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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Cristina Vidal, a última ponto no teatro. "A profissão vai morrer comigo"

No D. Maria II resistem ainda dois pontos, os dois últimos que há em Portugal. Cristina Vidal, 61 anos, é hoje mais do que isso e entra em cena para partilhar o palco com os atores em "Sopro".

Era criança quando assistiu pela primeira vez a um espetáculo de teatro. Tinha cinco anos. Escondida em palco – e na caixa do ponto –, não fossem os censores descobri-la, assistiu deslumbrada a Laura Alves. É tudo quanto recorda daquela noite: Laura Alves, a presença de Laura. Seguiram-se outras noites. Tantas mais.

Apesar do deslumbramento pelo palco, pelos cenários, pelas luzes, atores e atrizes em volta, Cristina Vidal queria ser médica. Nunca foi. E está no teatro (precisamente no lugar de ponto, onde não existe mais uma caixa) há 39 anos – e no Teatro Nacional D. Maria II desde 1990. É precisamente no D. Maria II que resistem os dois últimos pontos em Portugal. Cristina é um deles. Não virão mais. “Pensam certamente que ser ponto é um grande, grande aborrecimento. Ter que estar a ler, sempre, sempre, sempre a mesma coisa, todos os dias, todos os dias.” Não é. Para Cristina, não: “Foi uma profissão que me deu tantas alegrias, durante tantos anos. Pensar que não há ninguém que vá usufruir disso, entristece-me”.

Hoje, e por desafio de Tiago Rodrigues, encenador e diretor do Teatro Nacional D. Maria II, Cristina subiu pela primeira a um palco para ser ovacionada. Muitas das histórias que em “Sopro” se contam são as que Cristina confidenciou a Tiago, histórias de pontos (aqueles que sopram o texto aos atores para que ele nunca lhes falhe) e de teatro, da gente que faz o teatro. Mas a ponto recusa ser atriz, como aqueles com quem partilha a cena. “O meu trabalho é invisível – e gosto que se mantenha invisível.”

A primeira vez que assistiu a um espetáculo de teatro, com cinco anos, foi pela mão do seu tio. Que memória é que tem desse primeiro espetáculo?
Não me lembro de que espetáculo era. Mas ficou-me na memória o trabalho extraordinário da Laura Alves. E aquele mundo, de cenas, luzes, os atores a contracenarem, tudo aquilo foi fascinante para mim.

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Esse espetáculo foi no antigo teatro Monumental, certo?
Sim, exatamente. No “falecido” teatro Monumental.

Uma vez que era criança — e as crianças não podiam assistir –, o seu tio, próximo que era da Laura Alves, conseguiu que assistisse num lugar… privilegiado. Verdade?
Ele era muito amigo da Laura. E disse-lhe que eu gostaria muito de ver um espetáculo dela. Então, ela autorizou e sugeriu que me escondesse na caixa do ponto.

Isto para escapar aos censores que havia no teatro.
Exato, para escapar. Por causa da idade. Os teatros eram multados com multas pesadíssimas se eles descobrissem crianças na plateia. Então, vi escondida na caixa do ponto. Mais tarde, no teatro da Trindade, assisti a espetáculos escondida na frisa de boca — que era onde o ponto também trabalhava, não havendo caixa. E eu lá ficava, muito sentadinha, muito quietinha, ao lado do ponto. A ver tudo aquilo tudo com olhos do tamanho do mundo. Sempre completamente extasiada. Era o melhor lugar do teatro. [Risos]

A verdade é que nessa altura, e mesmo indo regularmente ao teatro pela mão do seu tio, não pensava ser ponto — nem estar diretamente ligada ao teatro. Queria ser médica?
É, é. A medicina era algo que me fascinava. Não pensava no teatro. Embora gostasse muito. Até porque fazia algumas coisas ligadas ao teatro, tanto na escola primária como no liceu.

"Gostava de voltar a fazer um espetáculo com a senhora dona Eunice Muñoz. Adorava. Não sei se será possível. Mais do que uma atriz é uma amiga. Vê-la trabalhar é... não sei explicar. Já me aconteceu distrair-me só por vê-la representar. Larguei o texto e fiquei a observá-la. Só me aconteceu duas vezes: com ela e com a senhora dona Mariana Rey Monteiro."

Estudou no Maria Amália Vaz de Carvalho, em Lisboa.
Sim, sim. E gostava imenso de participar nessas atividades teatrais. Só que tentava sempre despachar rapidamente o trabalho de palco para depois ir para os bastidores. Preferia isso do que estar em cena.

Essa é uma timidez que ainda se mantém.
Sim, sim. É verdade.

Aos 21 anos é convidada para ser ponto no Parque Mayer. E quem a convida é o próprio Vasco Morgado. Ele era amigo do seu tio, certo?
Ele era proprietário de quase todos os teatros de Lisboa. E trabalhei no Parque Mayer a convite dele, sim. Mas curiosamente estreei-me como ponto, não no Parque Mayer, mas no teatro Laura Alves. Um teatro que ficava na Rua da Palma. Só depois é que vou para o Parque Mayer. Esse teatro hoje já não existe, o que é uma pena. Todos os grandes teatros têm desaparecido.

Agora é uma pensão, certo? Ou foi uma pensão.
É uma pensão, é. Noite Cristalina — é assim que se chama. [Risos] Tem um nome que… enfim.

Causa-lhe incómodo passar lá à porta?
Faz-me muita pena. Esse, o Variedades… Trabalhei neles todos. E faz-me muita pena perceber onde é que chegaram os nossos teatros.

A Cristina trabalhou nesses teatros todos que enumerou. Está desde 1990 no Teatro Nacional D. Maria II. Mas a verdade é que não vai muito ao teatro como espectadora. Porquê?
[Risos] Fico muito ansiosa, muito ansiosa. Como não conheço o texto, não sei onde é que vai haver lugar a pausas. Então, estou a ver… e se há uma ligeira paragem, penso logo: “Ai! É uma falha de texto!” É muito perturbador e, por isso, é raro, raro, raro ir ao teatro. Só vou quando é algum ator de quem gosto muito. Aí vou.

Mas mesmo aí nunca deixa de ser ponto.
Não, nunca. Sento-me e começo a roer as unhas até aos cotovelos. É uma coisa horrível. Saio de lá tão cansada, tão cansada. Pela tensão em que estou constantemente.

Trabalhou muitos anos ao lado do Vasco Morgado. A maior parte dos teatros de que era proprietário ficavam precisamente no Parque Mayer. Tem saudades?
Era um recinto tão alegre! Especialmente quando tinha os quatro teatros a trabalhar em simultâneo. E depois tinha aquelas barraquinhas dos tiros… As músicas a tocar muito alto. Uma berraria que só visto! E era muito engraçado ver as excursões que vinham às matinées. Enchia-nos a alma.

Magoou-a que tenha chegado a este estado de quase abandono?
Claro. Claro que sim.

Quer dizer, o Capitólio foi restaurado entretanto.
Foi restaurado mas ouvi dizer que aquilo não está com condições para receber teatro. Não sei.

E conseguiria lá voltar?
Vai ser difícil. Não sei. É-me sempre difícil voltar a estes sítios que me trazem recordações tão maravilhosas e que agora estão a degradar-se, ao abandono.

Vamos falar dessas recordações felizes. Trabalhou sobretudo no Variedades…
Foi, foi. Esse infelizmente ainda não foi recuperado. Eu conhecia aquele teatro de olhos fechados. Era a minha primeiríssima casa, não a segunda. Até porque eu acumulava as funções de ponto com as de secretária. Entrava às nove da manhã e saía de madrugada: duas, três, quatro, cinco da manhã.

FILIPE FERREIRA

Mas sem nunca dar pelo cansaço?
Não, não. Quer dizer, também só tinha 21 anos — aos 21 anos ninguém se cansa. Só comecei a sentir cansaço há meia dúzia de anos. Em cena [no espetáculo “Sopro”], agora, estou sempre de pé. Mas em cena não se sente nada. É um lugar que nos faz esquecer tudo. E estamos tão envolvidos naquilo que o que queremos é fazer o melhor possível. Ultrapassamos completamente o cansaço.

Mas perdem-se muitas coisas. Ou não?
Não há vida pessoal. Nada, nada, nada, nada. Os amigos são os do teatro. Os outros amigos que existiam antes vamos perdendo o contacto com eles. Porque não temos tempo. Quando eles estão com tempo para confraternizar, é fim-de-semana. Ao fim-de-semana trabalhamos nós. É quando trabalhamos mais, aliás. Eles saem dos seus empregos às sete, oito da noite. E isso é quando nós estamos a trabalhar. Portanto, perdemos o contacto com toda a gente e só nos restam os colegas do teatro.

Por curiosidade: o que é que fazia uma secretária no Variedades?
É um trabalho que só existe em teatro. Chama-se secretária mas não tem nada a ver com ser-se secretária. Fazia tudo: produção, compras, publicidade, pagamentos de ordenados, disciplinarmente também era necessária às vezes.

No Variedades apanha uma fase muito boa da revista. Com público. E apanha também as grandes figuras da revista das décadas de 1970 e 1980. Contactou com todas de perto, presumo.
Sim, sim. Eu tenho sempre receio de me referir a algumas e de me faltarem outras. Mas trabalhei com o Camilo de Oliveira, a Ivone Silva, o Nicolau Breyner, o Raul Solnado, o Henrique Viana, tanta gente. A maioria infelizmente não está connosco.

E eles nunca tiveram pudor em usar o ponto?
Não. Nunca. Aliás, às vezes eles até falavam diretamente connosco para a caixa do ponto. Era assumidíssimo.

Era quase uma contracena.
Sim, aconteceu-me muitas vezes. Era assumidíssimo que nós estávamos lá e estávamos lá para os ajudar. Agora é que há uma certa vergonha…

Vergonha?
Não acontece com todos, mas acontece com alguns. É uma questão de insegurança. Alguns já me confidenciaram que têm medo de não ser contratados se os encenadores ou os diretores pensarem que eles estão mal da cabeça, de memória, que estão com dificuldades em decorar. Eles têm medo que se saiba disso e que o mercado de trabalho ainda se feche mais. E ele já é tão restrito. É complicado.

Sei que se enerva muito com trabalho de ponto. Chega a ter pesadelos, não é?
Tenho, tenho. Penso que preciso de ajudar um ator e não consigo. Que ele não me ouve, que não consigo chegar lá soprando o texto. Não sei. E acordo sobressaltada, alagada em suor. Em pânico! Depois é difícil voltar a adormecer, porque estou tão enervada. É muito complicado. É das piores coisas que me poderia acontecer: não conseguir ajudar um ator.

Já aconteceu. Quando acontece, qual é o truque para o sopro chegar lá?
Nós sopramos as palavras o mais baixo possível para que o público não dê por nós. Quando acontece, quando o ator precisa de ajuda e não nos ouve, podemos levantar um bocadinho o volume. É por aí que começamos. Mas se, mesmo assim, o ator não consegue captar, tentamos procurar no texto, logo a seguir, palavras que sejam mais abertas e mais fáceis de ouvir. E se mesmo assim não resultar, podemos dar a deixa a outro ator, para que o espetáculo possa continuar.

A Cristina adaptou-se bem ao ponto eletrónico, aquele em que os atores têm um auricular?
A primeira vez que experimentei foi, salvo erro, em meados de 2000.

As caixas do ponto desapareceram e a Cristina está cada vez mais distante dos atores, na lateral do palco. O ponto eletrónico veio certamente resolver esse problema de o ator não a conseguir ouvir.
Não sou saudosista. Mas depende. É assim: se é um espetáculo com muita gente, não é possível usar o auricular. Não é que não seja possível; é possível mas é mais difícil. Se for um monólogo, por exemplo, o auricular é fantástico. E dá uma segurança e uma tranquilidade enormes — tanto ao ator como ao ponto.

Quando conhece muito bem o texto e o ator, a Cristina sabe distinguir uma “branca” de uma pausa dramática, por exemplo?
Se for um ator que conheça muito bem, sei que ele está a estender um bocadinho a pausa e deixo-o estar à vontade. Porque sei que ele não está a precisar de mim. Se for um ator que eu conheço menos bem, na dúvida eu atiro o texto. Se precisar, utiliza. Se não precisar, não utiliza.

Algum já interpretou mal quando o fez, quando atirou o texto e não era necessário?
Às vezes… [suspiro] Às vezes dizem que não era preciso. Mas nem é tanto o atrapalhar ou não; é sentirem-se humilhados porque lhes atirei o texto. Vêm-me dizer: “Eu sabia, não precisava que me dissesses!” A gente já sabe que eles às vezes estão um bocadinho aborrecidos, um bocadinho nervosos, e desculpamo-los. Eu gosto tanto dos atores. São tudo para mim. A minha vida são eles. Então, desculpo. São os meus amigos, a minha família, são tudo. Eu, contacto com a família, tenho muito pouco. Quando a família está a trabalhar, estou eu a descansar. Quando a família está a descansar, estou eu a trabalhar. Até me recuso a atender telefonemas quando estou a trabalhar. Estou completamente concentrada no teatro.

Está desde 1990 no Teatro Nacional D. Maria II. E conheceu vários diretores. O mais recente, o Tiago Rodrigues, antes mesmo de ser diretor desafiou-a a ajudar na construção de um espetáculo sobre os pontos: o “Sopro”.
Sim, foi há sete anos. Ele falou com o diretor da altura, o Diogo Infante, e disse-lhe que gostaria de fazer um espetáculo sobre os pontos. E o Diogo promoveu uma reunião entre nós [Cristina e João Coelho, o outro ponto do Teatro Nacional D. Maria II] e ele, uma reunião onde nos explicou que não sabia exatamente o que faria, mas que gostaria de fazer um espetáculo sobre a nossa profissão. Fiquei muito entusiasmada.

Ficou. Mas certamente não sabia — nem desconfiava — que entraria em cena.
[Risos] Não sabia que iria dar este resultado, não. Caso contrário, talvez não tivesse ficado tão entusiasmada. Nunca pensei que fosse assim.

Mas continua a dizer que não é atriz. E que o seu papel neste espetáculo não é o de uma atriz; é a Cristina a fazer de… Cristina.
Não quero ser atriz! O que eu gosto é do meu trabalho de ponto. É aquilo que me dá prazer. Este espetáculo também me está a dar muito prazer, porque estou a mostrar como se faz o trabalho de ponto. E depois porque o texto é muito bonito, muito bem escrito, e tenho uma equipa fantástica de atores, muito generosos comigo. Apoiam-me imenso, têm imenso cuidado comigo, são muito carinhosos.

CHRISTOPHE RAYNAUD DE LAGE

Para alguém reservado como a Cristina é, que sente o nervosismo que a Cristina sente, estrear o espetáculo em Avignon deve ter sido complicado. Não?
Foi… Foi! Mas aqui [Teatro Nacional D. Maria II] até senti mais medo. Apesar de tudo. Lá, aquele espaço é mítico. Nunca mais estarei num espaço igual. O festival de Avignon tem uma carga fantástica. E ver aqueles milhares de espectadores de um lado para o outro só para verem teatro… Alguns chegavam duas e três horas antes à porta do teatro, porque já não havia bilhetes e ficavam à espera de alguma desistência, horas infindáveis à espera. Era uma coisa extraordinária. E as pessoas paravam na rua para me agradecer. É indescritível. A sensação de estar em Avignon é indescritível.

Mas em Portugal foi mais difícil porquê?
Porque eu sabia que haveria muita gente que me conhece, com quem já trabalhei, a assistir na plateia. E é a minha “casa”.

Isso aconteceu-lhe hoje mesmo. Um ator que não via há 17 anos, salvo erro, veio ao espetáculo só para a ver.
Exatamente. O Pedro Martínez. Encontrei-o e ele tinha acabado de vir da bilheteira, tinha ido comprar bilhetes para me ver amanhã. Não nos víamos há 17 anos e agarrámo-nos, num abraço tão caloroso, tão caloroso. Realmente são os nossos amigos, a nossa família. E mesmo ao fim de tanto anos continuamos muito ligados.

O trabalho do ponto é muito importante. Mas é “invisível”.
E gosto que se mantenha invisível. Mas também gostamos de ser reconhecidos, claro.

Mas a minha pergunta é outra. A Cristina é “invisível” mas sei que através das redes sociais, por exemplo, tem recebido muito retorno de gente que conhece e, até, que não conhece. Isto desde que o espetáculo estreou.
É verdade. Mas há outra história curiosa. Um dia destes, ao ir para casa, num transporte público, uma senhora levantou-se para sair e, quando passou por mim, colocou-me a mão no braço e disse: “Acabei de vir do teatro. Muito obrigado. Já comprei bilhete para voltar…” Também há pessoas que, depois do espetáculo, ficam à espera na porta dos artistas para me agradecer.

"Houve uma altura em que ainda se pensou em ensinar a profissão, formar pontos. Mas não apareceu ninguém para se inscrever. As pessoas devem pensar que ser ponto é um grande, grande aborrecimento. Ter que estar a ler, sempre, sempre, sempre a mesma coisa, todos os dias, todos os dias. Aturar às vezes o ego dos atores -- que às vezes é grande."

E como é que lida com isso?
É algo a que não estava nada habituada. Fico… fico muito comovida. Muito, muito, muito. E fico sem palavras às vezes. As pessoas até podem pensar que sou um bocado mal criada! [Risos] Não sei o que hei-de responder. Agradeço, claro. “Credo, o que é que me está a acontecer? O que é isto?” É extraordinário.

Os pontos participam nos ensaios dos espetáculos…
Deviam participar desde o primeiro dia até ao último pano do último dia.

E é isso que acontece?
Quase sempre. Nem sempre. Porque às vezes prescindem de nós a partir da estreia.

O Tiago Rodrigues tem um método de trabalho completamente diferente. Os primeiros ensaios não são ensaios; são conversas. Não é assim?
É, é. São conversas. E neste espetáculo foi mesmo muito tempo de conversas. Para ele absorver algumas histórias da minha vida. Isto já com os atores presentes, claro. O que foi ótimo, porque deu um ambiente logo muito aconchegante nos ensaios. E fomos a pouco e pouco trabalhando o texto, ele escrevendo e nós tentando deitar mais uma acha para a fogueira. Foi muito bom, foi um trabalho de conjunto muito bonito.

Quero ver se não me esqueço de ninguém: Ricardo Pais. Agustina Bessa Luís, António Xavier, Carlos Avillez, José Amaral Lopes, João Grosso, António Lagarto, Diogo Infante, João Mota e, agora, Tiago Rodrigues. Conheceu dez diretores diferentes no Teatro Nacional D. Maria II.
Acho que falta aí um: Carlos Fragateiro.

De qual foi mais próxima?
Foi do senhor Avillez. Foi aquele que esteve mais tempo na direção. E foi aquele com quem trabalhei mais vezes. Foi muito bom. Aprendi muito.

Aprende-se sempre com um diretor novo?
Depende do diretor. Se é só diretor ou se também é encenador. O senhor Avillez também encenava. E aprendi muito com ele. E é maravilhoso trabalhar com o senhor Avillez.

Vejo que quando se refere a gente mais velha, atores, encenadores, diretores, se refere a eles com uma certa reverência: “senhor”, “senhora dona”…
[Risos] É verdade. É assim. Não sei tratá-los de outra maneira. Eles pedem-me sempre para não os tratar assim. Mas não consigo, é difícil. “Estás a tratar-me assim, até parece que sou um velho…” Mas não é por mal. É o modo como gosto de os tratar. É como me sinto bem.

A Agustina Bessa Luís foi a única mulher destes que enumerámos.
Ela era de pulso firme. Mas acho que as coisas até correram bem. Embora ela não fosse muito ligada ao teatro, tentou inserir-se no meio e contactar connosco de uma forma muito pacífica. Acho que não correu mal. Foi pouco tempo. E como não era uma pessoa completamente ligada ao teatro nem sempre tínhamos muito contacto. E ela fisicamente não estava sempre aqui, porque tinha a sua vida no Porto. Mas eu pelo menos não senti esse pulso firme, pulso de ferro de que se falava. Não senti. Aliás, não senti da maior parte dos diretores que por aqui passaram. Senti-me sempre muito bem tratada e respeitada por todos eles.

Ao longo dos anos os diretores foram passando e, com eles, o orçamento também foi sendo cada vez mais reduzido. Sentiu isso?
Sim, sim. Nós aqui também sentimos isso. E diz-se no texto da peça que já não há orçamento para fazer os cenários que se faziam. Não se fazem os grandes cocktails que se faziam no dia da estreia. E realmente não temos o orçamento que tínhamos antes.

Mas foi por causa disso que os pontos foram desaparecendo?
Penso que também tem a ver com a parte económica, sim. É menos um ordenado a pagar. Corta-se o ordenado do ponto e depois há sempre um técnico ou um ator que dá uma ajudinha ao colega que precisa. Claro que não é um trabalho profissional. Não é a forma correta de fazer o trabalho do ponto. Mas é o que há.

Mas a Cristina também diz uma coisa interessante: não há pontos porque os jovens não leem em casa — e não é no teatro que o vão fazer. É isto?
Sim, sim. Houve uma altura em que ainda se pensou em ensinar a profissão, formar pontos. Mas não apareceu ninguém para se inscrever. As pessoas devem pensar que ser ponto é um grande, grande aborrecimento. Ter que estar a ler, sempre, sempre, sempre a mesma coisa, todos os dias, todos os dias. Aturar às vezes o ego dos atores — que às vezes é grande. [Risos]

Apanhou “grandes” egos?
Então não!? Sempre!

E responde?
Não, não. Sei que é assim e não ligo. Algumas vezes são mais agressivos, fico triste, vou para casa um bocadinho triste. “Escusava de me ter falado assim…” Mas no outro dia já está tudo bem.

"Tenho pesadelos, tenho. Penso que preciso de ajudar um ator e não consigo. Que ele não me ouve, que não consigo chegar lá soprando o texto. Não sei. E acordo sobressaltada, alagada em suor. Em pânico! Depois é difícil voltar a adormecer, porque estou tão enervada. É muito complicado. É das piores coisas que me poderia acontecer: não conseguir ajuda um ator."

E quem é que “falava assim”. As vedetas?
Isso dependia da vedeta. [Risos] Às vezes respondem mal e depois pedem-nos desculpa. A gente já sabe que é assim.

O João Coelho [o outro ponto do teatro] é pouco mais novo do que a Cristina…
Um ano.

Sendo os dois últimos pontos em Portugal, não havendo quem se interesse pela profissão, teme que os pontos terminem quando vocês se afastarem?
Sim, a profissão vai morrer comigo e com o João. Claro que vai. E isso entristece-me bastante. Foi uma profissão que me deu tantas alegrias durante tantos anos. Pensar que não há ninguém que vá usufruir disso, entristece-me.

Mas se lhe aparecesse alguém que quisesse aprender o ofício, teria gosto em ensiná-lo?
Sim, sim. Aliás, ainda dei durante alguns meses formação, há bastantes anos, formação a uma menina que se mostrou interessada. Mas depois desapareceu. Nunca mais apareceu no teatro.

Talvez por não ser um trabalho fácil. Não se trata apenas de técnica, a técnica de soprar as palavras, soprar o texto sem que o público se aperceba da vossa presença. Vocês por exemplo nunca decoram o texto. Todos os dias têm de o ler como se fosse a primeira vez. Porquê?
Não se deve decorar, não. Porque se uma pessoa decora e não lê, onde há depois um ponto que ponte o ponto se este se enganar? [Risos] É complicado. Deve-se ler sempre, por muito aborrecido que seja — e às vezes é. É cansativo. Por muito que nos custe, não podemos decorar e temos que nos obrigar a continuar a ler. Tem que ser. Nós podemos ter uma “branca” tal e qual como os atores têm.

61 anos de vida. 39 enquanto ponto. Depois deste espetáculo, aceitaria o desafio de voltar ao palco, à cena?
Há-de ser muito, muito difícil. [Risos] Não digo nunca a nada. E estou a desfrutar muito desta experiência.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

É a primeira vez que tem camarim todo supimpa.
[Risos] Eu tenho um camarim, o dos pontos. Mas este dos atores, que é maior e tem mais condições, é a primeira vez. Mas estou a fazer isto porque é difícil dizer que não ao Tiago [Rodrigues], ele tem realmente argumentos e maneiras de lidar connosco que se torna muito difícil dizer-lhe que não. E aqui aconteceu isso. Ele costuma dizer que eu já me arrependi algumas vezes.

E arrependeu-se?
Arrependi-me. Não por estar a fazer isto. Mas porque tinha medo de não estar à altura das expectativas dele. Disso eu tinha muito medo. E ainda hoje tenho.

Até agora que o espetáculo já estreou.
Ainda tenho. Mas o Tiago agradece-me imenso. Ele acompanha os espetáculos todos, está cá todos os dias. Vê tudo com muita atenção e, no final, diz-nos o que é que achou menos bem, o que é que achou bem. Ele nunca nos desampara, nunca, nunca, nunca.

Tem algum espetáculo, dos tantos em que participou, mais memorável?
Houve vários. Por várias razões. Mas houve um deles que foi realmente memorável: “O Ano do Pensamento Mágico”, um monólogo com a senhora dona Eunice Muñoz, encenado pelo Diogo Infante. Foi um espetáculo que me deu imenso prazer fazer, muito trabalho mas imenso prazer. Porque éramos só nós as duas. E foi preciso horas e horas de trabalho, juntas, sempre com uma empatia tão grande entre nós. E foi maravilhoso. Eu sabia quando ela respirava, quando ela parava, quando havia qualquer coisa que não estava bem porque ela se desconcentrava, quando ela “voltava”. Foi maravilhoso. Gostei muito de fazer também o “Esta Noite Improvisa-se”, do Luigi Pirandello. Com encenação do Jorge Silva Melo. Adorei. Sei lá… Podia estar aqui um dia inteiro a dizer espetáculos memoráveis. Mas o espetáculo que me “preencheu” mais foi o “Passa Por Mim no Rossio”. O elenco era de cair para o lado. A possibilidade de trabalhar com aquela gente tão boa, tão maravilhosos atores, foi extraordinária.

Eunice Muñoz, Ruy de Carvalho, Varela Silva, João Perry, Fernanda Borsatti, Curado Ribeiro, Lurdes Norberto. Hoje seria difícil fazer algo assim — precisamente por causa dos cortes orçamentais de que falámos antes.
É impossível. Completamente impossível. Não haveria dinheiro. Cada vez se fazem peças com menos atores — e por alguma razão é. Aqueles dos espetáculos que, por exemplo, o senhor Carlos Avillez fazia, com cinquenta pessoas em cena, cenários que se moviam por todo o lado, isso é impossível de repetir. Hoje os cenários são as paredes do teatro. Não há cenários. E há meia dúzia de atores. Isto quando há dinheiro para meia dúzia…

A minha última pergunta: o que é que ainda gostaria de fazer?
O que vier, consigo sempre arranjar — e não é forçado — motivos para gostar de fazer o espetáculo. Cada ator que aparece é um mundo novo que vou descobrir.

Essa é a resposta politicamente correta. Insisto: o que é que ainda gostava de fazer?
[Pausa] Gostava de voltar a fazer um espetáculo com a senhora dona Eunice Muñoz. Adorava. Não sei se será possível. Mais do que uma atriz é uma amiga. Vê-la trabalhar é… não sei explicar. Já me aconteceu distrair-me só por vê-la representar. Larguei o texto e fiquei a observá-la. Só me aconteceu duas vezes: com ela e com a senhora dona Mariana Rey Monteiro.

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