Estamos em plena contagem decrescente para o Campeonato da Europa de Futebol (chamemos-lhe apenas Euro 2024 daqui para frente) e segue-se um texto no qual se aborda futebol. Mas deixamos táticas e talentos para a equipa de desporto. Aqui trataremos de styling e roupa. Olhares atentos com algum conhecimento da modalidade, mas mais queda para moda, notarão uma presença crescente de camisolas de futebol sem, no entanto, haver sinal de um jogo por perto. Spoilers alert, porque partimos já para a conclusão: usar uma camisola de um clube ou seleção de futebol já não significa ser adepto, ou sequer apreciador. Hoje as camisolas de futebol são usadas como t-shirts normais, são escolhidas pelas suas cores e motivos, transcendem género, idade e cultura e até já são customizadas.
Para jogar neste campeonato não é preciso saber o que é um fora de jogo, quantos minutos dura cada partida ou quem são as estrelas do momento. As regras do jogo são mandadas para o banco, o exercício físico é opcional e o equipamento resume-se à camisola. Mas como vestir camisolas de futebol sem ir à bola também se tornou uma atividade, convocamos dois especialistas para ajudar a arbitrar. Enquanto a stylist Xana Guerra explica o que torna estas peças apetecíveis, o designer de moda Dino Alves descodifica o que torna o futebol esteticamente inspirador. Entre valores astronómicos que parecem transferências e uma verdadeira jogada criativa de génio, vamos perceber o que torna as camisolas de futebol um objeto de desejo na moda e numa altura em que vamos vê-las tanto por aí.
Mas afinal quando é que as camisolas de futebol entraram no circuito da moda? É aqui que entra em campo uma especialista, Xana Guerra, profunda conhecedora da moda masculina com quase 40 anos de experiência em diferentes modalidades, como buyer e stylist por exemplo. Conta que, desde que os confinamentos de Covid-19 fizeram da roupa desportiva moda, ela nunca mais saiu da vida do dia a dia e pelo caminho apanhou a camisola de futebol com a ajuda de outros movimentos do tempo. “Mas, na realidade, a peça de desporto específica do futebol, neste caso, que é a camisola de futebol, começou a entrar [no vestuário do dia a dia] nesta onda do grande [oversize], as raparigas a usarem as camisolas grandes dos rapazes, isto entrou tanto na moda, quer masculina, quer feminina, que passou a ser um elemento como outro qualquer”, acrescenta a stylist. “Hoje, [as pessoas] têm mais facilidade em usar aquilo que lhes apetece. As pessoas estão cada vez mais livres. Aliás, o próximo inverno vai ter outra vez a mistura do desporto com o street fashion.”
Antes só os adeptos devotos usavam as camisolas do seu clube, e quase como um dress code para os jogos. Mas a camisola de futebol foi fazendo o seu percurso na moda e hoje tornou-se mais uma peça do guarda-roupa. “Neste momento as pessoas têm orgulho em trazer as camisolas dos seus clubes para o dia-a-dia. Até vão trabalhar com elas. Portanto já não é uma peça que é só para assistir a um jogo de futebol, já é para se andar, faz parte também de um update na moda, já se brinca com isso.”
As peças desportivas entraram no vocabulário da moda há muito tempo e tudo começou com uma troca de conhecimentos em que a moda quis aprender os desenvolvimentos tecnológicos dos materiais e técnicas do desporto. Depois foi o desporto que quis usufruir do design da moda. É um encontro de dois mundos que tem corrido muito bem para ambos os lados e, em especial, para o público. “Há muitos anos que o têxtil vai buscar exatamente o engenho e a sabedoria das marcas de desporto em relação a variadíssimas coisas, nomeadamente na parte de tecidos”, diz Xana Guerra. Os desenvolvimentos tecnológicos que permitem a estes têxteis terem características os que tornam estes materiais especialmente resistentes às intempéries e ao desgaste da atividade física. “As grandes marcas de desporto estão a contratar grandes designers. Portanto, não é por acaso, tem o know-how do criador para ser mais giro e chamar a atenção e depois tem outra parte toda que o criador pode ter acesso a essas novas tecnologias que já pode fazer.”
Mas não é só o lado prático que torna as camisolas desportivas apetecíveis. Há dois elementos que a moda não dispensa: a estética e a novidade. Xana Guerra diz que é notório que em ano de campeonatos internacionais de futebol, entenda-se europeus e mundiais, as marcas de moda, tanto de luxo como de massas, se deixam contagiar pela febre e criam as suas próprias camisolas desportivas. Nomes como Balenciaga ou Gucci não perdem a boleia da inspiração desportiva e as lojas de moda acessível também não. Xana Guerra lembra um ano em que a Zara fez uma coleção com camisolas alusivas a seleções que a própria confessa ter sido tão tentadora que comprou pelo menos seis. “Havia uma do Gana, que era de cair para o lado de gira. E o que é que eu tenho a ver com o Gana? Nada. Mas era por questões estéticas.” Vai mais longe e acrescenta que também há quem goste de ter peças dos equipamentos dos Jogos Olímpicos, e a lembrança é oportuna também porque, depois de finalizado o Euro na Alemanha, arrancam os Jogos em Paris. A stylist que agora se dedica quase em exclusivo à música, já vestiu Rodrigo Santoro e os músicos Calema e, já bem lá para trás, Cristiano Ronaldo. “Já foi há tanto tempo, agora é só um amigo”.
O designer de moda Dino Alves tem estado a concorrer em outro campeonato, uma vez que este ano voltou a vestir a marcha da Bica na competição de marchas populares de Lisboa. Com essa corrida já na fase final, falou ao Observador sobre o futebol como fonte de inspiração. A mais recente ModaLisboa a coleção que apresentou foi inspirada no universo do futebol, como resultado de uma parceria com a BetClic, patrocinadora da coleção e também do Campeonato Nacional de Futebol. Destaca três elementos estéticos essenciais no universo do futebol que são fortes fontes de inspiração. “Tem uma coisa que eu acho que não deixa de ser inspiradora que é a paleta de cores, normalmente são sempre cores muito fortes. As riscas, eu pessoalmente sempre adorei riscas, e remetem imediatamente para um lado desportivo. E a questão do branding, dos logos, dos emblemas, que também acaba por ser uma tendência.” Na verdade, cada camisola de um clube junta, pelo menos, o emblema, a marca desportiva que a fez e o patrocinador. Numa indústria como a da moda onde os logotipos têm tanta importância, esta questão não passará despercebida a muitos fãs.
Talvez seja precisamente o peso da logomania que faz com as camisolas de futebol de marcas de moda sejam bem mais caras do que as versões das equipas desportivas que vão realmente a jogo. A marca de moda sueca Acne Studios criou a sua própria camisola de futebol em abril e foi um sucesso, apesar das 360 libras que custava (mais de 420 euros, e mais do que uma camisola oficial de um clube ou seleção). Embora não estivesse descrita como camisola de futebol, tinha em tudo o seu aspeto. Para quem deixou escapar esta há agora uma nova, descrita como “t-shirt de manga comprida estampada”, claramente inspirada nas camisolas de futebol, em tons de laranja e cor de rosa e por 350 euros ainda disponível no site da marca em alguns tamanhos. Em janeiro já a casa Balenciaga tinha lançado uma coleção “Soccer series”. No site da marca ainda podem ser encontradas peças que em tudo se assemelham a um equipamento desportivo e lá estão, claro, as camisolas de futebol da “equipa Balenciaga” a 750 euros cada. O modelo em preto já está esgotado, mas a versão em vermelho ainda está disponível. E há Martine Rose, a designer britânica com herança jamaicana que se tem dedicado à moda masculina, transformando algumas peças de streetwear em verdadeiros objetos de desejo de celebridades e claro que não podiam faltar as suas próprias camisolas de futebol.
Dino Alves também desenhou uma camisola de futebol como se a sua marca fosse uma equipa. A peça foi criada para uma ativação da marca no recinto da ModaLisboa, na passada edição de março. A camisola foi pensada para ser incluída numa coleção cápsula de peças de merchandising que a BetClic quer fazer para estar à venda, mas ainda não se sabe se tal vai acontecer ou não. Se acontecer terá adaptações, provavelmente o emblema da “equipa” Dino Alves será substituído pelo logotipo da BetClic, ou da Liga Portugal BetClic, explica o designer.
Falta abordar a parte técnica desta tendência, ou seja, como usar a camisola de futebol no dia a dia.“Se usar com umas calças de fato de treino e com uns chinelos, tem um aspecto. Outra coisa é se for vestido de uma maneira mais street, com um styling giro.” E há sugestões da stylist Xana Guerra: “Pode pôr umas calças com um blazer e com umas Birkenstock e uma t-shirt de desporto. Só porque está com uma t-shirt de desporto, não tem que usar mais alguma coisa de desporto, até pode estar com um sapato clássico.” Para o designer de moda Dino Alves, as camisolas de futebol “por si só não funcionam como objeto de moda, só funcionam integradas num contexto de moda, ou seja, misturadas com alguma coisa que faz o contraponto”. Por isso recomenda usar as ditas camisolas “com umas calças, uma saia de tule, salto alto, ou com umas botas”.
Não nos deixemos intimidar com a linguagem técnica, afinal cada área tem a sua. O que os especialistas dizem é que as camisolas de futebol não devem ser usadas com mais roupa desportiva. Não é caso para cartão vermelho, mas o que põe um look dentro da grande área da moda é conseguir integrar as tais camisolas com a restante roupa do dia a dia. Dino Alves acredita que “a moda é o que a gente vê na rua” e que “normalmente a moda é sempre um reflexo daquilo que se passa socialmente, economicamente, mas mais socialmente”, assim, as camisolas de futebol aparecem “mais para aproximar a moda com a moda de rua”.
Não há tendência que não conte com o toque de magia das celebridades. A História pode contar outra versão, mas no que toca a mediatismo terá sido David Beckham quem tornou a camisola de futebol num objeto de desejo levando a sua camisola vermelha do Manchester United, com a sua celebridade, para fora das quatro linhas do campo de futebol. Hoje, há futebolistas rendidos à moda e tornados ícones da indústria, promovendo uma mistura dos dois mundos. A masculinidade que em tempos passados caracterizou o universo do futebol terá abrandado ou, pelo menos, ter-se-á redefinido. Dino Alves lembra que se há uns anos seria impensável ir para um estádio a usar cor de rosa, hoje já há jogadores que pintam as unhas. Arrisca dizer que a moda e as redes sociais deram uma ajuda, mas na verdade, as provas estão à vista. As camisolas de futebol sempre foram tentadoras fora de campo, mas agora não se limitam a fãs. Kim Kardashian foi vista a ir para um jogo de basquetebol da filha, North West, a usar uma camisola da AS Roma. Também já usou uma do Paris Saint Germain numa versão com umbigo à mostra. Adriana Lima andou por Paris, em plena semana de Alta Costura, durante o Mundial de 2018 com uma camisola do Brasil para mostra apoio à sua seleção. Do cinema à música, há celebridades a usar a camisola (ou jersey como chamam os norte-americanos) em variadas ocasiões.
E no que toca aos jogadores/celebridades há os que tornam as suas camisolas em troféus. Quando Messi atravessou o Atlântico e assinou pelo Inter Miami em julho de 2023 tornou-se no jogador que vendeu mais camisolas numa janela de 24 horas em qualquer desporto. Ultrapassou Cristiano Ronaldo, que detinha o recorde desde 2021, quando se mudou para o Manchester United. O resto do pódio era ocupado por Tom Brady e LeBron James, verdadeiros terramotos comerciais nos dias em que se mudaram para a equipa de futebol americano Tampa Bay Buccaneers (2020) e para os famosos Lakers de basquetebol (2018), respetivamente. No entanto, a aterragem de Messi em Miami superou tudo isso. A camisola rosa com o nome de Messi e o número 10 custava na altura entre 194,99 dólares (quase 180 euros). Esgotou imediatamente nas lojas Adidas de tal forma que a marca informou que iria repor os stocks no prazo de 60 dias. A loja online Soccer.com disse à CNN que num só dia com camisolas de Messi vendeu o equivalente ao valor de seis meses de vendas da camisola Inter Miami. O jornal La Marca chamou-lhe na altura “a peça mais rentável da história do futebol”.
Haverá uma camisola que tem o título de camisola de futebol mais cara de sempre. Foi usada por Diego Maradona no mundial de futebol de 1986 e atingiu o valor recorde de 7.1 milhões de libras (mais de oito milhões de euros) quando foi leiloada pela Sotheby’s em maio de 2022. O jogo dos quartos de final no México ficou na História pelos dois golos que Maradona marcou, um deles com a mão, e foi por isso que a camisola foi colocada no site da leiloeira com o nome “a camisola ‘a mão de Deus’ e ‘golo do século’”. No final do jogo com Inglaterra o jogador argentino trocou de camisola com o inglês Steve Hodge e esta tem estado em exposição no Museu Nacional do Futebol em Manchester desde 2002. Depois da morte de Maradona, Hodge pôs a camisola a leilão e a Sotheby’s estimou que seria vendida por um valor entre quatro e seis milhões de libras, acabou por ultrapassar e mantém-se recordista. Em dezembro de 2023 a leiloeira voltou a vender camisolas da seleção argentina, desta vez do novo ídolo. Um conjunto de seis camisolas usadas por Lionel Messi no mundial de 2022, que foi ganho pela Argentina, foi vendido por 7.8 milhões de dólares em Nova Iorque (cerca de 6.1 milhões de libras na altura) não destronando a camisola de Maradona.
As camisolas de futebol já são um pequeno luxo por si. A nova camisola da seleção nacional custa cerca de 150 euros e os valores das dos clubes não andam longe deste. Contudo, além do styling como já vimos, é possível tornar estas peças ainda mais especiais. É essa a proposta de Diana Al Shammari com o projeto The Football Gal. A autora faz bordados com flores nas camisola de futebol, mas nada disto é à toa. As flores são as nativas de cada país e as cores são pensadas para cada camisola. Tudo começou quando a irmã mais nova lhe trouxe uma camisola da seleção húngara depois de ter estado em Budapeste em férias em 2017. Inspirada por Dolce & Gabbana começou a bordar o que sentiu que faltava numa camisola que lhe pareceu demasiado simples e não mais parou. Nasceu assim The Football Gal. Já chegou aos futebolistas (como Jules Koundé), às celebridades (como os Jonas Brothers), às parceria com marcas desportivas, (como a Adidas), às redes sociais (com o seu colorido Instagram) e à imprensa.
Diana Al Shammari nasceu no Iraque e cresceu a ver o irmão mais velho jogar à bola nas ruas de Bagdad. “Eu era obcecada por futebol, mas sendo uma rapariga no Iraque, isso era desencorajado”, contou à revista How to Spend It do Finacial Times, mas diz que roubava as camisolas de futebol do irmão e usava-as em casa. Tinha sete anos quando os Estados Unidos invadiram o Iraque e a família teve de fugir para o Egipto, onde estiveram cinco anos e em 2010 mudaram-se para Los Angeles. Estudou jornalismo e relações públicas na Universidade da Califórnia e depois foi para Londres onde estudou media digital na Universidade Metropolitana. Foi na capital britânica que começou o projeto de The Football Gal. Quando falou com HTSI, Diana trabalhava como freelancer na indústria da publicidade enquanto mantinha o projeto The Football Gal, talvez por isso não tenha respondido ao Observador quando lhe perguntámos como customizaria uma camisola da seleção portuguesa. Mas com o projeto a crescer e a seleção nacional no Euro 2024, talvez ainda venhamos a ver esta peça.