Há pouco mais de um ano, ninguém conseguiria adivinhar que o mundo daria o tombo que deu à conta do novo coronavírus. Nessa altura, no terraço do Bairro Alto Hotel, o chef Fausto Airoldi bebia uma água com gás pouco tempo depois de chegar de Macau. “Como tem sido a vivência com este tal de coronavírus?” foi a primeira pergunta que saltou do bloco de notas naquela que pretendia ser uma entrevista de vida ao homem que praticamente todos os cozinheiros portugueses da atualidade — dos mais Michelin aos clássicos — consideram como mestre. “Se calhar há alarmismo a mais, mas acho que tanto a China como toda a Ásia estão cientes de que isto é uma coisa grave”, respondia o chef. O descalabro que se desencadeou nos meses seguintes viriam a dar-lhe razão.
O desenrolar dos acontecimentos que mergulharam o mundo na pior pandemia dos últimos 100 anos obrigaram esta conversa com quase duas horas, feita à mesa, entre pratos, a ir para o congelador. Desde então, o Observador voltou a falar com o cozinheiro para perceber como tinham sido estes últimos tempos: “Quando regressei a Macau depois de vir de Lisboa, tive de ficar de quarentena num hotel. Não podia sair, até os elevadores do andar onde estávamos foram travados. Se saíssemos do quarto, levávamos uma multa e tínhamos de começar tudo outra vez”, explicou o chef, há uns dias, via telefone. Se já na altura do primeiro encontro o chef revelara que o Galaxy, gigantesco complexo hoteleiro e casino onde trabalha como coordenador gastronómico fechara totalmente durante 15 dias — “nunca, nuns dez anos de funcionamento, tinham feito isso” –, atualmente não esconde que o impacto foi duro. Apesar disso, retoma, já há uma luz ao fundo do túnel, por muito que ela só acabe por chegar totalmente em 2022.
Revolucionário e cozinheiro-líder, Fausto Airoldi dispensa apresentações. Depois de ter forjado uma fornada de talentosos chefs que hoje têm (ou já tiveram) estrelas Michelin, como João Rodrigues (do Feitoria) e Leonel Pereira (do antigo São Gabriel, atualmente no Check-In Faro), e de ter contribuído para mudar a forma como o grande público vê o setor, Airoldi desencantou-se com o panorama das cozinhas portuguesas e mudou-se para Macau há quase oito anos. “Não planeio voltar a trabalhar em Portugal. Talvez porque Portugal se tenha tornado pequeno de mais”, conta. Nascido em Moçambique, criado na África do Sul, consagrado em Portugal e agora numa travessia macaense de proporções gigantes. É esta a história do rapaz que esteve para ser físico nuclear, mas preferiu dar e receber o melhor que a comida tem.
O Fausto está em Macau há quanto tempo?
Há quase oito anos. Faz oito anos em junho.
Quando foi lá parar já conhecia o país?
Já. A minha mãe viveu lá uns oito ou nove anos, nos anos 80, por isso ia muitas vezes. Era outro Macau: conheci o antes e agora temos o depois, que é totalmente diferente.
Em que sentido?
Antigamente havia só um casino, era tudo muito mais rústico. Hoje Macau está outra cidade. Obviamente que a cidade antiga ainda lá está, a parte do Senado e isso, mas a vida mudou muito.
Ainda se encontram traços de alguma portugalidade?
Cada vez se vai perdendo mais com o tempo, como é óbvio. Acho que eles querem manter algumas coisas, há uns quantos apoios e isso, mas vai-se perdendo essa portugalidade.
Como é que foi acompanhando as mudanças no mundo da restauração e hotelaria em Portugal?
Foi um conjunto de coisas e tem muito a ver com a Internet, claro. Divulgação feita a toda a hora… Senti que estava tudo virado para um turismo mais jovem. Portugal era aquele destino onde se ia com os avós (a Madeira e o Algarve são um bom exemplo disso), mas por volta da altura em que me fui embora isso começou a mudar, iam aparecendo muitos hostels e restauração virada para gente mais nova. Houve uma mistura de fatores (o surgimento das companhias low cost é um deles) que fez com que o nosso país passasse a ser muito mais procurado.
O país passou a estar na moda…
Era evidente que mais cedo ou mais tarde iria acontecer. Portugal foi dos sítios que levou mais tempo a ser conhecido, praticamente toda a Europa já o é e sobrávamos nós [risos]. Também é de assinalar o trabalho diferente que foi sendo feito e foi-se dando a conhecer. Hoje acho que as pessoas veem Portugal por aquilo que realmente temos, coisas muito boas: boa comida, bom produto, praias fabulosas…
É verdade que os empreendimentos turísticos de Macau são obrigados a ter, pelo menos, um restaurante português?
Ainda são, sim. Mas atenção, o restaurante pode ser português ou macaense. Quando deram as licenças, uma maneira de conseguir manter alguma coisa de Portugal foi com isto, por exemplo.
Andando muito para trás: o Fausto nasceu em Moçambique.
Nasci, sim.
Em 1963?
Sim… Há muito tempo [risos].
Em que zona de Moçambique?
Na Beira. Estudei lá, também, mas depois acabei por ir para Lourenço Marques [atual Maputo]. Em 74/75 houve a revolução, mandaram-nos embora e fui para a África do Sul. Fomos para lá porque o meu pai não gostava de Portugal, não queria cá viver. Na África do Sul tínhamos alguma família, o meu pai tinha lá um irmão (e tinha outro na Rodésia). Foi lá que fiz o meu percurso académico todo, incluindo a escola de hotelaria. Aos 23 anos mandaram-me embora de novo. Não quis ficar sul-africano: tinha passado uma lei que estipulava que, se para ficar com a nacionalidade, era preciso ir para a tropa. Se não quisesse ir, tinha de sair do país. Deram-me seis meses e fui. Portugal foi o destino mais fácil porque também tinha cá família. Não sei se fiz bem ou mal, mas fui ficando por cá.
O que se lembra dos tempos de infância em Moçambique?
De dois em dois anos vínhamos a Portugal e dava para perceber bem que as coisas em Portugal continental e em Moçambique eram muito diferentes. Vivia-se mais ao jeito da África do Sul do que de Portugal. Era tudo muito mais aberto, era outra vida. Tínhamos uma vida muito boa, mas diferente. Enquanto aqui se vivia para o trabalho e pouco para o lazer, lá não. Lá vivia-se muito o lazer — mas obviamente que se trabalhava também, claro. Havia tempo. O meu pai era caçador profissional e saíamos às sextas-feiras para ir numa caçada e voltávamos quase na madrugada de segunda para ir trabalhar.
Nessa altura já tinha alguma ligação ao mundo da cozinha?
A minha avó tinha um moinho holandês no meio de África. Era um bocado estranho, mas o meu avô trabalhava para uma empresa holandesa e ela apaixonou-se pelos moinhos. Ele mandou construir um. Chega-se a Vila Pery e tem-se um moinho holandês. Quando ele morreu, ela percebeu que a casa era grande de mais, por isso transformou-a num hotel. À conta disso, a partir dos meus seis anos, mais coisa menos coisa, comecei a visitar o hotel e a ir para a cozinha fazer coisas tipo ovos de codorniz. Não tenho muitas memórias de tudo isso: lembro-me de um sujeito chamado Araújo, que tinha paciência para me ensinar a fazer as coisas. Diria que o gosto pela área chegou mais tarde.
Já na África do Sul?
Talvez. A minha avó perdeu tudo quando saiu de Moçambique e em Joanesburgo abriu um restaurante, onde eu trabalhava em part-time.
Antes de ir para a escola de hotelaria, o Fausto ainda fez um ano de física nuclear. Como é que se parte daí para a restauração?
Por causa de professores muito chatos, malucos. Comecei a olhar para eles e disse: ‘Não, eu não quero ser assim’. Uma amiga desafiou-me, certo dia. Disse-me que ia a uma entrevista na escola de hotelaria e perguntou se também queria ir. Disse que sim, fomos os dois, eles aceitaram-nos e até hoje continuamos amigos.
Mas e a escolha inicial para a física nuclear? De onde veio? Foi incentivo da família?
Meio, meio. O meu pai chateou-me um bocado para ir para a universidade. Ofereceu-me uma viagem de três meses, para pensar que curso queria. Naquela altura, ser cozinheiro era uma coisa que não passava pela cabeça de ninguém. Era uma altura onde os filhos tinham de ter “um canudo” e, tendo isso, lançavam-se para o que quisessem.
Como era vista a profissão de cozinheiro nessa altura?
Era muito mal vista. Era uma coisa serviçal, nada bem visto. O meu pai ficou praticamente sem me falar durante um ano quando lhe disse que queria ser cozinheiro. Ele disse-me que tinha de lhe pagar tudo o que ele me tinha dado da tal viagem de três meses [risos]. Foi um processo giro. É engraçado hoje pensar que há muitos pais que até gostam que os filhos queiram ser cozinheiros. Há uma evolução — e talvez, hoje, até se ganhe mais dinheiro como cozinheiro do que com “um canudo”.
Mas a escolha do curso de cozinha teve então alguma influência familiar por trás, não?
A ligação familiar ao ramo teve algum peso na escolha, sim. Lembro-me que éramos uns 200 ou mais a serem entrevistados para entrar no curso e acabávamos por ficar só uns 20 ou 30. Os cursos eram pequenos, a própria escola também era. Ficava em Bloemfontein, na África do Sul. A mãe da minha tal amiga, que entrou ao mesmo tempo que eu, também fazia muitos caterings, isso também ajudou.
E como foram os primeiros tempos na escola?
Foi engraçado porque a escola de hotelaria lá já era muito à frente do que se via em muitos outros sítios. Já tinha um restaurante próprio, um serviço de catering.
Estamos a falar de que ano, ao certo?
Entre 83 e 84. Era um curso intensivo de dois anos. Só de hotelaria, mas passávamos por tudo: serviço de sala, mesa, cozinha. Isso nos primeiros seis meses, depois escolhias se querias ir para pastelaria ou cozinha. Escolhi a segunda.
Foi um choque esse contacto com uma cozinha mais profissional?
Nem por isso. Ali começávamos pela cozinha do pessoal, depois havia aulas de cozinha temática e, a seguir, passávamos para o restaurante. Os nossos professores mandavam-nos para vários hotéis. Imagina, uma cozinha qualquer tinha 300 quilos de linguados para filetar, falavam com a escola e lá íamos nós. Isso foi muito bom, conheci muitos cozinheiros da África do Sul, no meu primeiro ano, à conta disso. Dedicávamos bastante tempo a essas tarefas, mesmo sem ganhar nada, íamos de borla. Ganhávamos, sim, imenso conhecimento e também muita prática — tornear 200kg de batatas, por exemplo, que nos demorava uma noite inteira. Foi à conta dessa gente toda que fomos convidados a participar na IKA [Internationale Kochkunst Ausstellung, em alemão. Competição conhecida como os jogos olímpicos da gastronomia] de 84, na equipa júnior.
O IKA consiste muito na avaliação técnica…
Exatamente. Acho que foi aí que ganhei um bocado o gosto pelas associações, por exemplo. Tinha um mentor chamado Bill Gallagher que me incutiu um espírito de contribuição. Ele dizia sempre que a profissão era muito boa, mas tinha de lhe dar também algo meu. Não era só tirar. Essa ideia ficou-me sempre na cabeça, do dar e não apenas tirar. Sinto que o meu “dar” foi a Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal. Fiz muitos anos de associação. Praticamente não ganhávamos nada com aquilo, tirava-nos muitas horas mas dava algum gozo, também. Levámos muitas equipas portuguesas a competições internacionais.
Foi nesse IKA, a representar a África do Sul, que ganhou as primeiras medalhas…
Sim. Uma de ouro e outra de prata.
O que se cozinhava nessa altura na África do Sul?
Andava muito à volta da nouvelle cuisine, mas como a África do Sul é um sítio como a Austrália, que não tem raízes, tudo era aceite. Conseguias “roubar” inspirações de várias cozinhas e tudo era aceitável. Quando cheguei a Portugal senti essa limitação, qualquer abertura não era aceite, era mal vista.
Quando é que veio para Portugal?
Tinha 25 anos, creio. Acabei a escola com 24 e passado um tempo tive de vir para cá.
Já tinha chefiado cozinhas, ainda na África do Sul?
Sim, de uns restaurantes pequenos. Também o da minha avó. Trabalhei em hotéis e fiz muitos caterings. Enquanto estudei, trabalhei sempre, por isso estive muito envolvido. Nunca parei nos dois anos do curso.
Como é que foi ir para o lugar que era da avó, no restaurante dela?
Eu chefiava à noite, quando ela ia descansar. Mas dava-me sempre na cabeça [risos].
Ela era muito crítica?
Não aceitava muito bem as coisas novas. Eu queria fazer experiências e ela não alinhava.
A sua família materna é portuguesa e paterna é italiana, certo?
Sim. Mas com a família do meu pai tive pouco contacto. Dávamo-nos em Moçambique, mas saí de lá muito cedo. Eles foram para a Rodésia, naquele tempo, e isso fez com que tivesse menos proximidade com eles.
Como se chamava o restaurante da sua avó?
A Palhota. Um sítio pequenino em Joanesburgo. Aprendi — ou tive de aprender — algumas bases de cozinha tradicional portuguesa.
O que é que ela lhe ensinou a fazer?
Toda a minha família cozinha muito bem. A minha mãe, as minhas tias… Vai-se sempre aprendendo coisas. Para mim, acabou por ser mais fácil de aprender porque já tinha o gosto. Sempre comi cozinha portuguesa. Obviamente que com a família do meu pai havia algumas coisas italianas. Uma coisa que a cozinha portuguesa tem é a simplicidade. O produto é bom e cozinhá-lo tem de ser de forma simples. Os nossos guisados, por exemplo, não têm muitos produtos, muitas especiarias. É muito simples: cebola, tomate, louro, alho, um bom azeite e tempo. Agora, acho que vivemos num tempo em que as pessoas querem sempre coisas modernas, coisas diferentes. Felizmente, os jovens estão a gostar da cozinha tradicional e isso é bom. Foi pena ver a Casa Cid fechar, por exemplo. É pena ver esses sítios a fechar porque têm muita história.
Antes de saber que iria sair da África do Sul, alguma vez tinha pensado em voltar para Portugal?
Não. Na verdade, era para vir para cá um tempo, só, mas depois fui ficando.
Como foi essa chegada a Portugal?
Vinha com a ideia de abrir um restaurante, que acabei por abrir, em 86, o “Como Se Queira”, no Príncipe Real. Depois abri “A Varanda”, no Algarve, que ficava num empreendimento, em 88. Em 89, estava com os dois restaurantes e andava feito maluco entre Lisboa e o Algarve. Cheguei a uma altura em que já estava sozinho há quatro anos, não estava a aprender aquilo que devia, e quis ir para um restaurante bom. Aprender mais para conseguir fazer uma comida diferente daquela que estava a fazer. Naquela altura estava a fazer uma cozinha já um bocado moderna, mas com coisas portuguesas. Não tinha o público que queria. Estava a fazer uma consultoria em Cascais, na Mercearia Vencedora. Estava lá só para abrir o projeto, não contava lá ficar, e eles estavam à procura de um chef. Certo dia, receberam um currículo de um tipo do Gare Marítima, do chef Michel da Costa (pai do Olivier), e percebi que ia lá abrir uma vaga. Mandei o meu currículo no mesmo dia e foi uma troca, quase. Ele veio para a Mercearia Vencedora e eu fui para a Gare Marítima. Estive lá dois anos.
Quanto tempo passou entre o momento em que chega a Portugal e abre o Como Se Queira?
Uns seis ou sete meses. Vivia em Cascais, a minha mãe tinha lá uma casa. Eu detestava aquela zona, queria ir para Lisboa.
Durante esse tempo, o Fausto fazia compotas e coisas do género para vender, não era? Chegou a vender para embaixadas e outros sítios.
Exatamente. Vinha com o bichinho do catering, tinha feito muitos. No primeiro ano da escola de hotelaria, eu e a minha tal amiga já tínhamos a nossa empresa de catering, já fazíamos serviços para empresas. Quando cheguei cá, como não tinha nada para fazer — e percebi perfeitamente que nunca arranjaria um restaurante num mês –, fiz essas coisas. Alguns caterings para embaixadas (dos EUA e da África do Sul, por exemplo). Daí vieram muitos contactos. Como tinha uma cozinha um bocado mais moderna do que se fazia cá, a palavra ia passando. Lembro-me que uma coisa que eles gostavam muito eram os “crab sticks”, uma espécie de delicias do mar [risos]. Naquela altura era uma novidade. Chegavam a convidar-me para fazer coisas para feiras de caridade e coisas assim e eu fazia chutneys, doces… Ia para lá, entretinha-me e ganhava algum dinheiro. Não foi mau porque conheci muita gente e quando abri o restaurante, muitas dessas pessoas tornaram-se minhas clientes.
Pode-se dizer que o “Como Se Queira” foi o primeiro restaurante 100% seu?
Sem dúvida. Tinha um sócio, uma pessoa que tinha conhecido e que tinha um espaço de restauração que não tinha funcionado. Acabou por me passar as suas quotas e fiquei uns quatro anos com esse projeto.
O que se comia no “Como Se Queira”?
Um bocado de tudo. Massas, pratos portugueses, bons bifes… O Príncipe Real, naquela altura, com o designer José Carlos, que tinha o atelier ali perto, tornou-se um sítio conhecido por ter sempre pessoas da moda. Aparecia sempre muita gente depois dos espetáculos e dos desfiles. Como era um restaurante que abria depois das dez, as pessoas ficavam lá noite fora. Começámos a ter uma clientela gira. Foi lá que conheci a Olga Barrisco, por exemplo, com quem acabei por voltar a trabalhar na Bica do Sapato.
Deve ter sido uma altura interessante para se ter um espaço desse género…
Toda aquela gente, daquela época, caía lá.
Foi lá que conheceu o Fernando Fernandes?
Não. Conhecia o Fernando de vista, através de outras pessoas. Ele é que depois me convidou, em finais de 99, para ir para a Bica do Sapato. O chef que ele tinha quando abriu a Bica do Sapato esteve lá pouco tempo. Depois de ele sair, estiveram quase sete meses sem chef. Eu tinha um contrato de dois anos para abrir o Regency na Madeira (no meu currículo não tinha nenhuma abertura de hotel por isso, quando surgiu essa oportunidade, aproveitei).
A abertura na Madeira foi depois do Gare Marítima?
Bastante depois. Estive no Gare dois anos e saí para ir trabalhar para a Knorr. Naquela altura, a Knorr não tinha um chef service em Portugal e como eu já tinha uma ligação à marca vinda dos tempos da África do Sul, convidaram-me para abrir esse serviço.
O que era esse chef service?
Era um departamento dentro da Knorr. Eles eram muito virados para retalho e a parte de produtos para chefs de cozinha era muito pequena. Para eles entrarem nesse mercado precisavam de alguém que pudesse fazer demonstrações, receitas, desenvolvimento de produto para o nosso meio. Quando lá cheguei, eles tinham produtos de casa, embalagens grande, “basta juntar água” e pronto. Disse-lhes logo que eles nunca conseguiriam vender isso a nenhum cozinheiro, tinham de lhe dar alguma maneira de alterar as coisas, pôr um pouco mais de natas, juntar um bocadinho de brandy… O que fosse. Começámos então a mudar isso em conjunto nos dois anos em que lá estive a tempo inteiro (depois fiquei quase dez anos como consultor).
Que género de coisas é que saíram desse trabalho do Fausto com a marca?
Melhoramentos de caldos e de molhos. Lançámos alguns molhos à base de roux… Ainda lançámos algumas coisas mesmo “nossas”, com a Alsa, por exemplo. Toucinho do Céu, Serradura… Lembro-me perfeitamente: fizemos uma mousse neutra. Eu defendia muito que se desse aos cozinheiros a criatividade. Fazer molhos neutros que depois pudessem ser alterados. Uma espécie de tela em branco. O que é que a Knorr me deu? Primeiro a experiência de trabalhar para uma multinacional. Depois contactos em todo o mundo — nós tínhamos 40 chefs só a trabalhar na casa mãe da marca. Esses contactos foram muito importantes.
O facto de terem esses cozinheiros todos a trabalhar em várias partes do mundo deve ter ajudado o aspeto criativo.
Tinha um R&D [“Research & Development”, nome inglês para departamento de investigação e desenvolvimento] muito forte. Muitas cabeças a pensar ao mesmo tempo.
É curiosa esta associação à Knorr. Fala-se muito dos cozinheiros fazerem tudo do zero, os caldos e molhos… Nessa altura não se criticavam estas soluções?
Criticava-se. Toda a gente critica tudo. Acho que as pessoas têm de ter bem ciente as suas limitações. Há restaurantes onde há a possibilidade de fazer tudo do zero — tive essa possibilidade na Bica do Sapato e no Pragma. E sou totalmente adepto de que se pudermos fazer tudo de raiz, que se faça assim. Agora, 90% das cozinhas não consegue, não tem pessoal, não tem competência, não tem espaço… Não tem pratos onde se possa cobrar isso. A parte de conveniência é importante conhecer, assim como é importante saber como usá-la. Pode-se usar bem, como base, ou na onda do “basta juntar água”. Há muita coisa onde se pode ir do 0 aos 100. Eu comecei a perceber que a conveniência é uma escolha nossa. Eu posso começar a querê-la aos 0, onde vou buscar a galinha, vou depená-la, pô-la em água a ferver, etc. Começar do zero como fazia com a Maria José [da Quinta do Poial], que me trazia franguinhos de 600g para o Gare Marítima, que depois o copeiro depenava. Também posso começar dos 20 e comprar o frango já depenado. Ou já cortado, ou já marinado… Eu tenho essa escolha. Por isso, no parâmetro de conveniência, aprendi a situar-me com a Knorr.
Conveniência e sustentabilidade económica. Posso querer fazer tudo do zero, mas se não tiver possibilidade de o fazer com aquilo que tenho…
Mesmo que se queira organizar numa cozinha pequena, não vai conseguir fazer de raiz todos os caldos. De frango, de vitela, de peixe (talvez o de peixe e camarão pode conseguir). São coisas que levam seis horas ou muito mais a fazer. Se meter uma base qualquer, e a isso juntar o que quiser, talvez consiga uma coisa muito parecida mas em duas horas. Qual é o gajo que hoje em dia não compra o frango já depenado ou cortado? Qual é o gajo que não compra a carne já cortada? Ninguém traz meio vão de carne para a cozinha. Hoje não há cozinha quase nenhuma que não comece aí nos 20% de conveniência.
Quando inserimos essa realidade na gestão de um casino/hotel gigantesco, como o Fausto faz atualmente, a gestão deve ser quase caótica.
Não necessariamente, se as coisas estiverem bem organizadas. Eu hoje estou muito mais ligado à parte de produção e tecnologia. Fazemos 500 toneladas de comida por mês e temos 120 restaurantes abertos — e usamos muito pouco produtos congelados. É um caso muito específico, este tipo de infraestruturas. Não há igual na Europa, por exemplo. Talvez haja parecido no Dubai ou em Las Vegas, mas pouco mais. É outra forma de trabalhar. Curiosamente, aqui fazemos praticamente tudo de raiz.
Voltando à etapa na Knorr. Quando é que ela termina?
Termino a fase de trabalho a tempo inteiro com eles em 1994. Depois abre o CCB — estive lá um ano, um ano e meio a tempo inteiro. Não quis lá ficar os quatro ou cinco anos que estavam estipulados no contrato, por isso fiz a abertura, pus a equipa, treinei-os, fiz as ementas e depois quis voltar a estar à frente de um bom hotel — que, na altura, era a Quinta do Lago. Em 1996 tive oportunidade de ir para lá e fui, dois anos. Os contratos costumavam ter essa duração porque as cadeias grandes ou os grandes empreendimentos não gostam de ter os chefs lá muito tempo porque as coisas acabam por estagnar, começam a formar-se vícios de trabalho — e, infelizmente, nessa altura, havia muitos: fazer compras e ganhar por fora, esquemas assim, coisa que nós na Associação sempre tentámos ir contra.
Qual era o grande grupo que controlava a Quinta do Lago, nessa altura?
Era a Orient Express. Tinha uma clientela top, não só a portuguesa mas do mundo inteiro. Lembro-me do irmão do François Mitterrand, de várias pessoas de renome internacional passarem por ali. Como eram Orient Express, tinham um restaurante italiano que era o premium. O espaço de comida portuguesa era o restaurantezinho para desenrascar, ali na piscina. Por uma questão de currículo, mas também por vaidade, meti na cabeça que num ano ia pôr o restaurante português a ultrapassar o italiano [risos]. Um dos meus cozinheiros de primeira, nessa altura, era o Leonel Pereira [que mais tarde viria a ganhar e manter estrela Michelin no São Gabriel, também no Algarve].
Fez alguma alteração nessas equipas?
A direção tinha-me dado a entender que, se eu quisesse, podia despedir pessoas, mas não o quis fazer, só despedi uma. Identifiquei alguns jovens que tinham mais abertura e começámos a fazer um trabalho de raiz, de cozinha portuguesa. Mantínhamos o italiano, claro, mas nele não nos deixavam mexer muito — quase que nem nos deixavam mudar as apresentações dos pratos. Fomos fazendo isso como eles queriam e eu foquei-me mais no português. Foi quando começámos a fazer uma cozinha portuguesa mais bem cuidada, com produtos fantásticos. Foi o único sítio em que o custo da comida não importava. O diretor era italiano e lembro-me de lhe perguntar qual eram os limites de food cost, as margens de lucro que pretendiam, e ele disse-me só: ‘Isso são palavras que eu não conheço’. Ele disse-me para fazer o melhor trabalho possível e para não me preocupar porque a clientela pagava muito pelos quartos. Desde que fizesse o break-even, tudo bem.
Quanto custava, por noite, um quarto aí? Assim por alto…
Acho que pagavam uns 60 contos [praticamente 300 euros] por um quarto. Uma suite custava isso, por noite. Tínhamos muita clientela russa que pagava isso à vontade. Independentemente disso, conseguimos fazer um trabalho muito bom, muito virado para o peixe e o marisco.
Estamos a falar então de uma coisa mais assumida enquanto fine dining?
Sim. Muito fine dining. Já se fazia esse tipo de cozinha no italiano porque ele era gerido por um chef de Veneza, já faziam coisas modernas. Nós também o sabíamos fazer e quisemos seguir uma abordagem mais moderna de fine dining. Fazíamos aquelas montagens, do bacalhau numa cama de alguma coisa e depois com um molhinho e alguma textura. Muito focado em técnicas que fossem ao encontro do produto. No Michel [Gare Marítima], em 90/92, já cozinhávamos a vácuo. Dos melhores equipamentos que tive foi no Michel.
O chef Miguel Castro e Silva também foi um dos primeiros a usar a cozedura a vácuo em Portugal…
Chegámos a fazer um curso juntos, por acaso, com o Bruno Goussault, cientista que dizem ser o pai da cozinha sous vide [técnica de confeção em que um alimento fica a cozinhar durante várias horas, a uma temperatura não muito elevada]. O curso foi na Associação dos Cozinheiros e mais tarde acabou por fazer um outro, mais avançado (no início dos anos 2000).
Deve ter sido concorrido, esse curso…
Olhe que foi muito difícil arranjar alunos. Queríamos fazer uma aula com 12 alunos, com cada um a pagar mil euros, mas só conseguimos seis, cada um teve de pagar dois mil, lembro-me bem [risos].
Já que menciona a Associação, consegue explicar como é que ela surge na sua vida?
Em 1988 tomei conhecimento de que a associação existia. Nessa altura, na África do Sul, houve um grande certame chamado World Chefs For Hunger e a associação sul-africana pediu-me para trazer alguém da associação portuguesa (eles não conheciam ninguém em Portugal). Levei o vice-presidente da altura, o Luís Alves. Mas eu não me queria meter nisso. Em 1990, quando ganho o primeiro concurso do Chef Cozinheiro do Ano, o prémio era ir ao certame do Luxemburgo, uma grande competição que ia alternando com a IKA (Luxemburgo era de dois em dois anos e o IKA de quatro em quatro).
Mas o Fausto não ia enquanto concorrente, pois não?
Fui como espetador, não ia ligado a nada. Quando chego lá, vejo uma bandeira portuguesa, uma cozinha pronta para a equipa de Portugal mas os cozinheiros portugueses… Não apareceram. Eu como era o único português que eles sabiam que de certeza estava lá, começaram a perguntar-me o que se passava [risos]. Não tinha nada a ver com isso, mas o Bill Gallagher, que tinha sido meu mentor, disse-me para no dia X, às X horas, ir ter a determinada sala do hotel. Eu disse que sim, sem saber o que era. Chego lá, sento-me numa cadeira e à minha frente tinha uns dez gajos a olharem para mim, a perguntarem-me o que se passava com Portugal. Tinham marcado presença, tinham quartos e uma cozinha pronta para eles e até chegaram a enviar dinheiro, mas ninguém aparecia. Só lhes dizia que não sabia de nada! [risos] Eles então dizem-me que, quando regressasse a Portugal, tinha três meses para mostrar que Portugal valia a pena, senão era expulso da WACS [World Association of Chefs Societies]. Sabia que Portugal tinha demorado a chegar lá, era dos que lá estava há mais tempo e enquanto federação mundial era uma instituição importante. Quando cheguei a Portugal fui logo à procura de quem era o presidente da associação.
E quem era?
Tinha sido um dos jurados do chef cozinheiro do ano, por isso consegui chegar a ele através do António Esteves [antigo organizador do concurso, sucedeu-lhe Paulo Amado, que se mantém até hoje]. Cheguei ao Orlando Esteves, o presidente, e disse-lhe o que se tinha passado. Acho que era má gestão, só. Acho que quando quiseram ir para o Luxemburgo não tiveram os apoios suficientes e não conseguiram ir. Houve ali aquela quebra. O Orlando disse que ia tentar evitar a expulsão da WACS, conseguiu, entretanto convida-me para vice-presidente, fez-se a votação e, quando dei por ela, acabei por lá passar 20 anos.
O que foi preciso fazer para evitar a expulsão?
Não foi preciso muita coisa, bastou dizer que estavam a tentar levar as coisas para a frente. Eles perdoaram tudo o que havia e decidiram começar do zero. Em 1992 já levámos uma equipa às olimpíadas, mostrámos que tínhamos capacidade e desde aí levámos uma equipa de quatro em quatro anos. E íamos a mais sítios, à Escócia, ao Luxemburgo…
O episódio da sede da associação também foi uma aventura…
Não sei se foi uma aventura. Talvez tenha sido um capricho. Nós não tínhamos sede, só nos conseguíamos reunir à noite, no refeitório do Ritz. O Ziebell [Helmut, o chef do hotel na altura] era uma espécie de padrinho nosso e deixava que nos reuníssemos lá. O episódio da sede nasce porque durante muitos anos fazia-se só um evento por ano, o magusto, todos bebiam vinho, comiam castanhas e a coisa ficava ali. Para fazer isso contávamos com os Chaves de Ouro [uma antiga associação de porteiros de hotéis], que nos cediam a sua sede uma vez por ano. Uma vez, por acaso, chegámos lá e eram eles que se estavam a reunir — por isso nós não podemos reunir, tivemos de esperar que eles acabassem. Aquilo incomodou-me. Foi daí que passámos para o Ritz, mas era sempre à meia-noite, que era quando eles tinham o refeitório livre. Fizemos isso durante uns anos.
O que mudou para passarem daí para a Lapa?
Passado algum tempo meti na cabeça que tínhamos de ter um espaço, uma secretária, alguém que ajudasse a organizar os nossos eventos porque nem sempre tínhamos tempo para o fazer. Tivemos uma rapariga, que já não me lembro do nome, mas que tinha sempre muitas coisas para fazer, e depois veio a Estela.
Que passou a ser a secretária da Associação?
Sim. Quando precisávamos de alguma coisa era ela que tratava. Foi ela que começou com a associação, ali num sítio em Alcântara. Uma vez íamos para a Exponor fazer um evento, a convite do chef Cordeiro. Dissemos que sim, mas tínhamos zero dinheiro! [risos] Lembro-me perfeitamente: tínhamos literalmente zero dinheiro na conta e uma espécie de aforro de 200 contos [mais ou menos mil euros, atualmente]. Vivíamos um bocado dos 50 contos de um, 50 contos do outro… A Knorr dava-nos um dinheirinho, a Nestlé também, a Makro e pouco mais. Era isso que usávamos para pagar a renda e o ordenado da Estela. Pedimos-lhe para marcar três ou quatro quartos de hotel e tínhamos de ir de comboio. Alguns podiam ir de carro mas, como não tínhamos dinheiro para pagar a gasolina e as portagens, tinham de ser pessoas que pudessem pagar isso do seu bolso. Acabámos por conseguir uns 10 ou 12 gajos. Antes disso, porém, a Estela começa a falar comigo e só me dizia: “Ó Fausto, eu não sei o que fazer. Tem noção de que há zero dinheiro na conta?” [risos] Eu disse-lhe para ligar ao Cordeiro, ao Hélio Loureiro, para lhes pedir quartos. A verdade é que a coisa acabou por acontecer: uns deram-nos os tais quartos, outros arranjavam-nos jantar, outros o almoço e o Cordeiro até conseguiu arranjar-nos produto. Foi dos primeiros eventos que fizemos e correu bem.
Também davam aulas…
A pessoas carenciadas encaminhadas pelo instituto de emprego. Isto foi tudo na sede de Alcântara, que era no edifício da SOS Criança. Primeiro arrendámos a cobertura e depois alugámos a cave — lá em cima era tudo quartos muito pequeninos, um bocado esconso. Em baixo tinha mais abertura e era mais fácil para entrar, havia uma entrada privada. Aos poucos fomos percebendo que aquilo tinha muito potencial mas precisávamos de instalações melhores e lá convenci o pessoal da associação — o António Bóia, o Paulo Pinto, o Carlos Madeira… — a avançar para isso. Tínhamos conta no BCP e pedi à Estela para ver com o banco se eles não tinham algum espaço que quisessem vender. Foi assim que surgiu o espaço onde ainda hoje está a associação, na Lapa.
Quanto é que lhes pediram pelo sítio?
Eles queriam 1,1 milhões pelo espaço, ou lá o que era. Aquilo eram 600 metros quadrados na Lapa, uma zona fabulosa. O sítio, uma antiga agência de private banking, era fabuloso, cheio de mármores e com escritórios fantásticos. Eu disse “nem pensar”, não tínhamos dinheiro para isso, mas mesmo assim pedi à Estela para fazer uma proposta de 500 mil… E eles aceitaram! [risos]. Isto aconteceu em 2006, abrimos em 2007. Ficámos entalados, cada um assinou com o seu nome, com uns dois milhões e tal de dívida da associação. Mas correu tudo bem, ficámos com umas instalações fantásticas. Depois fizemos um contrato para pagar só 50% do equipamento e a marca ficou patrocinadora. Ali o mais caro foi mesmo a obra.
No meio disto tudo, como é que aparece o “Pragma”, no Casino? Foi depois do “H20”, na Expo?
Depois da Quinta do Lago aparece o “H20”, que veio através de um conhecido norueguês, que era o maior fornecedor de salmão. Ele era dono de um espaço ali na doca do Parque das Nações e sempre tinha tido o sonho de ter um restaurante de peixe. Falou comigo e disse que queria que eu estivesse envolvido em tudo, da decoração à formação, a escolha de tudo. Foi um projeto muito giro. Trabalhou-se lá um ano, apesar de só ter durado os seis meses da Expo98.
Como foi vendo a abertura do cliente para coisas mais diferentes?
Era preciso haver um equilíbrio. Tinha de se ter alguma coisa tradicional, mas também alguma coisa moderna. Sempre dei isso. Fizemos ali [no tal “H20”] umas coisas giras. A nossa ementa era toda de peixe, nem me lembro se sequer tínhamos algum prato de carne.
Diria que o cliente português começou a tornar-se mais aberto a coisas diferentes nessa altura, nos anos 90?
Acho que sim, quanto mais não fosse porque a Expo trouxe muitos turistas e as pessoas já vinham à procura de algo diferente. Não havia aquela ideia do “só queremos coisas tradicionais”.
A relação do cliente português com a nossa cozinha típica parece ter tido uma evolução meio esquizofrénica, quase. Durante muito tempo só se valorizava o receituário tradicional sem tirar nem pôr e tudo o resto não interessava, mais tarde deu-se o total oposto. Como vê isso?
Nesta altura, eu e o Vítor Sobral levámos com muitas críticas.
Que coisas vos diziam?
Chamavam-nos assassinos da cozinha portuguesa, coisas assim. Havia gente muito má língua. Tive sempre a postura de não ligar nenhuma aos críticos, nunca liguei, nunca fiz parte. Possivelmente, o único crítico por quem nutria respeito era o Quitério [José Quitério] e o David Lopes Ramos, mais tarde. Aquilo eram senhores da crítica. O Quitério, quando fez crítica sem me conhecer, obviamente que apontou algumas falhas. Porém, também começou a entender que havia necessidade de modernidade. Foi a pessoa, se calhar, que nos impulsionou a fazer algo diferente. Pensávamos: “Se este gajo não nos está a criticar, então é porque estamos a fazer algo bem”. Com o que se fez na Gare Marítima, com o trabalho do Vítor [Sobral] no Alcântara Café e, depois, com o Bica do Sapato, começou a haver uma linha nova de aceitação.
Fale um pouco do Bica do Sapato.
Quando abriu, os donos, como tinham também o Pap’Açorda, não se meteram na cozinha. No primeiro dia cheguei a pôr o senhor Miranda fora da cozinha [risos]. Ele entrou por ali a dentro a dizer que o bacalhau tinha de ter não sei o quê e eu disse-lhe que não tinha de ter nada, que me estavam a pagar para ser o chef por isso agradecia que fosse lá para fora [risos]. O Fernando [Fernandes] também me deixou trabalhar. Fiquei lá cinco anos por causa disto. Acho que o Bica foi crescendo por estarmos, precisamente, a fazer algo de diferente. Naquela altura já fazíamos algumas degustações, fazíamos muito as “trilogias”, de bacalhau, de polvo… Lembro-me perfeitamente de que quando comecei no Bica do Sapato, em 2001, fazíamos à volta de três mil pessoas por mês. Quando saí já servíamos onze mil e quinhentas [risos]. Foi um trabalho que demorou tempo, exigiu mudanças e troca de pessoal, mas correu bem.
Falava do pessoal no Bica do Sapato. Passaram por lá alguns cozinheiros importantes hoje em dia.
Procurei ir pondo gente nova e uma delas foi o João Rodrigues, por exemplo, do Feitoria. O Celestino Grade também. O Bertílio [Gomes], também ainda trabalhou um ano connosco. O Bica do Sapato foi uma viagem, fez escola para mim e para muitos miúdos. O Paulo Pinto acabou por ir liderar o restaurante, a Anabela Gonçalves a cafetaria, o Paulo Morais no sushi… Com estes pilares conseguia garantir que tudo era bem feito. Tive sempre uma maneira de estar na cozinha que procurava não impor coisas, a criatividade tem de vir da equipa. Acho que isso é o meu maior trunfo como cozinheiro. Mesmo o João Rodrigues pode dizer: a equipa é que pensa e trabalha, eu só dou dicas de onde quero as coisas, um bocado tipo maestro. Mas também dizia o que não queria: lembro-me que houve uma fase em que o João Rodrigues queria pôr gengibre em tudo [risos], na altura do Pragma.
Era um chef duro na cozinha?
Melhor perguntar aos outros que trabalharam comigo [risos]. Acho que era semi. Sempre fui muito justo, considero-me uma pessoa justa. Não enquadro bem com estupidez e não enquadro bem com falta de rigor. Talvez isso sejam coisas que me tiram um bocado do sério — quando alguém faz um erro uma segunda e terceira vez. Não há muita paciência, temos muito pouco tempo para retificar algo que ficou mal. Se alguém está há 20 minutos à espera de um prato, eu não posso fazer esperar mais 20 para corrigir um erro. As coisas têm de sair bem no meio daquele stress do serviço — no Bica servíamos umas 400 pessoas por dia. Eu no Bica andava um pouco por todo o lado: fazia o serviço no restaurante, depois ia ver a cafetaria e ainda passava no sushi para ver e provar algumas coisas. Por vezes criticava algumas coisas, no sushi, por exemplo. Para mim, a comida japonesa tem de ser muito natural, não precisa de ter muito gosto. Lembro-me que, às vezes, tínhamos algum debate com o Paulo Morais, porque ele fazia um bacalhau muito bom com miso, mas aquilo, às vezes, estava um bocado carregado demais. Para mim, o Paulo Morais é dos melhores a fazer comida japonesa. Ele está num patamar muito, muito alto.
A ideia de brincar um pouco com os “à Brás”, que muitos lhe atribuem, também começou no tempo do Bica, não foi?
Sim.
Foi quando começou a mexer no “à Brás” que o acusaram de estar a assassinar a cozinha portuguesa?
Não, foi antes [risos]! Foi num trabalho muito giro que fiz com o Quitério e com o Homem Cardoso, o fotógrafo, quando fiz os selos para os CTT. O Quitério deu-me receitas típicas (ele era historiador), as bases, e depois disse que a apresentação era comigo. O Homem Cardoso como era um fotógrafo muito bom com comida, talvez dos melhores que tivemos na área em Portugal, focava as coisas muito em cima do prato. Como aquilo era para um selo, os pormenores tinham de ser visíveis, mas simples. Lembro-me de um dos pratos que fiz e achei piada: todas as receitas que lia de enguias à moda de Aveiro levavam o pozinho amarelo da curcuma, mas não levavam gengibre. Achei piada a isso porque na receita original que o Quitério me tinha dado estava lá o gengibre. Como não conhecia nenhum outro prato português que tivesse gengibre achei piada e evidenciei isso. Fiz um gengibre cortado muito fininho, seco, meio frito/caramelizado, e pus as enguias todas juntas com alho francês… Toda a gente me dizia que aquilo não eram enguias à moda de Aveiro. Uma vez num seminário qualquer, à conta disso, é que me disseram que era um assassino da cozinha portuguesa [risos].
Falava do Pragma, há pouco…
No Pragma fazíamos comida com raízes muito portuguesas. Modernas, mas portuguesas. Não havia muita experimentação de sabores alheios ao que tínhamos na nossa praça. Acho que até já tínhamos uma coisa sustentável porque era tudo muito à base de cozinha de mercado, cozinhava-se o que havia na nossa praça, de produto fresco. Eu era um pouco apaixonado por pimentas, por isso explorava muito isso.
O Pragma, no Casino de Lisboa, foi o projeto que se seguiu ao Bica do Sapato?
Sim. O Casino convidou-me para ir para lá e era para ser um projeto muito giro, mas que deu bronca. Eles não respeitaram aquilo que se propuseram a fazer. Quando me apresentaram o projeto aquilo era para ser o equivalente à Broadway, mas em Lisboa, com espetáculos a mudar de três em três semanas, mas isso rapidamente desapareceu.
Desapareceu ou nunca chegou a acontecer?
Acho que na prática nunca chegou a acontecer. Eles tiveram dois ou três espetáculos muito bons, com salas sempre cheias, mas depois começaram a ter o “Monólogo da Vagina”, durante um ano, e coisas portuguesas. Todo o nosso negócio de estrangeiros foi a baixo, não vinham para o casino ver uma coisa em português. Aquilo durou pouco tempo, porque não conseguimos manter. Acabámos por sair da sociedade e o restaurante foi passado à Quinta das Lágrimas.
Muita gente dizia que o Pragma era um restaurante que parecia estar à frente do seu tempo. Sente isso?
Sim. Acho que nessa altura estávamos a fazer um trabalho como o que se faz agora em termos de pormenor, produto, técnica, qualidade. Não teve o tempo de vida útil necessário para ser mais reconhecido, mas acho que toda a gente que passou por ali tem essa noção. Tenho essa noção. Tanto o João Simões como o João Rodrigues, que trabalharam nessa equipa, podem confirmar isso. Eles, mais que ninguém, tiraram muito valor do que se fez ali. Como eu tinha uma maneira de estar em que a equipa gerava a criatividade, todos faziam parte do processo.
O restaurante era só menu de degustação ou tinha carta também?
Tínhamos uma pequena carta dividida em três: o presente, a memória e o futuro. Tratávamos as coisas de forma diferente, mas tudo começava no produto. A primeira coisa que perguntava, sempre que eles tinham uma ideia, era “qual é o produto”?
Depois de sair do Pragma, teve um pequeno projeto no teatro São Luiz.
O Spot, uma coisa que já era do casino, mas que conseguimos separar do contrato de sociedade. Mas era um entretenimento. Quando aquilo tudo aconteceu fiquei um bocado… Quis fechar o ciclo em Portugal, e fechei. Foi o tempo útil de fechar o ciclo, arrumar a associação (a meu ver), sair da presidência. Aquilo já estava financeiramente estável e sinto que fiz o meu trabalho. Hoje em dia, felizmente, é um projeto que se paga a si próprio.
Foi em 2013 que saiu de Portugal. Numa entrevista da altura, ao Público, o Fausto dizia que sentia que já não era útil no contexto português. Houve algum desencantamento?
Sim, houve. Eu tive uma belíssima proposta, em 2009, para ir para Macau. Fui lá fazer um trabalho e a coisa apareceu. Não consegui pegar nela porque era presidente da associação, estava a sair do Pragma e tinha ainda o São Luiz… Não era oportuno, mas jurei a mim mesmo que em dois anos tinha de estar livre. Em 2012 tive uma oferta muito boa para ir para Singapura e, quando já estava a tratar de tudo para a aceitar, a pessoa que me tinha oferecido essa oportunidade disse-me que estava de saída, que se ia mudar para um projeto em Macau, e perguntou se eu queria ir também. Eu disse que sim, ainda melhor.
Pelo que tem acompanhado de Portugal, o que nota de diferente em relação ao “seu tempo”?
Uma coisa que noto, e que é muito boa, são jovens a pegar em restaurantes e a apostar em fazer cozinha típica bem feita, de forma atual. Isso não se via quando saí. Via-se, sim, muitas cópias dos espanhóis, primeiro, depois os nórdicos. Havia muito essa trend: se a coisa X estava na moda, íamos copiar. Isso foi algo que sempre me irritou, as vagas que íamos tendo era sempre a copiar alguém, não tínhamos nada de novo. Ultimamente vêm-se mais pessoas a voltar às raízes, a utilizar produto nosso e com orgulho. Vivi uma fase em que os jovens orgulhavam-se era de usar tudo o que fosse estrangeiro. O foie gras é que era bom, a lagosta de Boston é que era boa… E não olhavam o nosso produto. Isso está a virar e acho que é o caminho certo.
Um dos problemas que muitas vezes se fala é na grande pressa, de muitos jovens cozinheiros, em quererem afirmar-se como chefs e que isso lhes dá poucas bases. O que pensa disso?
Não podemos generalizar. Há jovens que são assim, que fazem currículos a ir para os elBullis e os Nomas cinco ou seis meses, andam sempre a mudar. Eu, quando recebo um currículo e vejo que a pessoa esteve nuns oito sítios nos últimos três anos, nem vejo mais nada. Ou se está com um bom chef uns dois ou três anos ou então não se aprende nada. Vejo jovens com o Leonel Pereira [ex-São Gabriel, atual Check-In Faro], que estão com ele há quatro ou cinco anos; o João Rodrigues esteve comigo uns cinco ou seis anos; o David Jesus está há muito tempo com o Avillez; o Hugo Nascimento a mesma coisa com o Vítor Sobral… Isto é bom porque torna possível consolidar a carreira e dar o salto de forma mais preparada.
Isso não se via, na altura em que saiu de Portugal?
Não. Havia gente que mudava muito rápido, miúdos que saiam da escola de cozinha e diziam que em dois anos queriam ser chefs. Até podiam, mas não seriam bons chefs, certamente. As pessoas que querem coisas muito rápidas acabam por perder aquilo que a cozinha tem: somos, no final de contas, artesãos. A nossa arte é fazer, bem, todos os dias, com consistência. Para chegar a esse patamar da consistência são precisas bases muito boas. Sem elas, nunca se chega lá.
Regressar a Portugal é algo que tem em mente?
Não. Não planeio voltar a trabalhar em Portugal. Talvez porque Portugal se tenha tornado pequeno de mais. Estou num projeto que ainda tem muitos anos pela frente. Só estamos na fase dois de crescimento, temos cinco no total. Já estou envolvido na três e na quatro e não me vejo a sair de lá tão cedo. Obviamente que não me quero reformar aos 70 anos. A partir dos 60 queria começar a pensar nisso, uma forma de vida mais simples. Gostava de me dedicar à educação e continuar a fazer o que gosto de fazer. Não me vejo a voltar para um restaurante ou hotel.
Mas sente que ainda tem motivos cá que o podem fazer querer voltar, um dia? Mesmo que não seja para trabalhar.
O meu motivo é a minha mãe. Obviamente que tenho cá amigos, a minha irmã, família. Vou voltando por isso, para experimentar coisas novas. Gosto de visitar colegas e ver o que eles estão afazer. Agora, o mundo é muito grande. A minha terra é Moçambique, mas já não a posso chamar minha. Sinto-me em casa em qualquer parte do mundo. Portugal tem coisas muito boas, mas o mundo tem coisas muito boas.
Falava há pouco que a cozinha não nos pode só dar coisas, que também é preciso retribuir-lhe com algo. O que sente que deu à gastronomia?
Dei vinte anos à associação dos cozinheiros. Acho que o trabalho que se fez aí foi a dignificação da classe de cozinheiros em Portugal. Demos uma voz aos cozinheiros que eles não tinham quando cheguei cá.