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“Estes são os meus princípios e se não gostar deles… bem, tenho outros”. A frase é de Groucho Marx e a sua comicidade resulta de revelar como flexível algo que, por definição, deveria ser imutável: os princípios. Em Caçadores, camponeses e combustíveis fósseis Ian Morris propõe, sem a ironia de Groucho Marx, que os valores morais que hoje vemos como absolutos passaram por três fases distintas, consoante as sociedades humanas tinham como principal fonte de energia a caça e recolecção, a agricultura ou os combustíveis fósseis. E que poderão ser outros, bem diversos, quando a sociedade obtiver a sua energia de outras fontes.
O livro Farmers, foragers and fossil fuels: How human values evolve foi publicado originalmente em 2015 e chega agora a Portugal através da Bertrand (tradução de Marta Pinho), com um título que se desvia um pouco da fidelidade de forma a preservar a aliteração do original: Caçadores, camponeses e combustíveis fósseis: Como evoluíram os valores humanos. Há também uma diferença nos sub-títulos que, parecendo um detalhe, está longe de o ser: a edição portuguesa usa o pretérito, “evoluíram”, sugerindo que essa evolução já terminou e que os valores que agora temos são um produto final; a edição inglesa usa o presente – “Como evoluem os valores humanos” – sugerindo que o processo continua e os valores que hoje subscrevemos são transitórios.
Recolectores
Morris assume que a sua tese é “fortemente materialista” e “universalista”, o que não surpreenderá quem conheça os seus dois livros publicados em Portugal, O domínio da Ocidente e Guerra! Para que serve?, também eles apresentando teses fortemente materialistas (para não dizer cínicas) e universalistas (para não dizer redutoras). As teses de Morris são também polémicas – esta parte o autor não a assume, mas é óbvio que tem gosto em fazer proclamações ao arrepio do senso comum.
Neste livro defende que “as fontes de energia que estão disponíveis para uma sociedade definem os limites dos tipos de valores que podem florescer. Os recolectores que vivem de plantas e animais selvagens chegam à conclusão de que apenas uma faixa muito estreita de formas de organização das suas sociedades funciona bem, e essas formas de organização tendem a recompensar tipos específicos de valores” e que as sociedades assentes na agricultura e nos combustíveis fósseis terão concluído que são outros os tipos de valores que se lhes ajustam. Resulta daqui que embora “a cultura, a religião e a filosofia [moldem] certamente as versões regionais” de cada fase, “a captação de energia é o motor que move o grande padrão”.
Os recolectores “têm uma visão extremamente negativa da hierarquia política e económica, mas aceitam formas razoavelmente brandas de hierarquia baseada nos sexos e reconhecem que há um momento e local para o exercício da violência”.
Agricultores
O facto de o trabalho agrícola ser pesado e de apenas os homens estarem, pela sua compleição física, a executá-lo, empurrou as mulheres para dentro de casa. Para tal concorreram motivos de ordem demográfica: as mulheres das sociedades agrícolas tinham muito mais filhos (uma média de sete) do que as recolectoras e o cuidado da prole não seria compatível com andar pelo campo a empurrar um arado. Assim, ficaram reservadas às mulheres a parte dos trabalhos agrícolas que podia ser realizada em casa enquanto cuidavam das crianças.
O advento das sociedades agrícolas introduziu duas novidades, ambas desfavoráveis à igualdade entre sexos: “a importância da herança e a obsessão masculina com a pureza sexual da mulher”. Os recolectores eram essencialmente nómadas e pouca coisa de valor podiam transportar consigo, mas nas sociedades agrícolas “herdar propriedade de gerações mais velhas torna-se literalmente uma questão de vida ou de morte [pelo que] os homens querem ter a certeza de que são os pais das crianças que herdarão a sua propriedade. As atitudes relativamente descontraídas dos recolectores para com o sexo dão lugar a um feroz policiamento da virgindade pré-marital das filhas e das actividades extra-conjugais das esposas”.
O argumento de Morris é tentador, mas deixa de fora que os machos de muitos animais tomam medidas não menos ferozes do que os agricultores para se assegurarem de que as “suas” fêmeas não criam filhos alheios, e, todavia, no mundo animal não há heranças de bens materiais (para detalhes sobre a variedade de comportamentos sexuais e o que os determina, ver “Sexo: Pecando contra a Natureza e contra Deus“).
Conclui Morris que “os valores patriarcais faziam sentido em sociedades que captavam energia por meio da agricultura. o poder dos homens sobre as mulheres aumentou […] não porque os homens agricultores fossem mais brutos do que os caçadores, mas porque esta era a forma mais eficiente de organizar o trabalho nas sociedades de camponeses”.
Morris enfatiza a diferença de atitudes entre recolectores e agricultores quanto ao trabalho forçado: afirma que “o trabalho forçado era praticamente desconhecido nas sociedades recolectoras”, mas que as sociedades agrícolas o aceitaram porque “nem a família nem o mercado conseguiam gerar a mão-de-obra necessária para construir os navios, portos, estradas, templos e monumentos sem os quais as suas (relativamente) enormes populações não se poderiam alimentar”.
A escravatura não foi a única consequência da crescente divisão do trabalho nas sociedades agrícolas: deu-se também a profissionalização da vida intelectual, como “efeito secundário da profissionalização da gestão” (a complexidade da sociedade tornou necessária a criação de um corpo de burocratas), e a profissionalização da violência – esta deixou de ser exercida pelos indivíduos e passou a ser monopólio do Estado. Apesar da brutalidade com que o poder do Estado era exercido, este monopólio fez decair consideravelmente os níveis de violência por comparação com os recolectores. Para Morris, a progressiva renúncia a exercer justiça pelas próprias mãos (e o emergência do “mandamento de dar a outra face”) decorre simplesmente de os súbditos dos estados agrícolas sentirem que essa era a forma mais eficaz de gerir a sociedade. Os governantes que conseguiram convencer os seus súbditos a renunciar à violência individual, a trabalhar arduamente e a entregar-lhes os impostos devidos, foram os que mais prosperaram e, pouco a pouco, suplantaram os restantes.
Fulcral para o triunfo deste conceito foi “a ideia de que a hierarquia é boa”, reflectindo “a ordem natural/divina, segundo a qual alguns foram postos nesta terra para ordenar e a maioria para obedecer”. Morris realça que mesmo quando houve revoltas dos que tinham de obedecer, estas costumavam ter por alvo indivíduos específicos da estrutura de poder, mas não punham em causa o sistema hierárquico.
Combustíveis fósseis
Haverá quem se orgulhe dos movimentos abolicionistas que emergiram na viragem dos séculos XVIII-XIX, mas para Morris eles resultaram apenas de considerações pragmáticas: os combustíveis fósseis e a Revolução Industrial permitiram pagar salários mais elevados, que atraíram trabalhadores e “tornaram o trabalho forçado menos necessário”. Por outro lado, para estas sociedades industrializadas assentes na produção e consumo de massa os escravos tinham pouco interesse, pois não tinham poder de compra e não eram consumidores relevantes.
A diminuição da mortalidade infantil nas sociedades industrializadas propiciou que a continuidade das gerações fosse assegurada com menos filhos e isto, aliado ao aparecimento de dispositivos que aliviavam as mulheres dos afazeres do lar, libertaram estas para o mercado de trabalho. E como a natureza do trabalho mudou, deixando de requerer a superior força física dos homens, a sociedade passou a valorizar mais as mulheres, ainda que, por volta de 1940, boa parte da força de trabalho feminina (fora de casa, entenda-se) fosse jovem, solteira e concentrada em “funções domésticas, de secretariado, de cuidados infantis e de ensino, que eram mal pagas”. Ainda hoje, quando quase não existem, no mundo ocidental, profissões vedadas a mulheres, persistem desigualdades nas remunerações.
A passagem ao mundo dos combustíveis fósseis trouxe também consigo a secularização – “a saída da religião do centro da vida humana” – e a democratização. À medida que “os combustíveis fósseis restruturavam os mercados ao longo do século XIX, deixando as pessoas livres para negociar e trocar à sua vontade, as elites dirigentes […] foram percebendo que era cada vez mais difícil defender os seus privilégios políticos”. Por outro lado, “em quase todos os aspectos, as sociedades que adoptavam a democracia obtinham melhores resultados do que as que não o faziam”.
Nas considerações sobre igualdade de rendimentos, Morris usa como medida o índice de Gini, que oscila entre 0 (igualdade absoluta) e 1 (desigualdade absoluta) e conclui que entre o início da revolução Industrial e 1950 o índice de Gini global quadruplicou, mas se tem mantido estável desde então. Porém, tomar o índice de Gini global como medida da marcha da desigualdade é enganador, pois resulta da soma de realidades muito diversas: entre 1950 e o presente, o índice de Gini diminui no México, na Noruega, na Itália e na França, mas subiu nos EUA, no Reino Unido e na China. Diga-se de passagem que Morris já abordara este assunto em Guerra! Para que serve? e cometera o mesmo erro de análise.
Mesmo que a desigualdade na riqueza tenha aumentado em muitos países de acordo com os valores vigentes nas sociedades de combustíveis fósseis, ela é encarada de forma moderadamente negativa – o que estas sociedades rejeitam frontalmente é a desigualdade política, a desigualdade de sexos e a violência. Mas realça Morris, estes valores que hoje prevalecem entre os habitantes do mundo desenvolvido – mas não entre os taliban, que Morris vê como derradeiros representantes das sociedades agrárias, condenados à extinção – não representam um bem absoluto e imutável, são apenas aquilo que a nossa presente organização social exige. Como Morris escreve repetidas vezes, “cada era tem a mentalidade de que precisa”.
Como evoluem os valores
No capítulo 5, Morris dá uma panorâmica geral da evolução da humanidade, reafirmando algumas perspectivas já explanadas em O domínio do Ocidente e que são parcialmente tributárias das teses explanadas por Jared Diamond em Armas, germes e aço (ver As zebras não são cavalos com riscas).
O capítulo 5 é um dos melhores momentos do livro – enquanto se ocupa do passado. Quando tenta prever o futuro entra em delírio, como, aliás, já acontecia em O domínio do Ocidente. Morris afirma que “poderá estar em curso uma revolução inteiramente nova na captação de energia” sem especificar em que consiste. Tal não o impede de exibir um gráfico que mostra um crescimento exponencial (mesmo exponencial, não no sentido vago em que a palavra tem sido usada nos últimos anos) do “desenvolvimento social” a partir do início do século XXI – nem explica o que é “desenvolvimento social”, nem em que unidades se mede nem o que o fará subir até às estrelas. Afirma também que a captação de energia irá aumentar de 230.000 Kcal por pessoa e por dia para “mais de um milhão” – mas não nos diz que novas fontes de energia e matérias-primas sustentarão isto. E nem sequer menciona a possibilidade de a era dos combustíveis fósseis chegar ao fim simplesmente devido ao esgotamento dos ditos, o que, salvo mirabolantes descobertas científicas ou a súbita decisão dos sete mil milhões de habitantes do planeta de passarem a viver com a frugalidade de monges budistas, parece ser o cenário mais provável.
Morris junta-se a Yuval Noah Harari (ver O macaco que se converteu em Deus e Quer tornar-se num Deus? Pergunte como a Yuval) na previsão de que “os próximos cem anos assistirão a mais mudanças na natureza humana, e nos valores humanos, do que os anteriores cem mil”. Quanto a substanciar estas previsões, Morris não consegue fazer melhor do que remeter o leitor para o director de engenharia da Google, Ray Kurzweil, o visionário de serviço sempre que querem traçar-se cenários futuristas lunáticos. Kurzweil prevê “um salto evolucionário ao nível da passagem de organismos unicelulares para multicelulares” e que em meados do século XXI “teremos não só tecnologia de scan suficientemente poderosa para produzir mapas neurónio a neurónio de cada cérebro, mas também super-computadores tão potentes que os engenheiros biológicos poderão carregar scans de cada uma das oito ou nove mil milhões de pessoas da Terra”, fundindo “toda a humanidade num único superorganismo”. Ray Kurzweil segue uma dieta muito peculiar e toma diariamente 100 comprimidos de suplementos alimentares (já foram 250) e é de crer que alguns deles terão o efeito de lhe desinibir a imaginação.
Diga-se em abono de Morris que as previsões mais destravadas de Kurzweil e do neurocientista Henry Markram são temperadas no livro por opiniões bem mais cépticas e que toda esta especulação desemboca numa frase muito pouco científica ou sequer minimamente séria: “Tudo isto acontecerá… A não ser, claro, que não aconteça”.
Morris reserva as últimas cinco páginas do capítulo para ventilar duas razões para “que não aconteça”: o aquecimento global e a proliferação nuclear. Quanto à segunda, é estranho que o preocupe quando três páginas antes exultava com a probabilidade de serem criadas “armas que farão as bombas de hidrogénio parecer mosquetes de mecha”. Sobre o primeiro, escreve que “as temperaturas médias subiram 17 graus entre 1910 e 1980”, o que será provavelmente uma gralha, pois o aumento estimado da temperatura média durante todo o século XX é de 0.8º C. Morris manifesta apreensão perante o aquecimento global e reconhece que a esmagadora maioria dos climatologistas prevê consequências “terríveis e catastróficas” se “sete mil milhões de pessoas continuarem a queimar combustíveis fósseis despreocupadamente”. Porém, não parece estar consciente de que as consequências seriam ainda mais “terríveis e catastróficas” se se concretizasse o cenário por ele anunciado triunfalmente em que o consumo per capita de energia mais do que quadruplicaria.
[O arquipélago de Kiribati fica do outro lado do mundo, mas quando ligamos cá o nosso ar condicionado os efeitos sentem-se lá]
O capítulo conclui com a reiteração da perspectiva de que os valores não podem ser separados “do mundo concreto em que são seguidos. Ao longo da História […] aquilo que os filósofos da moral têm realmente feito é discutir que tipo de valores resultam […] melhor na sua própria fase de captação de energia”.
E chegados aqui damo-nos conta de que Morris nunca chegou a explicar a razão de, entre tantos valores, ter centrado a sua análise exclusivamente em quatro – perspectivas face à violência e à desigualdade económica, sexual e política
Contraditório e resposta
Em condições normais, o livro terminaria aqui, mas Caçadores, camponeses e combustíveis fósseis tem uma estrutura invulgar: o primeiro bloco do livro replica uma série de conferências proferidas por Ian Morris na Universidade de Princeton. Segue-se um segundo bloco, em que quatro pensadores – o professor de literatura grega Richard Seaford, o historiador Jonathan Spence, a filósofa Christine Korsgaard e a escritora Margaret Atwood – comentam as ideias explanadas por Morris. Num terceiro bloco, pretensiosamente intitulado “As minhas visões precisas sobre tudo”, Morris responde às críticas e comentários e clarifica algumas das ideias enunciadas no primeiro bloco.
Não é um modelo muito satisfatório, pois cada um dos comentadores comenta aspectos diferentes do livro e com diferentes abordagens e graus de profundidade, pelo que o “debate” resulta disperso e inconcludente. Vale a pena reter a pertinente crítica de Richard Seaford ao entusiasmo de Ian Morris pelos progressos na robótica e inteligência artificial (que o autor manifesta com mais eloquência em O domínio do Ocidente), pois “estão longe de serem suficientes para impedir qualquer alteração climática (entre outros desastres)”. Na verdade, os progressos na robótica e na inteligência artificial poderão não só não resolver nenhum dos grandes problemas como criar um novo: o desemprego maciço de uma porção considerável da humanidade.
O comentário de Margaret Atwood destaca-se pelo sentido de humor e acutilância e mostra o que separa uma prosadora dotada de um académico que se exprime com correcção. Entre as observações pertinentes de Atwood uma deveria merecer ponderação pela parte de todos os que crêem no progresso ilimitado: “Quanto mais intricadas forem as tecnologias de uma sociedade e quanto mais essa sociedade crescer, mais pequeno será o erro capaz de destruir algo vital, mais rápido será o descarrilamento e mais catastróficos serão os resultados. E mais difícil será reconstruir e pôr tudo novamente a funcionar, uma vez que já ninguém sabe reparar nada. O carro, o computador, o motor fora-de-bordo: é tudo digital”.
Quando o Império Romano colapsou, foram precisos muitos séculos para que o cidadão do antigo império voltasse a usufruir de um nível de vida material e espiritual comparável ao do apogeu do Império – como menciona Bryan Ward-Perkins em The fall of Rome and the end of civilization, até a dimensão média das vacas regrediu para a dos tempos pré-históricos. E a civilização romana era tecnologicamente primitiva quando comparada com a nossa, de forma que uma fracção grande da população estava familiarizada com o funcionamento das suas engrenagens.
No nosso tempo de hiper-especialização, somos utilizadores de tecnologias e aparelhos que são, aos nossos olhos, verdadeiras caixas negras: sabemos alimentá-las com inputs e recebemos os seus outputs, mas não fazemos a mais pálida ideia do que se passa lá dentro e muito menos saberemos arranjá-las se alguma coisa encravar.
Richard Seaford aponta também a Morris o facto de ter criado uma teoria abrangente à custa de ignorar as excepções, como é o caso de Atenas, que embora sendo uma sociedade agrária, desenvolveu valores democráticos – ainda que não reconhecendo a igualdade das mulheres e muito menos dos escravos, sob cujo trabalho aliás assentava.
Morris responde que “as cidades-Estado antigas e medievais e os países proto-industriais do início da era moderna são realmente excepções que confirmam a regra”. Quem tenha lido O domínio do Ocidente já sabe que Morris não hesita em manipular ou omitir os factos que não encaixam nas suas mega-teorias, mas aqui adiciona à distorção sistemática a retórica coxa quando invoca “a excepção que confirma a regra”. “A excepção confirma a regra” é uma tolice monumental do ponto de vista do raciocínio lógico e decorre muito provavelmente, em português como em inglês, da corrupção da frase de sentido oposto “a excepção infirma a regra”, que faz, essa sim, todo o sentido. “A excepção confirma a regra” entrou, desgraçadamente, no discurso corrente e é repetida acefalamente como se fosse uma verdade evidente, até mesmo por um distinto professor de História na Universidade de Stanford. Não é um detalhe de linguagem, é um sintoma das debilidades de alguns raciocínios de Ian Morris.