Mais de 50 mil pessoas abandonaram o território nos últimos tempos. Há muitas casas à venda e ninguém as compra. Há trincheiras em praticamente toda a fronteira terrestre e até perto de praias. A desconfiança de que a guerra vai chegar à Crimeia é real. “Vários movimentos de resistência estão a planear uma luta secreta, ao estilo de guerrilha”, relata, em declarações ao Observador, Tamila Tasheva, representante permanente da Crimeia junto ao Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky.
O medo já parece estar instalado entre as autoridades pró-russas e surge acompanhado pelas notícias de que a contraofensiva ucraniana estará prestes a começar. “Não podemos subvalorizar o inimigo”, afirmou nos últimos dias o líder escolhido por Moscovo, Sergei Aksyonov. Apesar de ter garantido que não haverá qualquer “catástrofe” e que a defesa militar da península está pronta para responder a qualquer ataque, o desfile tradicional do 9 de maio (o Dia da Vitória na Rússia, que comemora a derrota da Alemanha nazi e a vitória dos aliados na II Guerra Mundial) deste ano foi cancelado em todo o território da Crimeia.
O líder pró-russo da Crimeia justificou o cancelamento após uma análise que obrigou a que se decretassem “medidas de segurança” adicionais. Não foi a única medida de precaução tomada nos últimos tempo. Em poucas semanas, as autoridades que administram a península fizeram trincheiras e formaram fortificações perto da fronteira, mostram as imagens de satélite recolhidas pelo Washington Post. A cidade de Medvedivka, perto do território ucraniano, foi completamente cercada.
Estas movimentações que revelam algum receio por parte da Rússia parecem contrastar com a sugestão feita pelo Presidente brasileiro, Lula da Silva, no passado fim de semana. “Zelensky não pode também ter tudo o que ele pensa que vai querer”, afirmou o líder brasileiro, colocando em cima da mesa a cedência da Crimeia, ocupada pelos russos desde fevereiro de 2014, após a realização do referendo considerado ilegal pela maioria da comunidade internacional.
Ao Observador, Tamila Tasheva diz que a proposta de Lula da Silva de ceder territórios da Ucrânia é “totalmente inaceitável” para a presidência ucraniana. “A Ucrânia não comercializa os seus territórios. Não há qualquer razão legal, política ou moral pela qual devamos ceder qualquer centímetro de solo ucraniano”, vinca a responsável, acrescentando que as tropas ucranianas vão continuar a lutar para retomar o controlo da península.
No entanto, apesar dos receios das autoridades pró-russas na Crimeia e da vontade ucraniana, a tomada da Crimeia pela via da força é uma tarefa “incrivelmente arriscada”, na opinião do professor de Relações Internacionais na Universidade de Webster, em Saint Louis (Estados Unidos), Dani Belo. Ao Observador, o especialista canadiano considera que a operação “envolveria” um “confronto militar com um poder nuclear” num território que a Rússia “considera essencial para a sobrevivência enquanto país”.
Mais pessimista é ainda a posição de Nizhnikau Ryhor, especialista em política russa e ucraniana no Instituto Finlandês de Relações Internacionais. “Numa perspetiva do próximo ano, ou mesmo daqui a dois, três anos, as hipóteses de a Ucrânia retomar o controlo da Crimeia são extremamente baixas. Não consigo ver como é que a Ucrânia tem recursos para o fazer militarmente, nem vejo a Rússia a abdicar da Crimeia em termos diplomáticos”, sublinha ao Observador.
A Crimeia: os motivos pelo quais Rússia e Ucrânia lutam pela península
Mesmo que em termos geopolíticos a reconquista da Crimeia seja algo hercúleo, a presidência ucraniana não vai desistir de atingir este objetivo. “Não é apenas uma questão de território”, assinala Tamila Tasheva, que lembra as “milhares de pessoas” que “foram forçadas a abandonar as suas casas e a deixarem a península, devido à atitude de não integração da Rússia, assim como o medo de repressão”.
“Milhares dessas pessoas defendem agora a Ucrânia com armas em batalhas contra o exército russo. Elas também estão a lutar pelo seu direito de regressar a casa”, salienta a representante permanente da Crimeia junto da presidência ucraniana, lembrando igualmente as “centenas de pessoas que permanecem em território ocupado” — e que se identificam como ucranianas.
Relativamente à população que se identifica ucraniana e que permanece na Crimeia, Tamila Tasheva traça um cenário negro no que concerne ao seu dia a dia. “Os ocupantes quase todos os dias condenam habitantes pelo chamado [crime] de ‘descrédito das forças armadas da Rússia’. Centenas de pessoas estão privadas de liberdade por motivos políticos, porque lutam contra o regime de ocupação e não o aceitam”, detalha a responsável política.
Por todos estes motivos, a presidência ucraniana sente que “não pode trair” os cidadãos do país que estão na Crimeia. “Não podemos desonrar a memória daqueles que já perderam a sua vida desta guerra”, reforça Tamila Tasheva. Apesar de a invasão só ter sido desencadeada em 2022, as tropas ucranianas lutam contra as russas no leste da Ucrânia desde 2014 — e muitos habitantes da Crimeia (como os tártaros) “já perderam a vida” nessas batalhas.
Simultaneamente, a Rússia também não deverá ceder num território que considera seu desde 2014, o que levaria a um retrocesso da ordem geopolítica na Europa e que seria interpretado como uma derrota em toda a linha para Moscovo. “As hipóteses de que a Rússia abdique da sua frota do Mar Negro e do acesso [ao porto] de Sevastopol e de um território em que investiu mil milhões de dólares é extremamente improvável”, aclara Dani Belo.
“Para a Rússia, a Crimeia é percecionada como sendo essencial para a sua sobrevivência enquanto país”, enfatiza o professor universitário, frisando que a Rússia “ao colocar tanto valor na Crimeia, é improvável que aceite qualquer negociação diplomática que envolva a abdicação completa da península”. Resta a força. Mas, mesmo aí, Dani Belo diz ser uma opção “demasiado custosa e arriscada”.
A importância da Crimeia para Vladimir Putin, ficou demonstrada numa viagem que fez à península no dia 18 de março deste ano, uma data simbólica, uma vez que fez nove anos desde que a península foi formalmente anexada e integrada na Federação Russa. Na visita, o chefe de Estado deixou um aviso a Kiev e ao Ocidente: “Claro que os assuntos de segurança são prioritários para a Crimeia. Faremos tudo para defender qualquer ameaça”.
Entre a população russa e ucraniana, existe também um consenso no que diz respeito à península. Um estudo de opinião divulgado em dezembro de 2022 dá conta de que 78% dos russos consideravam que seria inaceitável o retorno da Crimeia à Ucrânia. Por sua vez, 64% dos ucranianos são a favor de um cenário em que Kiev tenta libertar militarmente a península, mesmo que isso implique uma diminuição do apoio do Ocidente e que isso cause um prolongamento do conflito.
Os planos ucranianos
A Rússia não deverá ceder do controlo de península, mas isso não impede que a Ucrânia já idealize o futuro da Crimeia no momento em que eventualmente a guerra terminar. O Observador já tinha detalhado em janeiro alguns dos pontos, mas agora Tamila Tasheva desvenda mais pormenores. “Estamos atualmente a trabalhar em passos prioritários para o acontecerá na Crimeia desocupada. Nesse âmbito, um grupo de trabalho composto por 36 especialistas foi formado.”
O plano ucraniano desdobra-se em seis eixos. O primeiro passa pela “retoma do funcionamento” dos organismos públicos e dos seus impactos na gestão do território. O segundo relaciona-se com a revisão das “decisões judiciais” tomadas pelas autoridades pró-russas. O terceiro incidirá sobre os direitos de propriedade. O quarto versa sobre a desmilitarização da península. O quinto teve a ver com as questões judiciais, nomeadamente as relacionadas com a revogação dos “processos judiciais” desencadeados pelo russos.
O sexto ponto, o que está mais desenvolvido nesta altura, é a questão da cidadania, isto é, o “destino dos cidadãos russos que se mudaram ilegalmente para o território da Crimeia durante a ocupação temporária”. Para já, Tamila Tasheva admite que serão expulsos da península todos os habitantes com nacionalidade russa, adiantando que também serão abertos processos judiciais contra aqueles que colaboraram com as autoridades alinhadas com Moscovo no passado, ou que combateram nas forças armadas da Rússia.
A responsável da presidência ucraniana garante que o plano está a ser articulado com outras instituições, principalmente com o Conselho de Segurança Nacional, órgão que abriu uma consulta a “instituições governamentais” e a “organizações” para que também deem sugestões para a estratégia que deve ser seguida na Crimeia após uma eventual libertação. Esse processo já foi finalizado, estando o grupo de trabalho a analisar quais integra na estratégia.
No culminar de todo este processo, expõe Tamila Tasheva, haverá “dois documentos finais” que refletirão os planos da Ucrânia para a Crimeia, não tendo ainda data para publicação, estando igualmente dependente da situação geopolítica.
Na sociedade civil ucraniana, existem várias vozes que já expuseram os seus planos para o futuro da península. Um deles foi o secretário do Conselho Nacional de Segurança e Defesa, Oleksiy Danilov, que, na sua conta pessoal do Facebook, deu a conhecer doze sugestões para o que deverá acontecer à península assim que o controlo ucraniano for retomado.
Alguns pontos que se destacam no plano de Oleksiy Danilov referem-se aos contornos judiciais dos colaboradores pró-russos, que seriam condenados pelo crime de “traição” à pátria. Quanto àqueles que passivamente concordaram com a ocupação, podem até nem ser condenados, mas ficariam com os seus direitos civis (como o em participar em eleições) comprometidos. Para mais, não seriam elegíveis para “receber reforma e ficariam proibidos de trabalhar na administração pública ou ingressar na vida política”.
Mesmo que já tenham fugido da Rússia, o plano de Oleksiy Danilov concebe que os russos que contribuíram para a ocupação seriam “deportados” e julgados, mesmo que tenham nacionalidade russa. Na perspetiva de Oleksiy Danilov, estes processos judiciais contariam com o apoio de tribunais internacionais, que facilitariam a detenção de alegados suspeitos.
No ramo das infraestruturas, para o secretário do Conselho Nacional de Segurança e Defesa da Ucrânia não faz sentido que a ponte de Kerch (que liga a península à Federação Russa) continue a existir. Seria, então, “destruída”. Além do mais, o nome da cidade que acolhe o principal porto da Crimeia — Sebastopol — seria alterado.
Adicionalmente, haveria, entre a população da Crimeia, um “complexo programa” a que Oleksiy Danilov deu o nome de “desintoxicação”, com o objetivo de “neutralizar as consequências do efeito a longo termo da propaganda russa na consciência pública”. Para isso, o secretário considera que se deveriam usar métodos idênticos àqueles que foram empregados na Alemanha após a queda do regime nazi.
A mea culpa da Ucrânia sobre o Brasil
O plano da presidência ucraniana para a Crimeia não tem apenas um pendor interno — visa paralelamente sensibilizar as opiniões públicas internacionais para a importância da península para a Ucrânia, principalmente em regiões fora da Europa e dos Estados Unidos. Tamila Tasheva reconhece que, deixando de parte os aliados da NATO e de outros países alinhados com o Ocidente, as narrativas russas podem vir a ganhar preponderância — e os líderes dessas regiões podem não entender o motivo pelo qual a Ucrânia defende de forma tão acérrima a reconquista da Crimeia.
O Brasil é um desses exemplos, refere Tamila Tasheva, especialmente pela parceria que desenvolve nos BRICS (que envolve ainda a Índia, a China e a África do Sul) com a Rússia. As palavras de Lula demonstraram “as falhas” da diplomacia ucraniana, aponta a responsável próxima de Zelensky, reforçando que “por muito tempo, os países do Global Sul não estiveram no radar da atenção diplomática” da Ucrânia. “Não foram conduzidas quaisquer campanhas [sobre a Crimeia] nesses países e não foi encetada qualquer cooperação ao mais alto nível.”
“No último ano, o Presidente da Ucrânia delegou a tarefa de fortalecer a cooperação diplomática com Estados de regiões relevantes no mundo”, sinaliza Tamila Tasheva, que assegura que a diplomacia ucraniana “fará todos os possíveis” para defender a “sua visão do mundo” — e aí, inclui-se a “plena restauração da integridade territorial da Ucrânia” com a Crimeia acoplada.
Num encontro com Joe Biden em fevereiro, o Presidente do Brasil disse ao homólogo que seria necessário formar um grupo de países neutrais que mediassem o conflito. De acordo com a responsável de Kiev, a Ucrânia “aprecia os esforços do Presidente do Brasil em encontrar uma solução para parar a agressão russa”. Mas isso, sublinha Tamila Tasheva, deve sempre implicar o regresso ao status quo antes da anexação da Crimeia pela Rússia.
Brasil e países neutrais podem solucionar o conflito e moderar posição da Ucrânia na Crimeia? “É muito improvável”
As ambições de Lula da Silva e dos outros líderes dos países neutrais (tal como o chinês Xi Jinping) em mediar o conflito não deverão concretizar-se, opinam os especialistas ouvidos pelo Observador. Da mesma forma que a tentativa de flexibilização da posição ucraniana sobre a Crimeia por parte destes Estados também parece ser difícil de suceder.
“É quase impossível que potências neutrais como o Brasil, a China ou a Índia possam forçar a Ucrânia a sentar-se na mesa das negociações ou mesmo a abdicar da Crimeia”, esclarece Nizhnikau Ryhor, que diz que, entre os países neutrais, Pequim está “mais bem posicionado” do que Brasília “para pressionar a Ucrânia. Mesmo assim, é limitada. “Há muito pouco que o Brasil e a China possam forçar a Ucrânia a fazer.”
O especialista em política russa e ucraniana no Instituto Finlandês de Relações Internacionais vai mais longe e caracteriza as declarações de Lula da Silva sobre a possibilidade de a Ucrânia abdicar da Crimeia como “perigosas”. É que, na opinião de Nizhnikau Ryhor, mesmo que Kiev abdique da península, isso não “vai resolver a guerra”.
“A Rússia não luta por um território, não luta pela Crimeia. A Rússia começou esta guerra para destruir o Estado e o regime ucraniano”, prossegue o especialista do instituto finlandês. Os objetivos de Vladimir Putin não estão, assim sendo, relacionados apenas com a península — têm um alcance maior. “A guerra não tem a ver com a Crimeia”, aclara, acrescentando que a “obsessão pela abdicação da Crimeia apenas ajuda Moscovo a dividir o Ocidente e os países neutrais”, desviando o foco das reais intenções russas.
Por seu turno, Dani Belo tem uma posição ligeiramente distinta. O professor universitário concede que o Brasil tem pouca influência sob a Ucrânia, mas esse não é o caso da China, que já fez investimentos no país. Contudo, mesmo que Pequim possua margem de manobra para ajudar a definir a política externa ucraniana, isso não se aplica a todos os domínios da guerra. “Não é suficiente para a Ucrânia desistir da Crimeia.”
Para o especialista em política russa, a cedência da Crimeia traduzir-se-ia na “legitimação da anexação da Rússia”, um cenário que seria “inaceitável para a maioria os ucranianos”. Não obstante, Dani Belo conjetura que seria “relativamente mais plausível” a hipótese de a China conseguir que se chegasse a acordo para um “cessar-fogo”, ou, pelo menos, na “redução da violência”. Estes dois cenários são, inclusive, “algo que é necessário antes de quaisquer negociações de paz a longo prazo”. E só aí, tendo em consideração os dois lados, seria discutida a situação da península.
Pela parte de Nizhnikau Ryhor, o futuro da Crimeia está “dependente de como é que a guerra termina” e de quem vai sair por cima. Ainda assim, o especialista vaticina que o conflito “não vai acabar em breve”. “Vai demorar tempo. Olho para este conflito mais como uma maratona do que um sprint. Há ainda uma grande distância a percorrer.”
A longa duração do conflito proporcionará “diferentes estados” — uns em que parece iminente uma vitória ucraniana, noutros em que a Rússia está em superioridade. Nizhnikau Ryhor põe ainda em cima da mesa a possibilidade de os países europeus se cansarem da guerra, especialmente se a conjetura económica não for a mais favorável. “Aí, a China pode usar a oportunidade para entrar no conflito e talvez tente pressionar a Ucrânia, juntamente com outros países ocidentais mais próximos da Rússia (como a Hungria), para acabarem com a guerra nos termos russos.”
Mesmo neste cenário pessimista para o lado ucraniano, a cedência da Crimeia seria difícil, admite Nizhnikau Ryhor. Mas há uma peça, do outro lado do Atlântico, que pode causar a “desintegração” dos aliados da Ucrânia: se os Estados Unidos da América tirarem o tapete a Kiev. Algo que, segundo o especialista no Instituto Finlandês de Relações Internacionais, pode acontecer se Donald Trump for eleito em 2024.
Em vários discursos, o antigo Presidente (que a Rússia ajudou a eleger em 2016, interferindo nas eleições presidenciais daquele ano) diz ter como prioridade acabar com a guerra, prometendo terminá-la em 24 horas. Sobre a Crimeia, Donald Trump chegou a sugerir que a Ucrânia deveria ter “renunciado” ao controlo da península.
“Tudo começou na Crimeia, tudo vai acabar na Crimeia”, sentenciou Volodoymyr Zelensky, que prometeu que não vai desistir da península, tendo a população ucraniana ao seu lado. “A Crimeia está com a Rússia para sempre, pois essa é a vontade soberana e livre do nosso povo”, declarou Vladimir Putin em 2021. O futuro dirá qual dos dois (ou se nenhum) vai sair vitorioso.
[Já saiu: pode ouvir aqui o quinto episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. E ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio, aqui o terceiro episódio e aqui o quarto episódio. É a história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África.]