eram maiores e os menus não eram tão grandes como hoje. Isso mudou muito… Antigamente, um restaurante com três estrelas tinha cinco pratos. Ponto final. Isso mudou, porque os espanhóis foram juntando snacks aos menus. Alguns têm 20 ou 30 pratos… E isso fez com que as quantidades reduzissem. No início, servia-se meia lagosta, por exemplo.
Como foi a experiência em Saint Moritz?
Foi boa. Fiz lá duas épocas de inverno antes do serviço militar.
Quanto tempo esteve na tropa?
Fiz parte da primeira incorporação que cumpriu nove meses: a recruta foi em Salzburgo e depois fomos defender a fronteira. Fui à tropa na época da Guerra dos Balcãs e era preciso proteger a fronteira no caso de haver algum problema. Víamos o que estava a acontecer do outro lado e não era nada agradável. A Áustria não entrou no conflito, mas as populações que viviam na raia estavam assustadas. Tínhamos munições, fazíamos turnos noturnos, recebíamos refugiados — o que, à noite, pode ser complicado. Sempre me enfureceu ter de fazer aquele tipo de trabalho. Essa responsabilidade devia ser entregue a um exército profissional. À distância, não me parece assim tão mau. Acho que os miúdos deviam tomar contacto com aquela organização e aprender a respeitar as instituições.
O que é que fez depois da tropa?
Voltei para a Suíça para participar no tal festival gourmet. Foi lá que conheci um chef de Londres e acabei a trabalhar com ele.
Já tinha estado em Londres?
Não. Fui tão estúpido… Achei que ia ser capaz de encontrar um apartamento em dois dias. Cheguei numa sexta para começar a trabalhar na segunda seguinte. Claro que não encontrei casa e acabei a viver num hostel durante um mês. Tive de partilhar o espaço… Às 6h00 da manhã chegava gente que tinha ido sair à noite e eu precisava de acordar cedo para ir trabalhar… Depois lá encontrei um quarto.
Foi trabalhar para o restaurante do Dorchester Hotel.
Sim, em Hyde Park. É um hotel muito antigo que tem vários restaurantes, entre os quais um com estrelas Michelin.
Era nesse que trabalhava?
Sim, eu era o poissonnier. Comecei como segundo commis, a posição mais baixa que se ocupa na cozinha. Fiz lá ótimos amigos, diverti-me muito em Londres. Adoro a cidade. Fazíamos bastante comida internacional.
Como é que a carreira evolui dentro da cozinha?
Quem não estuda, provavelmente começa na copa a lavar pratos. É assim que funciona. E um dia, depois de termos passado por todos os postos e adquirido um bom nível, chegamos a sub-chef.
Qual é o posto mas difícil?
Eu gosto do de saucier, é o mais difícil. Numa cozinha onde não existe um sub-chef, é ele o mais reconhecido.
Alguma vez se magoou a sério na cozinha?
Uma vez cortei-me num dedo, tive de fazer um enxerto de pele.
Como é que isso aconteceu?
Estava a abrir amêndoas verdes com uma faca grande que me escapou da mão. Mas o que é isto comparado com quem perde uma perna? Já vi uma pessoa queimar-se com líquido a ferver. Quando lhe tirámos as calças veio a pele toda atrás. Isso foi realmente horrível. Hoje em dia não acontecem essas coisas. Não existe tanto stresse como noutros tempos.
Será isso ou é a sua cozinha que é mais calma do que já foi?
Há stresse, mas as coisas são mais organizadas. Não é tão difícil como era.
Ficou em Londres mais de um ano. O que é que recorda desse tempo?
Iam lá muitas celebridades [ao hotel]. Todas as estrelas de cinema dessa época passaram pela nossa cozinha, Tom Cruise, Sharon Stone. O Danny De Vito esteve comigo no meu posto.
Passavam pela cozinha ou pelo hotel?
Pela cozinha! O Dorchester é mesmo um hotel só para pessoas de topo, sheiks, gente desse nível. Cozinhei para a Rainha e Nelson Mandela. Não me lembro o que é que cozinhámos, mas guardei o menu. Havia pessoas a provar o que ela ia comer. Dois dias antes, a polícia passou revista à cozinha para ver se estava tudo em ordem. Gostei de cozinhar para eles, porque são pessoas fixes. Também cozinhei para George Bush, em Berlim, Obama e mais uns quantos sacanas [desse género]. Nessas alturas é tudo verificado. Por acaso tivemos oportunidade de ver George Bush — não que seja uma coisa de que me orgulhe. Quando ele foi a Berlim, fecharam tudo, os dois pisos superiores [do hotel Adlon] ficaram reservados. Metade dos elevadores teve de ser desligada porque o equipamento elétrico da comitiva consumia grande parte da energia do hotel. São 400 pessoas. Bush entrou na cozinha porque era uma forma de sair em segurança sem ser visto.
Mesmo?
É o acesso mais fácil. Os chefs veem muitas cenas deste tipo. Nunca reparou que nos filmes eles fogem sempre pela cozinha?
Sim, mas pensei que fosse só nos filmes.
Não, eles usam sempre a porta das traseiras.
Depois de Londres foi para as Bermudas.
Foi lá que conheci o primeiro português, era dos Açores. Fui com um amigo que conheci no Dorchester Pensámos em ir para França, mas queríamos uma vida mais divertida e acabámos nas Bermudas. Quando saí de lá estive algumas semanas em Nova Iorque.
O que é que fez enquanto lá esteve?
Nada de especial. Fui comer fora, vi a Estátua da Liberdade, gastei o dinheiro que tinha ganho nas Bermudas… É preciso poupar para ir a alguns sítios. Dali segui para a Tailândia. Gastei o dinheiro a viajar. Já fui a mais de 100 países, porque trabalhei num navio de cruzeiro. Passava pelos portos, visitava qualquer coisa e pronto. No cruzeiro aprendi algumas coisas, porque havia chefs convidados. O problema é que se trabalha seis ou sete dias por semana. Ao fim de oito meses estava acabado.
Que chefs passaram por lá?
Lembro-me do Wolfgang Puck, que é um dos mais famosos do mundo, e uma lista enorme de chefs com estrelas Michelin. Também me recordo de Heston Blumenthal. Há três anos convidaram-me a mim para ir lá cozinhar. Foi fixe.
Quando lá trabalhava o que é que fazia?
Estava nos pedidos especiais. Recebia uma lista das pessoas que não queriam comer o que estava na ementa e tinha de preparar esses pratos. No fim disso, andei seis meses a viajar pelos Estados Unidos e pelo México. Fiz parte da Route 66. Entretanto o Hotel Adlon tinha aberto em Berlim, dizia-se que era o melhor da Alemanha. Fui lá ver e acabei por ir ter com o chef, ele viu o meu CV e ofereceu-me um lugar. Desde essa altura tenho trabalhado sempre em restaurantes com estrelas Michelin. Pensei que ia fazer aquilo durante alguns anos para melhorar o meu nível. Depois de trabalhar num restaurante desses, é certo que sabemos o que estamos a fazer.
O nível era muito mais elevado em Berlim?
Sim, comparado com as Bermudas e outros sítios. Foi por essa altura que o El Bulli se tornou conhecido e houve um investimento para que pudéssemos ascender a esse patamar. Fazia-se alguma cozinha clássica francesa com algumas influências modernas, da cozinha molecular, caviar… O nível dos produtos era enorme. Chegavam de avião duas ou três vezes por semana. Uma vez pediram umas cerejas caríssimas do Canadá só para satisfazer um sheik árabe. Até que o chef veio ter comigo e me disse que precisava que eu fosse abrir outro restaurante Michelin e que lá ficasse durante um ano. Não sei se quero fazer isto a vida inteira, mas cozinhar é o trabalho mais fixe que existe.
O que é que come em casa?
Vou muitas vezes jantar fora com a minha namorada.
Mas quando cozinha em casa o que é que faz?
Massas simples com bons molhos. Sou bom em qualquer coisa, mas é raro cozinhar em casa.
E onde é que vão?
A Monchique e outros sítios.
Sítios simples?
Sim, sim. Quando vou a restaurantes deste tipo [semelhantes ao Ocean], é como se estivesse a trabalhar. Analiso, anoto pormenores, tiro fotografias, não fico descontraído, não rio. Claro que conheço todos os restaurantes Michelin em Portugal, mas de um modo geral vou a sítios mais básicos, como um indiano, um chinês, um tailandês, ao japonês de Albufeira, à Tasca do Petrol, em Monchique, que serve comida simples mas maravilhosa. À Eira do Mel, em Vila do Bispo, que tem a melhor cataplana de polvo que eu conheço. O José Pinheiro é realmente um bom chef. Tem feeling.
Esteve em Berlim e em Hamburgo…
No meio disso passei pelo Tristan, em Maiorca, que tinha duas estrelas nessa altura. O [Dieter] Koschina, do Villa Joya, tinha lá trabalhado anos antes. Retiramos um pouco de cada sítio por onde passamos. É por isso que as pessoas devem viajar e trazer coisas.
Ao longo do seu percurso, houve técnicas que teve dificuldade em aprender?
Há milhões de coisas que levam séculos a aprender. Especialmente nos últimos 10 ou 15 anos, com o aparecimento da cozinha molecular. Nessas alturas é preciso pegar num livro e estudar. Agora existe a Internet, está lá tudo. É por isso que aparecem chefs muito jovens a fazer coisas ótimas. Há muitas cópias. Por isso é que os meus chefs não estão autorizados a fotografar e publicar os meus pratos nas redes sociais.
Como é que veio parar a Portugal?
Quando fui para Hamburgo, havia uma cozinha Lohberger no restaurante. De vez em quando pediam-me para cozinhar em feiras para apresentar os equipamentos. Eu era o número dois de Hauser: tinha de fazer todo o trabalho e a fama ficava para ele.
Mas foi o chef que o recomendou para este lugar?
Não, não, não. Ele deixava-me fazer as coisas que ele não queria. Ficou danado quando eu saí — ainda para mais por ter sido a empresa de cozinhas a falar-me neste lugar. Nessa feira, em Hamburgo, os representantes da Lohberger disseram que estavam a construir uma nova cozinha em Portugal. Eu já estava há cinco anos em Hamburgo, decidi experimentar.
Já tinha estado em Portugal?
Tinha passado por Lisboa quando trabalhei no navio de cruzeiros. Lisboa era bonita, mas estava toda destruída. Não era como agora. Mudou tanto. Lisboa foi o primeiro porto na Europa. Hoje Lisboa é uma cidade super fixe. Arranjaram-na, mas deixaram-na como ela era.
Então convidaram-no para trabalhar aqui.
Sim, estava farto do Hauser — não era bem dele, era de ter de fazer tudo e não ser reconhecido. Quando somos subchefes, há um dia em que temos de sair e fazer o nosso próprio nome. De outra forma, estaremos sempre em segundo lugar. Vim cá, falei com o senhor [Kurt] Gillig, o diretor do hotel, e os proprietários. Assinei um contrato em que me comprometia a ganhar uma estrela Michelin em quatro anos.
Pareceu-lhe difícil?
Não, eu tinha trabalhado em vários restaurantes com estrelas. Depois disso, se nos derem as condições mínimas, não é assim tão difícil conseguir uma estrela. Tinha quase a certeza de que iríamos ser capazes. Conseguimos em dois anos. No início, a cozinha era muito pequena, o restaurante era enorme e feio. Não tem nada a ver com o que é hoje. Agora foi feito um investimento de alguns milhões para melhorar as condições.
Quantos milhões?
Julgo que 2,8 milhões de euros. Mudámos tudo, incluindo o exterior, o telhado. Investimos numa boa cozinha que deve durar 20 anos. Só o sistema de ar condicionado da cozinha custou 200 mil euros — está lá em cima no telhado, ninguém o vê. Dava para comprar uma casa só com o dinheiro que gastámos nestes candeeiros.
O que é que cozinhava quando veio para cá?
Uma mistura daquilo que fazia noutros restaurantes Michelin. Apostava nessas receitas, mudava-as ligeiramente.
Nessa altura ainda não se tinha virado para os produtos locais…
Nem pensar nisso. Uma ou duas vezes por semana, chegava um avião com os produtos que encomendávamos em França. Não era fácil encontrá-los aqui. Há 10 anos haveria quatro ou cinco restaurantes Michelin em Portugal. Sempre disse que as coisas haviam de melhorar e agora estão bem encaminhadas.
Sabia alguma coisa sobre a cozinha portuguesa?
Não. Mas isso é o que me trazem os portugueses que trabalham comigo: os pratos que as mães fazem, a forma como os preparam… Fomos dos primeiros a adaptar receitas portuguesas, fizemos as primeiras cataplanas. Agora tivemos de mudar um bocadinho porque estava toda a gente a fazer o mesmo. Se formos ao Alma, em Lisboa, há cataplanas. O prato é delicioso, mas temos de ser diferentes. De certa forma nós influenciámo-los. Hoje têm muito mais identidade.
Quem foram as primeiras pessoas a ensinar-lhe truques sobre a cozinha portuguesa?
A ajuda inicial chega sempre pelos elementos do staff da cozinha. Tínhamos cá uma senhora muito velhota na copa, a dona Alice. Fazia um polvo incrível. E ensinou-me a cozinhá-lo na panela de pressão. Eu trabalhei em restaurantes com três estrelas Michelin, mas não conheci ninguém que fizesse polvo como ela. E é assim que o cozinhamos aqui no Ocean. Havia quem dissesse que tínhamos de o cozer com uma rolha de vinho tinto para ficar mais tenro. Tudo treta.
Como é que foi receber a primeira estrela? Foi à cerimónia?
Não me convidaram. Estava na cozinha quando soube. E aconteceu o mesmo com a segunda estrela. Conheço portugueses que sabiam que iam receber estrelas antes da entrega. Quando me deram a segunda, estava na cozinha e recebi um telefonema de um jornalista, o Duarte Calvão. Toda a equipa do Villa Joya veio para cá e fizemos uma festa enorme. Não cozinhámos, só bebemos.
O que é que beberam?
Acabámos com o champanhe, bebemos todas as garrafas de Don Pérignon que tínhamos. Foi por conta da casa.
É curioso que o Hans e o chef Dieter Koschina não sejam rivais. Na verdade, são amigos…
Grandes amigos! Dou-me bem com todos os chefs em Portugal. Há muito espaço para restaurantes em Portugal. Não é preciso ter inveja dos outros. Cada um pode cozinhar o que quiser. O Villa Joya e o Ocean são dois sítios muito diferentes e nós damo-nos bem, não tiramos clientes um ao outro. Há quem experimente os dois, uns gostam mais do Villa Joya, outros gostam mais de nós. Depois de eu receber a primeira estrela, ele veio cá e apoiou-me.
Antes disso não tinha vindo?
[Devia achar que] Não valia a pena. Antes disso, mandava cá os subchefs. No dia em que abrimos veio cá um dos subchefs dele. Fiquei tão danado. Disse: “Caramba, no primeiro dia…” Também cá tínhamos críticos gastronómicos, a cozinha não estava pronta, o restaurante estava uma bagunça. Não tínhamos pratos, tivemos de trazer os da pizaria.
E que tal foram as críticas?
Por acaso tive uma crítica bastante boa num jornal gourmet alemão, mas quando acabei de cozinhar, sentei-me lá fora e pensei: “Estou lixado. Vou mas é voltar para casa. Estava furioso.”
O que é que o fez ficar?
Um cozinheiro não desiste assim. É uma das características mais importantes. E depois a crítica foi bastante boa, realmente. Além disso, eu entendia-me muito bem com o diretor do hotel. Uma das coisas que me fez ficar foi confiar nele.
Como é a sua rotina diária aqui?
Chego às 11h, vejo a lista de clientes, percebo se há alguém com alergias. Sabemos exatamente quem vai estar em cada mesa, quais as preferências de cada um… Entro na cozinha, falo com os meus chefs sobre os clientes que vamos receber. Decidimos o que é que cozinhamos para eles e eu saio para almoçar.
Há alguma coisa que seja o chef a cozinhar?
Algumas coisas ainda sou eu que faço. E à noite sou eu que emprato. Tudo o que vai para as mesas passa por mim, menos as entradas. O meu trabalho é tentar controlar que eles cozinham tudo bem.
É um daqueles chefs que passa a vida a gritar na cozinha?
Não, já não. Estou a ficar mais velho. Costumava ser muito mais agressivo.
Costuma ver programas de culinária?
Não. Faço alguns na Alemanha.
Mas não vê o Masterchef, nem nada desse género…
Não, isso é para donas de casa. Vi uma ou duas vezes em Portugal, mas acho esses programas aborrecidos.
Até o No reservations, de Anthony Bourdain?
Desse gosto. Agrada-me a forma como ele fala e ele viaja pelos sítios. Mas é diferente do Masterchef: metade das pessoas não sabe cozinhar como deve ser! Uma vez chamaram-me para lá ir, disse que era tudo uma porcaria e nunca mais me convidaram… (risos)
O que é que faz nos tempos livres?
No verão, tenho de ir à praia porque a minha namorada gosta. Ando na minha Harley Davidson. Vou com o Koschina à concentração de motas de Faro. Viajo para participar em encontros de gastronomia. Depois da segunda estrela fizemos muitas viagens, agora vamos menos. É mais importante estar aqui.
Espera receber a terceira estrela?
Estamos a trabalhar para isso. Muitos clientes, muitas pessoas dizem que devíamos recebê-la. Enquanto chef, tento sempre fazer coisas novas, diferentes e fixes, mas dizer que vamos receber a terceira estrela é uma balela. Acho que vai ser complicado no Algarve, será mais fácil que aconteça em Lisboa.
Nesse caso, seria José Avillez a receber a terceira estrela.
É o único que tem duas estrelas em Lisboa. É natural que o José João receba a segunda estrela no Feitoria. Creio que é preciso que haja mais restaurantes de duas estrelas em Portugal para eles darem as três.
Cada vez que ganha uma estrela o seu salário aumenta?
Não estamos a falar de dinheiro, pois não?
Estamos.
Sim, tem melhorado. Não tenho razões de queixa. Mas não estou aqui pelo salário, estou por tudo.
O que é que falta para ter a terceira estrela?
Não sei. Há quem diga que já fazemos pratos dignos de um três estrelas. Toda a carta é nova. É uma das diferenças entre nós e o restaurante do José Avillez, por exemplo: mudamos a ementa todos os anos. Alteramos os produtos. O José tem 20 restaurantes a cargo. E, por isso, quando tem um prato, mantém-no e tenta melhorá-lo. O que também é válido. Numa cidade, há sempre clientes novos. Aqui temos muitos que vêm mais do que uma vez e precisamos de inovar o menu.
Quais são os restaurantes preferidos agora?
É complicado, mas gosto do Martín Berasategui, em Espanha, do L’Astrance, do Pascal Barbot, em Paris. Há vários bons. Na Europa, há centenas de restaurantes de topo.
Ainda faz snowboard?
Sim, mas já não sou tão fanático como era. Em miúdo dava saltos e essas coisas. Agora limito-me a descer as pistas calmamente, tento não partir uma perna.
Não tem filhos.
Não, ainda não. Nunca aconteceu por causa do meu trabalho. Mas eu ainda sou novo.
O que é que quer fazer daqui para a frente?
Ganhar a terceira estrela. Pode demorar algum tempo, mas vamos trabalhar para isso. E talvez abrir mais um ou dois restaurantes diferentes deste, talvez no resort, talvez fora. Porque não?
Tem várias tatuagens, mas uma é em português…
Sim, fi-la quando ganhei a primeira estrela Michelin. Vi a frase escrita numa parede, em Lisboa. Diz: “Ninguém pode sonhar por ti.”