Com pompa e circunstância. No início da tarde desta terça-feira, Vladimir Putin recebia desta forma o seu homólogo chinês, Xi Jinping, no Palácio do Kremlin. Os dois líderes, juntamente com as suas respetivas comitivas, iam prosseguir as negociações em vários domínios, desde a questão económica até à guerra na Ucrânia. No final de duas horas de reunião, perante uma audiência que contava com dirigentes de ambos os países, os chefes de Estado assinavam dois documentos — um no âmbito mais económico, outro no domínio estratégico — que marcam o aprofundar das relações entre Pequim e Moscovo. “Sem limites”, como apontava um desses documentos? Não tanto, como mostra a até agora inflexível posição de neutralidade chinesa em relação ao conflito na Ucrânia.
“As relações entre a China e a Rússia estão no ponto mais alto na História”, afirmou Vladimir Putin no início da conferência de imprensa que deu ao lado de Xi e em que se referiu abertamente às negociações “bem-sucedidas” e “construtivas” dos últimos dois dias. Os dois países estão unidos por “laços fortes” e Putin admite que a prioridade, agora, incide principalmente no âmbito “comercial” e “económico”. Mas esse foco parece ser mais resultado de pragmatismo político que estratégia diplomática de Moscovo.
Pomp and circumstance in the Kremlin as Putin's talks with Xi get underway. pic.twitter.com/LJDjehtvui
— max seddon (@maxseddon) March 21, 2023
Pronunciando-se pela primeira vez sobre o roteiro para um acordo de paz proposto por Xi Jinping (que não é conhecido na íntegra), e que terá sido debatido entre os dois líderes, Vladimir Putin sublinhou que poderia essa poderia ser a “base da resolução pacífica” da guerra na Ucrânia, ainda que tenha responsabilizado a “Ucrânia e o Ocidente” por não estarem abertos a negociações. Por seu turno, Xi Jinping manifestou-se “disponível” para começar as conversações de paz, frisando que a comunidade internacional deve salvaguardar “os princípios da Carta das Nações Unidas e as regras básicas das relações internacionais”.
Num dos documentos assinados esta terça-feira, e onde se encontra a tal referência a um “aprofundamento da parceria sem limites” entre a Rússia e a China — que estão a entrar “numa nova era” —, as duas potências concordam na esmagadora maioria dos tópicos. Principalmente, há sintonia na rejeição de um mundo unipolar liderado pelos Estados Unidos. No entanto, no capítulo dedicado à “crise ucraniana”, essa unanimidade já não se apresenta de forma tão clara.
“A Rússia saúda a prontidão chinesa em desempenhar um papel positivo na crise ucraniana e nas considerações construtivas no acordo de paz”, lê-se no documento, que acrescenta que as duas partes enfatizam “que um diálogo responsável é a melhor maneira para uma resolução sustentável da crise ucraniana e a comunidade internacional deve apoiar os esforços nesse sentido”.
Com este posicionamento, Pequim continua a não demonstrar um apoio irrestrito a Moscovo no que diz respeito à guerra na Ucrânia, decidindo não apoiar abertamente a Rússia. Também esta terça-feira, na apresentação do relatório anual, o secretário-geral da NATO revelou terem sido captados “alguns sinais” de que a Rússia pediu “armas letais” à China, na antevisão deste encontro na capital russa — mas, pelo menos até Xi pisar solo russo, não era claro se o pedido teria resposta positiva. Apesar de os documentos assinados entre os dois países mostrarem uma certa culpabilização da NATO no prolongar do conflito, Pequim continua a manter uma posição ambígua relativamente à guerra — pelo menos, por agora. E a visita de Xi Jinping à capital russa não parece alterar a posição de base da China.
Relações entre a Rússia e China são “maduras, estáveis, autossuficientes e fortes”
Num dos documentos estratégico assinado esta terça-feira, os dois líderes salientaram que a aliança entre a China e a Rússia não é “militar” e não é “semelhante” aos acordos que eram “firmados durante a Guerra Fria” — não tem como objetivo aumentar a “natureza de confronto” da comunidade internacional. “As relações sino-russas são maduras, estáveis, autossuficientes e fortes”, tendo resistido “ao teste da pandemia de Covid-19 e à turbulenta situação internacional”. “A Rússia está interessada numa China estável e próspera, a China está interessada numa Rússia forte e bem-sucedida.”
Na ótica chinesa e russa, este tipo de relacionamento diplomático é mesmo um “exemplo” e as “relações entre Estados grandes no mundo moderno” devem seguir esses mesmos princípios. Os dois países mantêm um padrão de comunicação “intenso em todos os níveis”, fortalecendo a “confiança mútua”.
De acordo com o documento, os dois países prometem igualmente respeitar as diferenças “históricas e culturais”. Cada país tem, por isso, o “direito de escolher de forma independente o seu caminho”. O mesmo se aplica aos direitos humanos, em que a Rússia e a China sinalizam que cada Estado deve ser livre de “escolher” a maneira como abordam a temática. “As diferentes civilizações e países devem respeitar-se e aceitar-se”, consideram a diplomacia chinesa e russa. Não é mera nota de rodapé que, em ambos os casos, as lideranças políticas de Moscovo e Pequim são acusadas de violações dos direitos humanos por parte da própria ONU.
Em termos geopolíticos, o lado russo reafirmou que apoia o princípio de “Uma Só China”, isto é, “reconhece que Taiwan é uma parte integrante da República Popular da China” e manifesta-se totalmente contra à “independência de Taiwan”. Mais: Moscovo apoia as “ações” de Pequim para “proteger a sua soberania e integridade territorial”.
A visão das relações internacionais com um “mundo multipolar”
Foi repetido cinco vezes ao longo do documento: os dois países defendem a instituição de um mundo “multipolar”, observando uma “profunda transformação da arquitetura das relações internacionais”, que levará à irreversibilidade “de tendências históricas como a paz, o desenvolvimento e a cooperação”. Em contrapartida, as manifestações de “hegemonia, de unilateralismo e protecionismo” são cada vez mais “inaceitáveis” — e os dois países opõem-se frontalmente às mesmas.
As duas partes rejeitam “todas as formas de hegemonia, abordagens unilaterais dos poderes políticos, a mentalidade típica da Guerra Fria e o confronto entre blocos”. Em vez disso, China e Rússia preferem um “sistema internacional no qual as Nações Unidas desempenham um papel central”, assim como uma ordem mundial “baseada no direito internacional”.
As críticas aos Estados Unidos e à NATO
É um inimigo em comum entre Rússia e China, que os dois países procuram enfraquecer (ou contrabalançar). E essa visão é mencionada diretamente no documento. Pequim e Moscovo demonstram “preocupação” pelos “esforços” geopolíticos norte-americanos, principalmente na “criação de um sistema global de defesa antimísseis”, assim como a tentativa dos EUA de aumentar a sua influência em várias partes do mundo.
Os dois signatários do acordo acusam os Estados Unidos de querer instalar mísseis na região da Ásia-Pacífico (o que incomoda a China) e na Europa (o que inquieta a Rússia). Assim sendo, os dois países apelam a que Washington “pare” de “minar a segurança regional e internacional”. A atual estratégia dos EUA apenas serve para conseguir “manter” a sua “vantagem militar”, defendem.
“A Rússia e a China opõem-se às tentativas de certos países em transformar a comunidade internacional numa arena de confronto armado e rejeitam qualquer atividade destinada a alcançar a superioridade militar e a usá-la para operações militares”, atiraram os dois países, numa crítica direta aos Estados Unidos.
Relativamente à NATO, a sintonia nas críticas repete-se. A China e a Rússia insistem que os aliados devem cumprir com as “obrigações” que estiveram na base da fundação da organização, ou seja, o objetivo de atuar como um dissuasor da escala de confrontos armados deve manter-se no âmbito “regional e defensivo”, não extravasando esse âmbito. A aliança transatlântica deve também “respeitar a soberania dos Estados, os seus interesses, a sua diversidade civilizacional, histórica e cultural” e também deve tratar os restantes países de maneira “objetiva” e sem “preconceitos”.
Num assunto que interessa particularmente à China, os dois países mostram-se “apreensivos” com o “envolvimento” da NATO em “assuntos militares e de segurança” nos países da região da Ásia-Pacífico. “As duas partes opõem-se à formação de blocos na Ásia-Pacífico”, algo que consideram ter um “impacto negativo na paz e na estabilidade na região”.
Ainda nesta região, a Rússia e a China censuram e “expressam uma preocupação séria” com o recente acordo de segurança entre Austrália, Reino Unido e Estados Unidos, que prevê que os três países construam submarinos nucleares. Os dois países apelam a que Camberra, Londres e Washington “cumpram as suas obrigações de não proliferação de armas de destruição maciça”.
“Não pode haver vencedores numa guerra nuclear”
No domínio nuclear, os dois países reiteraram que “não pode haver vencedores numa guerra nuclear”, que nunca “deve ser desencadeada”. Pedindo o respeito pelos tratados internacionais, a Rússia e a China apelam a que se “reduza o risco de uma guerra nuclear e de qualquer conflito armado entre países que detenham armas nucleares”.
“Contra a degradação das relações entre potências nucleares, deve haver medidas para reduzir esse risco”, lê-se no documento, que acrescenta que deve existir uma relação harmoniosa entre potências nucleares para que se “minimize” eventuais “emergências”.
A união económica
Economicamente, os dois países estão mais unidos o que nunca. Vladimir Putin e Xi Jinping prometeram aumentar o volume comercial entre a China e a Rússia, além de pretenderem incentivar as trocas na área energética e alimentar. A conjetura pode ajudar a explicar esta aproximação: Moscovo perdeu os apoios económicos do Ocidente e está a braços com sanções, enquanto Pequim recupera das sequelas da pandemia de Covid-19.
“As duas partes vão continuar a fortalecer a cooperação mutuamente benéfica no setor financeiro”, estipula o acordo, que indica que se vai proceder a uma “expansão do uso” das moedas dos dois países no comércio, no investimento, nos empréstimos e nas transições comerciais e económicas entre as duas partes.
No acordo estritamente económico, Moscovo e Pequim reforçam que vão aprofundar relações na área comercial e financeira. O objetivo é “aumentar progressivamente” o investimento bilateral em cada um dos países. Com isto, Vladimir Putin já indicou que espera substituir o papel das empresas do Ocidente (que abandonaram o país com o início da invasão) abrindo as portas aos investidores chineses.
No setor energético e agroalimentar, os dois países querem assegurar a “segurança mútua e global”. Além disso, a China e a Rússia querem avançar no campo tecnológico, para que seja assegurada a “liderança” mundial de Moscovo e Pequim neste domínio.
[Explicador em vídeo. Como Xi Jinping aumentou a tensão entre a China e o Ocidente na última década:]