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O relatório da Comissão Independente não é um mero repositório de testemunhos pessoais. Para lá de cada experiência traumática, relatada por cada uma das 512 vítimas (ou familiares de vítimas), a que os membros da comissão deram validada, há um trabalho de análise estatística que se traduz num retrato — parcial, claro, porque as vítimas que falaram não serão todas as vítimas da Igreja — do problema dos abusos em Portugal.
Por entre os milhares de dados que a Comissão extraiu dos testemunhos constrói-se uma ideia mais concreta de onde — por todo o país, na verdade — e de que forma ocorreram os abusos de menores em Portugal nas últimas sete décadas (em rigor, o universo temporal vai além do ano 1950, uma vez que alguns relatos dão conta de situações vividas ainda antes desse marco temporal que servia de baliza ao trabalho da Comissão).
E o retrato é negro: em todos os distritos do país (e também nas regiões autónomas) há registo de, pelo menos, um abuso ocorrido. A maioria das vítimas sofreu abusos repetidos, e muitos sofreram abusos de diversos tipos, todos eles suficientemente marcantes para que, passadas décadas, as vítimas decidissem falar e contar aquilo que viveram.
Em muitos casos, fizeram-no agora pela primeira vez.
Vítimas com dois anos. E a maioria tinha 12 quando foi abusada
Crianças de apenas dois anos de idade. São casos “residuais”, num universo que chegou às 512 vítimas, mas a Comissão Independente recebeu testemunhos de abusos sofridos por crianças nesta faixa etária e que foram reportados aos membros da equipa por familiares dessas vítimas. O grupo de crianças entre os dois e os nove anos corresponde, de resto, a quase um terço dos casos reportados (27,8%).
Nessa análise por idades, a maior parte das vítimas (58,6%) tinha entre 10 e 14 anos — “justamente a [idade] correspondente ao início da puberdade e adolescência” — quando sofreu pela primeira vez algum tipo de abuso sexual por membros da Igreja, refere o relatório final da comissão. E um quarto (13,5%) das pessoas que apresentaram o seu testemunho (ou que relataram o caso de um familiar menor de idade) contam que os abusos ocorreram quando as vítimas tinham entre 15 e 17 anos.
“Em média”, indica o mesmo documento, “o primeiro abuso ocorreu aos 11,2 anos”. E “a idade mais comum” das vítimas de abusos é a dos 12 anos. Mas essa realidade não foi constante ao longo das sete décadas que a comissão se dedicou a estudar ao longo do último ano. O relatório indica ainda que “a idade em que ocorreu o primeiro abuso tem aumentado ao longo das décadas” e apresenta algumas explicações para essa mudança: a “lenta difusão nas estruturas da Igreja de uma nova representação psicossocial da criança (…) olhada não como objeto menor à mercê de qualquer ato praticado pelos adultos, mas antes como uma pessoa com direitos próprios”, a menor presença de crianças em “círculos e rituais próximos da Igreja”, como seminários ou internatos; a “vertiginosa quebra da fecundidade desde meados da década de 80 do século passado até aos dias de hoje”; e a redução do “número de católicos praticantes” em Portugal. No fundo, aponta o relatório, a menor proximidade de crianças em idade precoce dos contextos religiosos — e do contacto com membros da Igreja — explica, em parte, a subida da idade das vítimas no momento em que sofreram os primeiros abusos.
Número elevado de mulheres e “representantes do poder legislativo e de órgãos executivos” entre as vítimas
Sobretudo, homens (57,2%). Mas um número anormalmente elevado de mulheres (42,2%), quando comparado com os estudos de abusos sexuais noutros países onde essa realidade já foi estudada. “A presença destacada de mulheres na amostra portuguesa, comparativamente a outras referidas, poderá ter na sua origem, entre outros fatores, a sua posição de destaque em áreas como o nível de educação atualmente atingido e o mercado de trabalho”, explicam os autores do relatório. O facto de uma parte significativa do estudo incidir num período de êxodo forçado da população masculina — em particular, no contexto da guerra colonial, mas também no caso de homens que procuravam no estrangeiro oportunidades de trabalho que não existiam em Portugal — explicam o universo considerável de mulheres que acabaram por ser vítimas de abusos, explica o relatório.
Hoje, têm entre seis e 89 anos. E há um dado relevante destacado pelos autores do relatório: é que em 21 casos (3,9% do total), as vítimas indicaram a sua idade atual como coincidindo com o momento em que foram alvo de abusos sexuais — algo a que a Comissão atribui o “o claro significado de que os abusos ainda estão a acontecer no presente”.
Um quarto das vítimas tem até 43 anos e outros 25% têm atualmente 64 ou mais anos. A idade mais comum é de 62 anos. Outros dois terços das vítimas têm entre 41 e 70 anos de idade. E 8,3% têm mais de 71 e menos de 80 anos.
A grande maioria (63,5%) está desempregada, mas os dados reportados à Comissão denotam-se uma população com algum grau de formação académica: 32,4% completaram a licenciatura, 12,9% terminaram o mestrado e 3,1% são doutorados.
“A amostra”, refere o estudo, “tem um padrão de escolaridade muito acima da média da população portuguesa”; e “há uma presença fortíssima (e desproporcionada, tendo em conta o universo constituído pela população portuguesa) de pessoas das classes médias urbanas e qualificadas”. “Os abusos sexuais de crianças na Igreja são transversais na sociedade portuguesa e não afetaram apenas pessoas que constituiriam hoje franjas excluídas ou marginalizadas”, até porque uma parte das vítimas é constituída por “pessoas ativas, com profissões reconhecidas, plenamente integradas no mundo do trabalho e com bons capitais escolares”.
Numa caracterização pela situação profissional — e ainda que esteja longe de ser o grupo mais representativo da amostra de vítimas —, 7,4% dos testemunhos são apresentados por “representantes do poder legislativo e de órgãos executivos, dirigentes, diretores e gestores”. Ou seja, há responsáveis políticos, alguns com funções legislativas e executivas, entre as vítimas da Igreja.
O maior grupo profissional da amostra é, ainda assim, representado pelos “especialistas das atividades intelectuais e científicas” (32%); segue-se o grupo dos “trabalhadores dos serviços pessoais de proteção e segurança e vendedores” (7,8%) e, a seguir ao grupo que integra responsáveis políticos, os “técnicos e profissionais de nível intermédio” (5,9%).
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre os abusos sexuais na Igreja.
Lisboa, Porto e Braga: os pontos negros no mapa dos abusos
A explicação é simples: os locais que revelam maior número de vítimas de abusos coincidem com as regiões do país onde se verifica uma maior concentração da população. Lisboa (com 120 casos), Porto (com 64) e Braga (com 55) são os distritos com maior número de relatos à comissão.
Outro ponto fica claro nos dados do relatório: no universo de testemunhos que chegaram ao conhecimento da Comissão Independente, com exceção de Portalegre, o único distrito do país onde não vivem atualmente quaisquer vítimas (ainda que também ali tenham ocorrido abusos), todo o território nacional é uma mancha negra no que diz que respeito à existência de abusos sexuais contra menores às mãos de membros da Igreja. Um dado que mostra a extensão do problema, que não se restringe a uma ou outra região do país mas, antes, está amplamente disseminado.
“Contrariamente ao atual local de residência das pessoas vítimas, a dispersão das situações de abuso é mais elevada e concentra-se menos no litoral, e existem manchas específicas, sobretudo em certas décadas, que correspondem a exatas localizações de algumas estruturas como a de seminários ali existentes à época”, refere o documento divulgado esta segunda-feira.
Distritos com maior incidência de primeiros abusos:
- Lisboa: 120
- Porto: 64 casos
- Braga: 55 casos
- Santarém: 26 casos
- Aveiro: 24 casos
- Leiria: 21 casos
- Coimbra: 19 casos
- Setúbal: 18 casos
- Viana do Castelo: 15 casos
- Viseu: 14 casos
Abusos em todo o país. Mas também no estrangeiro
Uma viagem a Espanha foi a oportunidade que um membro da Igreja encontrou para abusar de um menor com o qual tinha contacto. Na verdade, isso aconteceu em duas das situações relatadas pelas vítimas à Comissão Independente — casos que mostram que os abusos não se limitavam ao território nacional mas cruzaram, em pelo menos 14 situações.
Nos dois casos ocorridos em Espanha, o abusos aconteceu “durante deslocações ao estrangeiro”. Mas à comissão chegaram também relatos de “situações ocorridas nas ex-colónias antes de 1974 (quatro casos em Angola, um caso na Guiné e cinco casos em Moçambique), além de um caso no Brasil, outro no Canadá e um nos Estados Unidos — em alguns destes casos, os abusos visitaram crianças institucionalizadas em instituições da Igreja.
As formas de abuso
De modo geral, o toque de zonas erógenas que não os órgãos sexuais é a forma de abuso mais comum. É também a modalidade mais adotada entre os abusadores a partir dos 31 anos. A maior percentagem de agressores que praticaram este tipo de atos regista-se entre os abusadores com mais de 70 anos: quase sete em cada dez (66,7%) tocou outras zonas erógenas que não os órgãos sexuais das vítimas.
A manipulação de órgãos sexuais (53,6%) é a segunda forma mais comum de abuso. Seguem-se a exibição dos órgãos genitais (32,4%), a masturbação (28,1%) e a prática de sexo oral (19,3%). O sugestionamento sexual (com conversas ou insinuações sexualmente explícitas dirigidas às suas vítimas) é relatado em 14,1% dos casos. A ocorrência de sexo anal verificou-se em 10% dos casos. As modalidades menos comuns são a cópula (6,5% dos casos), o visionamento de pornografia (5,5%) e a recolha de imagens de cariz sexual (4,1%).
Entre os abusadores até aos 30 anos (uma das questões colocadas às vítimas era a idade dos membros da Igreja que praticaram os abusos), a forma mais comum de abuso é a manipulação de órgãos sexuais — uma modalidade que é menos praticada pelos agressores mais velhos (41,1% dos atacantes identificados). Em 66,7% dos casos em que os abusadores tinham menos de 20 anos à época dos crimes, o abuso acontecia por manipulação de órgãos sexuais. A percentagem é de 64,4% entre os 21 e os 30 anos.
Não se registaram relatos de prática de sexo anal nos casos em que os agressores tinham pelo menos 70 anos. Também não chegaram à Comissão casos de abuso sexual com recurso a cópula, visionamento de pornografia ou recolha de imagens quando os abusadores tinham 61 anos ou mais.
O sexo anal é quase exclusivamente perpetrado sobre os rapazes (16,7%, contra 0,9% nos casos de raparigas). Também há uma maior percentagem de rapazes (em comparação com as raparigas) a serem vítimas de manipulação de órgãos sexuais (65,2%, contra 38,4% de vítimas do sexo feminino), a foram exibidas as zonas genitais (42% contra 19,4%), alvo de masturbação (35,8% contra 17,6%) e sexo anal (26,6% contra 9,3%). Por outro lado, é mais frequente que as raparigas sejam vítimas de toque sobre outras zonas erógenas (69% de raparigas contra 53,9% de rapazes) ou de sugestionamento sexual (17,1% contra 11,9%).
Do confessionário ao carro. Os espaços onde os abusos ocorreram
Os locais que mais vítimas relatam terem sido o palco dos abusos sexuais (23%) são os seminários, colégios religiosos com internato ou instituições de acolhimento, sobretudo nas décadas entre 1960 e 1990. O espaço da igreja surge logo a seguir nas estatísticas, com 18,8% de respostas. Seguem-se o confessionário fechado (14,3%) e a casa paroquial (12,9%). Menos comuns, mas ainda assim mencionadas nos testemunhos recebidos pela Comissão, são a escola (6,9%), o carro (2,6%), a catequese (2%); e a sede, o acampamento ou a atividade do grupo de escuteiros (2,6%).
Os locais diferem muito em função do sexo da vítima. No caso dos rapazes é mais comum que o abuso tenha ocorrido num seminário, colégio religioso com internato ou instituição de acolhimento (33,4%, contra 9,3% no caso das raparigas). Entre as raparigas, é mais comum a ocorrência de abusos no espaço da igreja (23,1% contra 15,4%), sobretudo no espaço do confessionário (25,5% contra 6,1%).
Maioria das vítimas (61%) sofreu abusos múltiplos
Um em cada três casos de abusos ocorreram uma vez, mas 28,9% deles aconteceram “de vez em quando” e, em 31,8% dos casos, prolongaram-se no tempo e tinham alguma regularidade. Aliás, em 60,7% dos casos, os abusos aconteceram mais do que uma vez.
As situações em que o abuso ocorreu uma única vez são mais comuns entre as mulheres (39,4% dos casos, contra 29% no caso em que as vítimas são do sexo masculino). Os abusos que tinham lugar “de vez em quando” são mais referidos pelos homens (33,8% contra 21,8%).
Em mais de um quarto dos casos (27,5%) os abusos estenderam-se por mais de um ano. Cerca de 5% das pessoas relataram abusos repetidos ao longo de semanas e 11,9% durante meses. Em 7,8% das situações, o abuso prolongou-se por cerca de um ano.
Os abusos repetidos — isto é, as situações em que a agressão aconteceu mais do que uma vez — são mais comuns entre as mulheres do que entre os homens: 38,4% entre as vítimas do sexo feminino, contra 28,7% do sexo masculino.
Os abusos com penetração foram mais regulares do que as restantes modalidades de abuso. Isto é, há mais casos de episódios únicos ou ocasionais em que a forma de agressão foi o toque ou a sugestão. Mas os abusos mais violentos, como o sexo anal ou a cópula, aconteceram em mais casos de forma regular.
As revelações dos abusos: quem, quando e como
Mais de metade das pessoas (51,8%) já tinha revelado a situação de abuso a terceiros, mas 48,2% foram assumidos pela primeira vez no inquérito da Comissão Independente.
Nos casos em que a vítima já tinha conversado sobre os abusos com outras pessoas, a maioria fê-lo com familiares (51,7%). Embora 14,6% destas pessoas não tenham especificado a que membro da família confidenciaram os casos, uma parte importante (13,9%) falou com o marido ou a mulher. Em 11,7% das situações, os confidentes foram os irmãos. Raramente (5,1%) os casos foram revelados à descendência ou a colaterais, como tios ou primos.
A revelação ao cônjuge é mais comum entre os homens: 23,5% contra 4,3% nas mulheres). A revelação às mães é mais comum entre as pessoas do sexo feminino: são 40,6%, contra 22,1% de pessoas do sexo masculino.
Cerca de um quarto (22,6%) partilhou a história com amigos ou colegas. Algumas das vítimas (9,4%) já tinham falado sobre o abuso com médicos ou outros profissionais de saúde, como o psicólogo. Pouco mais de 4% conversaram com um namorado.
Uma em cada dez pessoas revelou os abusos em conversa com um padre. Houve 2,3% de casos em que a agressão foi partilhada com um bispo — a mesma percentagem que confidenciou a situação a um professor.
Também surgiram casos, muito pontuais, em que a revelação foi feita às autoridades civis (1,9%), diocesanas (1,5%), imprensa (0,8%); e ainda de denúncias anónimas a associações de vítimas (0,4%).
Em 46% dos casos, a revelação do abuso aconteceu antes dos 18 anos. Os restantes 54% dos casos partilharam as suas histórias pela primeira vez já na idade adulta.
Em 21,7% dos casos, as vítimas conversaram sobre o abuso pela primeira vez quando tinham entre 18 e 30 anos. Em 6,5% dos casos, fizeram-no quando já tinham entre 31 e 40 anos de idade. Um em cada dez sobreviventes só partilhou o caso com mais de 40 anos.
A revelação tende a ocorrer mais cedo entre as mulheres do que entre os homens. Mais de metade (52,2%) das mulheres falou com alguém antes de atingir a idade adulta — algo que só se verifica em 41,2% dos homens. Na verdade, metade das mulheres revelou a situação até aos 14 anos.
Impacto físico menos visível. Consequências psicológicas vão das perturbações de ansiedade aos impactos na vivência da sexualidade
Quanto às consequências dos abusos, as vítimas têm um tipo de resposta diferente quanto ao impacto físico e psicológico que sofreram. A maioria (55,9%) opta por não responder à pergunta das consequências físicas, notam os relatos. Dos que respondem, quase metade diz não ter tido impacto físico dos abusos.
Os restantes apontam três tipos de consequências, na avaliação da Comissão. Umas são consequências que os especialistas consideram ser “claramente de origem emocional”, mas que são “focalizadas e atribuídas ao corpo”: comportamentos como evitar o toque físico, a má relação com o próprio corpo e os comportamentos alimentares disfuncionais. Outros são “lesões de estruturas do corpo”, geralmente ligadas a formas de abuso como a penetração, que resultaram em “sangramento” ou “inflamação no pénis”, por exemplo. Por fim, os relatores destacam ainda as consequências físicas, mas “de características psicossomáticas“, como o aparecimento de “psoríase”, “doenças autoimunes” ou “problemas intestinais crónicos”.
A Comissão deixa ainda uma consideração forte: “Vale a pena sublinhar, entretanto, que na amostra (e obviamente em situações em que foi uma testemunha direta a responder ao inquérito) se registaram sete casos de morte da vítima, por suicídio.”
Relativamente às consequências psicológicas, a grande maioria das vítimas já optou por responder a essa pergunta (só 16,9% deixaram a resposta em branco). Dos que responderam, apenas 24 pessoas disseram não ter tido consequências psicológicas dos abusos.
“Uma imensa maioria das pessoas [78,3%] respondeu afirmativamente”, escrevem os autores do relatório,” descrevendo a intensidade da qualidade negativa das mesmas com bastante detalhe e quase sempre reportando-as a um carácter permanente”. As descrições, dizem os autores, “confirmam inequivocamente a presença, multiplicidade, intensidade sintomatológica e duração temporal desses impactos”.
Para os autores do relatório, há quatro tipos de consequências psicológicas registadas: os que revelam “intensidade” dos sintomas e durabilidade no tempo; os que evidenciam “sentimentos de medo, culpa, vergonha, nojo, humilhação, confusão, desconfiança e insegurança, revolta e solidão”; os que se traduzem em “perturbações de ansiedade e do humor”; e os que tiveram “impactos na vivência da sexualidade”.
Ignorados e silenciados. As reações de terceiros às denúncias
Na maioria dos casos (56,2%) foi dado crédito à denúncia do abuso, enquanto que em 8,3% das situações a vítima foi descredibilizada. Mas, em 25% das histórias, houve uma minimização ou “controlo de danos”, nota o relatório. Em 6,8% das ocasiões, a denúncia foi ignorada.
Uma em cada 10 vítimas sofreu uma nova forma de abuso quando denunciou a agressão sexual, afirmam os autores do documento. Em 9,8% dos casos, foi pedido aos sobreviventes que não falassem das suas histórias, “o que também constitui novamente outra forma de abuso”.
Quando a denúncia é feita pelo abusador ainda antes dos 18 anos, são mais comuns os casos em que as suas histórias foram ignoradas, desacreditadas ou em que as vítimas receberam pedidos para se manterem em silêncio.
Denúncias sem consequências: quase sete em cada dez, uma grande maioria
Na maioria dos casos (65,8%), mesmo depois de uma vítima denunciar o abuso, não foi tomada qualquer medida para afastar o agressor. Só em 16,6% dos casos há a informação de que o abusador foi afastado da vítima.
Das 22 situações em que o abuso sexual chegou aos tribunais — só 4,3% das situações de abuso deram lugar a um processo —, metade resultou numa condenação com pena (de natureza efetiva, suspensa, um afastamento ou outra). Há seis casos em fase de inquérito, acusação e julgamento; e cinco em que os casos foram arquivados, os abusadores foram absolvidos ou em que o processo terminou sem consequências.
Relação atual com a Igreja levou algumas testemunhas a falar
De acordo com o relatório, 11% dos sobreviventes decidiram testemunhar por causa da relação que mantêm com a Igreja Católica — em alguns casos por causa da sua natureza conflituante, noutros precisamente porque estão moderadamente em paz com a instituição.
Nos primeiros casos, as vítimas dizem sentir “revolta”, “raiva” ou “zanga” por causa da indiferença da Igreja perante os crimes. Há também quem condene a ocultação dessas práticas, o protecionismo entre membros do clero. Uma vítima relatou: “Estive diante do Bispo. Quando quis dizer o nome de quem me fez aquilo, ele olhou para mim e fez o sinal dos três macacos: não queria ouvir, nem ver, nem falar. E ainda acrescentou que se eu o dissesse mas fosse mentira, que movia um processo contra mim. Fiquei de rastos.”
Nos casos em que se estabeleceu uma relação pacífica com a Igreja Católica, os sobreviventes consideram que a instituição, “santa e pecadora”, “pode pagar o preço de uma boa purificação” — daí a disponibilidade das vítimas para contactarem a comissão e revelarem os abusos que sofreram.
A maioria das vítimas confessa sentir “deceção”, “abandono” e “hipocrisia” por parte da Igreja Católica. Muitas vezes, as palavras utilizadas para descrever as situações de agressão ou os abusadores são agrestes, como “monstruosidades”, “asqueroso”, “desprezo” e “vergonha”. Também se menciona uma sede de “vingança”.
Menos expressivas foram as justificações dos que invocaram o “anonimato” como razão para denunciar agora o seu caso — 2,7% dos inquiridos —, embora os que o fizeram sublinham como isso lhes permitiu testemunhar “sem medo de julgamentos ou de dúvidas ou de ser ridicularizada”, como destaca uma das vítimas. Um número semelhante de testemunhos destacou a “facilidade” do método, com um formulário a apresentar-se como forma mais simples de denunciar do que as alternativas.
Embora menos expressivas, os relatores destacam ainda outras razões invocadas por algumas testemunhas para denunciar agora as suas histórias. O facto de a denúncia ser sentida como “um passo” no “processo de recuperação”, o facto de se ter compreendido que “não era a única vítima” e a morte do abusador e/ou de familiares próximos são outras das justificações encontradas. Bem como o facto de só agora se ter compreendido que se foi vítima de abuso sexual. “Durante muitos anos, eu não tinha palavras, nem sabia o que é um flash-back, nem nunca o conseguiria descrever”, resume uma vítima mulher, de 54 anos.
Maioria das vítimas diz-se católica e quer “pedido de desculpas” por parte da Igreja
A relação das vítimas com a Igreja Católica foi também objeto de estudo do relatório, bem como uma análise ao impacto que o abuso sexual teve nessa mesma relação. Análise particularmente relevante se tivermos em conta que a maioria dos que participaram no estudo (53%) se descrevem como católicos, dos quais 27,2% se dizem “não praticantes”.
Nalguns casos, o abuso levou a um “abandono ou corte com a Igreja ou com a prática religiosa”, claramente por causa do “trauma individual”. “Durante uma década entrava facilmente em discussões com católicos, culpando-os do que me tinha acontecido”, ilustra uma das vítimas, enquanto outra admite que “dificilmente” suporta ouvir “um padre a falar na homilia da missa”.
Um segundo grupo de participantes mantém a fé católica, mas revela alguma ambiguidade na relação com a Igreja enquanto instituição — “Deixei de frequentar, mas acredito”, ou “deixei de ir a missas, embora tenha a minha espiritualidade” são alguns dos relatos. Nesses casos, apontam os relatores, “as pessoas vítimas conseguem, apesar de tudo, distinguir do ponto de vista psíquico a ‘parte’ do seu ‘todo'”.
Por fim, o relatório identifica ainda um terceiro grupo de vítimas que não só cortou laços com a Igreja como afirma ter-se tornado ateia ou até mesmo “anticlerical”.
Perante estas posições, o estudo indagava ainda o que esperam estas vítimas da Igreja Católica e como pensam que pode ser reparada a sua relação com a instituição, tendo havido uma forte participação a estas questões (97,1%) — o que os membros da Comissão vêem como “um inequívoco desejo de ser ouvida” e de “ativamente dar o seu contributo” por parte das vítimas.
Uma minoria demonstrou uma “baixa expectativa” de mudança e a expressão de ideias “de caráter agressivo ou destrutivo” foi marginal, asseguram os autores. Sobraram muitas sugestões de medidas, com as vítimas a apontarem caminhos como a “garantia de confidencialidade das queixas”, a manutenção de “plataformas abertas para poder receber denúncias anónimas” ou até o recurso a uma espécie de “clientes-mistério” para avaliar a prestação dos padres nas confissões.
Um número “vasto” de respostas, dizem os relatores, focou-se na vivência da sexualidade por parte dos padres, com várias vítimas a apelarem ao fim do celibato e muitos outros a sugerirem formação e acompanhamento psicológico e emocional para os sacerdotes. Um grupo “percentualmente significativo” focou-se na resposta “da justiça civil”, sugerindo soluções como “registo criminal de 6 em 6 meses” — grupo esse, notam os autores do relatório, geralmente composto pelos respondentes com idades mais jovens.
Transversal parece ser o desejo de “abertura” da Igreja à sociedade por parte das vítimas, dizem os relatores, notando que, “em muitos casos”, foi realçado o “impulso” dado pelo Papa Francisco neste tema. “Falar. Desmistificar a perfeição do clero. Um padre é um homem com formação específica, não é Deus. Uma freira a mesma coisa. São pessoas como as outras. O comum é ter receio de os confrontar, ninguém contraria um padre ou freira. Retirar esse poder que pesa sobre nós e cria medo, encobrimento, dor e pecado”, nota uma vítima do sexo feminino, de 63 anos.
Também frequente é o desejo expresso por muitas das vítimas de que haja uma “assunção de culpa e pedido de ‘desculpas’ ou de ‘perdão’ da Igreja diante dos seus que acabou por vitimizar”. Embora a maioria dos inquiridos considere que não é possível reparar o dano sofrido, muitos pedem que haja alguma forma de pedido de desculpas por parte da Igreja enquanto instituição — “Pedir desculpa em letras grandes. A primeira página de todos os jornais de um dia qualquer paga pela igreja a dizer: PERDÃO”, sugere um dos inquiridos.
Ainda nas respostas possíveis por parte da instituição, mais do que exigências de pedidos de indemnizações, os relatores notam que outro tipo de apoio foi sendo reiterado pelas vitimas: a de que lhes seja fornecida, de forma gratuita, apoio psicológico permanente.